Das origens da leitura

>> segunda-feira, 30 de março de 2009


Leitura silenciosa?
Até há pouco, se me perguntassem o que sabia sobre as origens da leitura, teria resposta pronta, papagueando de hieróglifos, de sinais gravados em barro, de como esses sinais eram destinados a transmitir um recado, e até de como e onde nascera o alfabeto..
Não me pretendendo perita no assunto, julgava saber o bastante para me sair bem da pergunta, e para não me espantar com alguma nova revelação sobre a materia. Há, é verdade, revelações e revelações. Não há dia em que não tenhamos ocasião de dizer: – tem graça. isto não sabia eu. Mas que fiquemos abismados de espanto, é que não sucede todos os dias.
Pois sucedeu-me agora. Num livro sobre a história da leitura leio que: “Quando, onde. e porque razão as pessoas começaram a ler, isso não sabemos. A questão do início da história da leitura, está ligada a tantas outras questões, que não é fácil responder à pergunta”. O autor, Hans-Joachim Griep, levanta em seguida outra questão: “quando é que se começou a ler para dentro, silenciosamente?”.
E aí é que eu fiquei de boca aberta e ainda estou, se assim se pode dizer. Ignorava que a leitura nem sempre fora a leitura silenciosa que hoje achamos natural. Pensava que de momento que se lia, que se lia, ou alto ou baixo, ao gosto de cada um. Não sabia que se soletravam alto os sinais, as letras, que só se lia alto, porque não se conhecia outra forma de o fazer.
Griep escreve a esse respeito, que é a partir do séc. V.a.C. que há provas da existência da leitura silenciosa na Grécia. Que por essa altura já havia leitores, não muitos, decerto, que, pela interiorização da voz, estavam em condições de ler mentalmente. Tudo indica que até lá a leitura estava ligada à voz do homem, que os sinais com que se escreviam palavras eram soletrados, lidos, em voz alta” .
Em fins do séc. V. a. C. a “leitura silenciosa” já se teria, segundo o autor, divulgado em Atenas “ao ponto do público o entender como coisa normal”, mas muito poucos dominavam essa técnica.
“A leitura silenciosa provou ser uma técnica, que permitia ao leitor absorver mais textos em menos tempo. O que era de importância capital, dado que o número de textos de todos os géneros aumentava constantemente. Por outro lado, a leitura silenciosa era dificultada de maneira que hoje não podemos imaginar pelo facto de se usar então uma escrita sem intervalos e sem pontuação”.
Foi por isso uma técnica que levou muito tempo a se generalizar. Na Roma imperial ainda se lia maioritariamente alto, nas escolas da Idade Média ainda se lia alto.
E eu ainda estou a digerir esta revelação: que nem sempre se leu silenciosamente, mentalmente, para si.

Como se teria dado esse passo em frente que foi a descoberta da leitura silenciosa? Talvez o problema estivesse no ar, fosse hipótese que há muito se discutia. Talvez fosse invenção de um só, e por ele revelado ou ensinado. Posso imaginar um ateniense, passeando na ‘agóra’, e confiando aos amigos, que encontrara a forma de ler para dentro, para si, que já não precisava de ler alto.
Para lembrar - a quem não faz palavras cruzadas - o que era a ‘agóra’ na vido dos atenienses, recorro à ‘Historia da Filosofia Grega’ de Luciano de Crescenzo, e confesso que o faço para ter pretexto de falar no autor. Não sei se o seu primeiro livro ‘Assim falou Bellavista’ - um daqueles livros que não envelhecem - foi publicado em Portugal, mas em 1988 a Presença publicou o primeiro volume da sua História da Filosofia, ‘os Pré-socráticos’. Na introdução, Crescenzo explica a Salvatore, porteiro da casa do professor Bellavista, e um dos membros da sua roda de ouvintes e interlocutores, o que seja filosofia, e começa por lhe explicar o que se entendia na antiga Grécia por “agorazein”.
“Agorazein”, explica ele a Salvatore, significava ir até à praça – à ‘agóra’ - ouvir o que por lá se dizia. Significava ”comprar, vender, conversar e ver os amigos; mas significava também sair de casa sem um objectivo preciso, vaguear ao sol até à hora do almoço............”Agorazonta”, o particípio desse verbo, descrevia a maneira de andar de quem praticava o ‘agorazin’, esse caminhar lento, de mãos atrás das costas, com um percurso quase nunca rectilíneo.”
“Pois bem, caro Salvatore” – informa-o o autor, “a filosofia grega deve muito a esse hábito peripatético dos meridionais.”
Não me parece pois fantasioso da minha parte, imaginar que foi num dessas passeios ‘na agóra’, nesse ‘ensinar passeando’, que um ateniense terá levado a conversa para a leitura e confiado aos companheiros, que conseguira “ler para dentro”. Que, para ele. a leitura já não consistia numa acção mecânica, ocupando a voz e a vista, já que, na leitura mental, esta podia ser acompanhada de reflexão, que era como que uma alternativa à conversa. Que o leitor, tal como em conversa na ‘agóra’ discutia o que estava ouvindo, na leitura silenciosa, podia discutir em mente, par si, o que estava lendo,.

*Griep, Hans Joachim Geschichte des Lesens, Wissenschaftliche Buchgesellschaft



Observações à margem
Eça de Queiroz não tinha grande opinião quanto aos gostos literários dos jovens portugueses seus contemporâneos. Em 1871, tinha ele 26 anos, escrevia dos homens: “Não se compra um livro de ciência, um livro de literatura, um livro de história. Lê-se Ponsson du Terrail - emprestado!”
Quanto às meninas casadoiras e jovens mulheres portuguesas, que contraste com as senhoras inglesas e franceses, essas “lêem ou para si, ou em voz alta aos irmãos mais pequenos ou aos filhos, livros de história natural, curiosas vidas de animais, viagens. ..... Entre nós lêem Ponsson du Terrail ou Dumas Filho” .
Não sei que mal tinha que as meninas portugueses lessem as aventuras de Rocambole e de d’Artagnan, e duvido que as francesas e inglesas fossem aqueles modelos de leitoras. De resto, foi o princípio da frase de Eça de Queirós: “Não se compra um livro de ciência, um livro de literatura, um livro de história” que sempre fixei. Porque essa opinião ainda me parece actual. Enquanto os primeiros pouco espaço ocupam, Ponssons du Terrail cobrem as mesas das livrarias, e são eles que sobretudo se compram. Não tenho nada contra livros de entreter. Tenho-os e leio-os, e se tivesse vivido naqueles anos teria decerto lido du Terrail. Mas não só. É que os outros também entretêm. Do que cada um se tem de convencer por si próprio.

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Numero trinta

>> segunda-feira, 23 de março de 2009


30. Número trinta
.. Parece-me que os artigos dos posts anteriores eram demasiado compridos para o gosto de leitores de blogs. Tento hoje um novo modelo: alguns pequenos artigos em vez de um só.

Darwin
Desde que li a magnífica biografia de Darwin da autoria de Desmond e Moore*, não consigo esquecer que durante os cinco anos que durou a viagem de exploração em que participou, Darwin enjoou praticamente desde o primeiro ao ultimo dia de navegação.
“O objectivo da viagem era de completar a exploração da Patagónia e da Tierra del Fuego, iniciada pelo capitão King (de 1826 a 1830), de fazer levantamentos das costas do Chile e de Peru, e de algumas ilhas do Pacífico, …” , escreve Darwin no seu livro “The Voyage of the Beagle”. Ele ia naquela expedição como naturalista. Tinha vinte e três anos
Mal o ‘Beagle’ tinha largado de Devenport, (junto de Plymouth) que a miséria de Darwin, o seu pesadelo, começara, lê-se na biografia citada. “Charles misery began immediately. Nausea nailed him to the rail, and he spewed his breakfast into the swell………..it was his worst nightmare……….All through the watches he swung violently in his cabin, retching violently..” (pg. 114)
Devido ao mau tempo, o ‘Beagle’ teve de regressar por duas vezes ao porto de partida. Darwin podia ter aproveitado para desistir, podia ter ficado em terra, nada disso, heroicamente, em minha opinião, embarcou de novo. E à mais ligeira brisa enjoava, as náuseas voltavam: “Darwin was nauseous again” (pg. 124)
No dia 16 de Janeiro 1832 o Beagle, que passara as Canárias sem aí poder ancorar, chegou no porto da Praia, em São Tiago de Cabo Verde e Darwin pode finalmente pôr pé em terra firmr. Descreve as suas primeiras impressões: a terra não lhe parece de grande interesse, mas como pode ele apreciá-la? “Como é que alguém, que acabou de por pé em terra. e que pela primeira vez andou por entre coqueiros, pode julgar seja o que for, a não ser a sua felicidade?”. **
A felicidade de ver coqueiros pela primeira vez, e a felicidade suprema de estar em terra firme.
No fim desse ano, tendo atravessado o Atlântico e navegado ao longo da costa da América do Sul, no dia 24 de Dezembro de 1832, o ‘Beagle’ ancorou na ilha do Eremita, no extremo sul do continente, frente ao Antárctico. Levantou de novo âncora na véspera de Ano Novo. O vento virara a sudoeste, e o ‘Beagle’ teve de lutar milha por milha ao longo da costa sul do continente “league by agonizing league” para vencer o cabo Horn. Para Darwin foi o inferno “constantly retching at the rail”, sentia que dificilmente aguentaria aquilo por muito mais tempo.. (pg. 134)
Foi um mártir do enjôo. O enjôo praticamente nunca o largou por completo “He remained a martyr of seasickness, it never let up entirely”. (pg.183) Durante cinco anos!

*Adrian Desmond & James Moore DARWIN Pemhuin Books
** Charles Darwin The Voyage of the Beagle

Preto no branco
Há dias, para festejar o seu 19º aniversário, o director do jornal O Publico cedeu a sua rubrica a António Lobo Antunes, enquanto José Manuel Fernandes publicava como repórter, um artigo intitulado “A mais importante das barricadas: salvar o jornalismo livre etc ....”
De acordo. Mas não esqueçam o aspecto prático da questão. Os jovens são pouco dados à leitura de jornais, não é agora que os vão conquistar. Os idosos gostam de ler diariamente o seu jornal, mas não têm olhos para textos em linhas de minúscula letra cinzenta. E acha porventura a redacção do jornal que os outros leitores lêem com facilidade as suas páginas? O Publico é pródigo em artigos de opinião. Já perguntaram aos leitores em boa idade e com boa vista, quantos desses compactos, cinzentos artigos de opinião é que eles lêem até ao fim? Porque será que O Público não gasta um pouco mais em tinta, e não escreve as suas notícias e reportagens em letras pretas, em vez de cinzentas? E, já agora, em número acima daquele que usa. Assim talvez alguém lesse os seus artigos de opinião. Os quais, com excepção do artigo do fundo, o do director, e os artigos da última página, são de leitura muito pouco convidativa.

Pequenas coisas que incomodam
--Um ministro a dizer “tá bem” e “tou certo”; “tamos decididos a “
--O uso repetido, indescriminado e quase sempre sem sentido de “digamos”, e de “no sentido de”
-O uso inadequado de “Ex Líbris”..
Li há pouco que o elevador de Bica é um dos "ex-líbris de Lisboa". E já li que no Algarve há uma terreola, da qual o senhor Antunes é o ex-líbris.
Ex-líbris quer dizer “dos livros de”. É uma etiqueta, mais ou menos artística, que alguns amadores colam no interior dos seus livros para marcarem a sua posse.
O elevador da Bica não é um ex-libeis de Lisboa, e o senhor Antunes, pode ser, é sem dúvida, uma figura marcante na aldeia de Xis, mas não é o ex libeis dessa aldeia.

Das cartas à minha filha

Lisboa, 24. 6.2002 Uma história americana
“Ontem vi no canal ‘People and Arts’ uma reportagem 100% americana. Era sobre o leilão dos vestidos da princesa Diana, que alcançaram somas astronómicas nos EU. Os compradores contaram o porquê das suas licitações, e uma compradora contou que, vendera acções do seu caderno de acções, e adquirira dez vestidos como investment. Poucos dias depois do leilão, morreu a princesa Diana. A mãe da compradora acordou-a às 4 da manhã, telefonando da Florida para lhe participar o sucedido e recomendar que tomasse bem conta dos vestidos, porque com aquela morte, iriam fatalmente trepar na cotação. Note, que isto era dito pela compradora com a maior seriedade. E informou com a mesma seriedade, que, tendo querido compartilhar os vestidos com os seus conterrâneos, os levara em caravana de terra em terra. Os trajes eram expostos em museus grandes ou pequenos, e mostrados ao público ao som de música sacra, coros religiosos, etc. Acredita-se? Tem que se acreditar, porque eu ouvi. São como nós? Não.

Lisboa, 21. X. 2006 Explicação divina
“Na capa do número de hoje do semanário Sol temos uma fotografia do José Rodrigues dos Santos com o seu novo livro na mão. Não fixei o título, mas sei que explica Deus!! O mundo encontrou finalmente quem em 300 páginas resolva problemas que ocuparam e mistificaram os maiores pensadores. Não tenho duvida que o autor será entrevistado com grande seriedade, que serão questionados teólogos e filósofos - da praça de cá, já se vê – e que todos vão ficar muito contentes com a finesse dos seus raciocínios. Foi escrito em três meses, e tenho a certeza que terá um sucesso doido......”.


Terça-feira 15-01- 2008 Germanos?
“Mandei vir pela Amazon um livro sobre a história dos germanos – ‘Die Geschichte der Germanen’* – em segunda mão (mas impecável) por 11 Euros em vez de 19, que é o custo dele em novo. O livro vem a propósito de eu estar às voltas com a historiografia do século XIX.
Como os reis tinham deixado de contar, e passaram a ser substituídos pelo sentido da nação, toda a gente começou a procurar as suas origens nacionais. Os ingleses descobriram que eram o produto da invasão da sua ilha pelas tribos germânicas dos ‘Angeln’ e dos ‘Sachsen’, os alemães descobriram Tácito e ‘Arminio, o Cherusco’, que na batalha da floresta de Teutoburg derrotara as legiões de Varus e livrara a Germânia dos romanos. Quanto aos franceses, passaram a debater se para eles, gauleses, fora bom ou mau terem sido invadidos no século V pela tribo germânica dos francos. Os historiadores dividiam-se entre aqueles que achavam importante o contributo do ‘germanisme’ e aqueles que achavam que o ‘gaulisme’, com um pouco de romano pelo meio, teria sido suficiente. Antes da guerra de 1870 predominavam os partidários da primeira tese, até porque não queriam perder o seu querido ‘Charlemagne’. Ninguém em França duvidava que este (o ‘Karl der Grosze’ dos alemães), apesar de rei da tribo germânica dos Francos, se sentira tão gaulês como eles. Tivera, é verdade, a sua corte na Alemanha, na cidade de ‘Aachen’, - ‘Aix la Chapelle’ como lhe chamavam - o seu trono ainda lá se via, mas o que era isso? Quando em 1870 outras tribos germânicas – ‘les hordes de barbares’ - invadiram de novo a Gália, os historiadores partidários do ‘germanisme’, renegaram as suas anteriores convicções. Mas ficaram com Charlemagne. É interessante, é divertido, e dá que pensar. E faz-me comprar livros.”
*Arnulf Krause Die Geschichte der Germanen Campus Verlag Frankfurt / New York

Pedido de informação.
Eça de Queiroz fala em um dos seus livros das leituras das jovens portuguesas do seu tempo. Segundo ele, só liam du Terail. Em outra ocasião comenta também as leituras dos rapazes. Mas em qual dos seus livros? Se algum dos meus leitores o souber e mo quiser dizer, agradeço.

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De bibliotecas de mulher

>> segunda-feira, 16 de março de 2009


29. De bibliotecas de mulher
Particular? Caseira? Domestica?

Creio que a formação de uma biblioteca própria, uma biblioteca particular, é mais coisa de homem do que de mulher. Mais de homem, mas não exclusivamente. Houve e há bibliotecas particulares de mulheres, e algumas escreveram sobre os espaços onde arrumavam os livros.
No século XIV Cristina de Pisano tinha os seus num pequeno “estúdio”. Di-lo no “Livre de la Cité des Dames”* em um verso de cinco linhas, que me encanta e tentei traduzir:
"une estude petite,
Ou souvent je me délite
A regarder escritures
De diverses aventures,
Si cherchais un livre ou deux"

"Um estúdio pequeno
onde muito me deleito
a olhar as escrituras
de diversas aventuras
e procurar um livro ou dois"

Imaginando uma sociedade onde as mulheres não seriam enaltecidas pelo seu nascimento ou beleza, mas pela suas virtudes e sapiência, Cristina devia ser um bocadinho maçadora. E quem sabe se não um pouco troçada. Em uma das numerosas miniaturas em que ela foi retratada, vimo-la no seu ‘studio’, dormindo uma soneca de livro na mão. Mas o ilustrador era decerto um homem, e, quanto a mim, quem escrevera aquelas cinco linhas merecia encabeçar um artigo sobre bibliotecas de mulheres.
Achei lógico procurar definições do que se tinha dito sobre o que fosse “biblioteca”, e uma das primeiras definições com que deparei, foi esta:
“Biblioteca é um espaço reservado aos livros, recheado de obras escolhidas, cobrindo diversas áreas dos conhecimentos humanos, e periódica e judiciosamente acrescentadas”.
Foi o bastante para me afastar do tema projectado.
Presumo que o autor da definição se estaria referindo a uma biblioteca publica, não a toda e qualquer biblioteca. É verdade que “espaço reservado aos livros, recheado de obras escolhidas, cobrindo diversas áreas dos conhecimentos humanos” são condições a que também uma biblioteca particular pode aspirar, mas “periódica e judiciosamente acrescentada” ?
Desafio qualquer possuidor de uma biblioteca particular a mostrar as judiciosas aquisições com que periodicamente a foi aumentando. Judiciosamente pressupõe que os livros acrescentados tenham sido adquiridos após judiciosa meditação sobre o seu valor e qualidade e a oportunidade de os adquirir. Onde fica a inspiração do momento conhecida de todos os grandes leitores? O apetite por aquele livro e não outro? A biblioteca particular não seria biblioteca particular, se não fosse uma colecção de livros escolhidos por apetite, por amor, raras vezes por terem sido objecto de meditação prévia. Escolha judiciosa das aquisições aplica-se a uma biblioteca publica não à de um particular.
Ainda estava às voltas com isto de “biblioteca judiciosa”, quando me vi enfrentada com a “biblioteca domestica”.
“...... é indisputável a declinação da biblioteca doméstica, da vontade e do orgulho de a ter, e também, valha-nos Deus! das condições para a conservar e aumentar”. lê-se em “A infelicidade pela Bibliografia” de Abel Barros Baptista.**
Talvez seja pouco razoável da minha parte, mas a definição deu-me vontade de rir. Biblioteca domestica? Consultei Cândido de Figueiredo, e lá está: --domestico: “relativo à casa, à vida íntima da família, familiar” etc. .
Em casa dos meus pais havia uma razoável quantidade de livros, mas a ninguém passava pela cabeça chamar biblioteca a uns armários e estantes com livros espalhados pela casa. E menos biblioteca domestica. Biblioteca tem uma conotação de qualidade e grandeza. Acho eu. E exemplifico.
Na véspera do dia 1 de Novembro de 1755, o senhor Joaquim José Moreira de Mendonça chegou à janela da sua casa, perto do castelo de São Jorge, e fechou-a rapidamente por achar que vinha de fora um calor estranho. Comentou-o com a família, e no dia seguinte viu-se que o senhor Joaquim José Moreira de Mendonça tinha razão de recear coisa ruim. O homem era grande amador de livros, e logo que o pior do tremor de terra passou, procurou averiguar quais as bibliotecas da cidade que mais tinham sofrido. Podemos ler o que ele viu no livro que depois escreveria, intitulado “História Universal dos Terremotos”*** (que sobressai com vantagem das odes e baladas que então se publicaram chorando a catástrofe)..
“Entre as muitas preciosidades que consumiu o fogo foi muito sensível aos eruditos a perda de muitas e numerosas livrarias, escreve o senhor Joaquim José. “Tem o primeiro lugar a biblioteca real, que era numerosíssima e excelsa. O senhor rei D. João V, o Máximo, a tinha aumentado cm grande número de livros modernos e todos os antigos que se descobriram pela Europa; e uma grande cópia de bons manuscritos, assim originais como cópias bem escritas, tudo efeito da sua sabedoria e magnificência.
A do marques de Louriçal enchia e ornava quatro grandes casas, e era esta selecta em livros raros e excelentes manuscritos. Tinha sido formada pelos Sábios condes da Ericeira e ultimamente aumentada pelo conde D. Francisco Xavier de Meneses, cuja sabedoria e vastíssima erudição ainda depois de morto admira Portugal e toda Europa-
A biblioteca do convento de São Domingos estava em duas grandes casas e tinha muitos livros raros e grande número de manuscritos, que para ela deixou o eruditíssimo beneficiado Francisco Leit\ao Ferreira. Foi obra do padre frei Manuel Gonçalves que a constituiu publica, com assistência de dois bibliotecários e renda grande para o seu aumento
No convento do Espírito Santo havia uma grande e selecta livraria, e outra chamada Mariana, em que se admirava a major colecção de livros que tratavam de Maria Santíssima, obra do padre Domingos Pereira.
Ficaram também reduzidas as cinzas excelentes e antigas livrarias dos conventos do Carmo, São Francisco, Trindade e Boa Hora. Tiveram o mesmo sucesso todas as dos palácios, que arderam em que havia algumas muito estimáveis.
As particulares foram muitas e entre estas era muito preciosa a do inquisidor mor José Silveira Lobo, por numerosa e selecta.
Em cinco casas de mercadores de livros franceses, espanhóis e italianos e 25 lojas e casas de livreiros portugueses se consumaram grandes livrarias de que podiam formar muitas copiosas e excelentes.”
Bibliotecas nas grandes casas, livrarias de mosteiros. livros de particulares. Colecções de livros de qualidade, alguns raros, de manuscritos.
Poucos anos depois, fazia-se em Paris leilão dos livros que haviam sido de Madame de Pompadour, amantíssima companheira de Luís XV de França, mulher culta e grande leitora. “Ela lia os seus livros, não os tinha simplesmente como adorno dos seus quartos”, escreve Nancy Mitford.****. Ao todo leiloaram-se 3525 volumes, divididos nas seguintes categorias:87 traduções dos clássicos, 25 gramáticas e dicionários franceses, italianos e espanhóis. 844 livros de poesia francesa, 718 romances, entre eles romances ingleses em tradução francesa, 32 livros de contos de fadas, 42 obras de história religiosa,738 de história e biografia;235 livros de música 5 livros de sermões, incluindo os de Bourdaloue, Massion e Phénelon; 215 livros de filosofia 75 livros da vida de escritores.
Retirada da venda pelo seu irmão, o marquês de Marigny, foi um livro intitulado “Représentations de M. de Lt. General de la Police sur les Courtisanes a la Mode et les Demoiselles de Bon Ton, par une demoiselle de Bon ton”. Devia ser o que então se designava por livro ‘galante’, e não foi decerto para proteger a fama da irmã que o marquês retirou do leilão as confidências de uma “demoiselle de Bon ton”.
Os livros de madame de Pompadour eram na sua maioria encadernados em marrocain com as suas armas no rosto. Era uma biblioteca particular, pessoal,. Mas era uma biblioteca doméstica?
Mais ou menos por esses anos temos na Alemanha a duquesa Anna Amália de Weimar fundando a biblioteca que ficaria famosa como uma das mais importantes bibliotecas de literatura alemã e arquitectónicamente, uma das mais bonitas. É que os amadores queriam os seus livros em ambiente digno deles, e achavam-nos por sua vez dignos de os “ornamentar” a eles próprios. Sobretudo a elas, neste caso. Madame de Pompadour quis sempre ser pintada com um livro na mão, e a moda perdurou. Em princípios do século XIX o pintor David imortalizava a bela Madame Récamier com os seus livros como pano de fundo
Eram bibliotecas domesticas um pouco especiais essas que nasceram nos séculos XVII e XVIII nas grandes casas da Europa.
O século XIX trouxe o livro a outras camadas da sociedade. Não deixou de haver bibliotecas particulares de grandes coleccionadores, de bibliófilos, mas mesmo as famílias menos abastadas tinham agora livros em suas casas: os volumes dos clãssicos, os primeiros romances de mulheres para as senhoras, as obras de história e filosofia para o homem da casa. Nas casas havia um ou dois armários com livros “bons” para toda a família, eram verdadeiras bibliotecas familiares.
Nos nossos dias não deixámos de ter colecções de livros, arrumados agora à nossa maneira. Hesitamos em tratar de biblioteca a umas estantes que nem sempre primam pela beleza arrumadas nos espaços em que melhor convém. Parece que são bibliotecas domesticas. Adiante!
Á falta de tratar - como prometera - de bibliotecas de mulheres, cito o que duas leitoras escreveram sonre os seus livros.
A grande leitora que foi a marquesa de Sévigné levava os seus livros atrás de si quando ia para a sua casa de campo. Periodicamente tinha de refazer as finanças, abaladas pela vida de Paris, e recolhia-se - por vezes na companhia do filho, grande leitor também ele - à sua propriedade dos ‘Rochers’ na Bretanha. Levava livros, e dava-lhes um arranjo em local adequado. Descreve-o à filha, em carta de 5 de Junho de 1668
"Trouxe para aqui uma grande quantidade de livros escolhidos; vou arrumá-los daqui a pouco. Não se pega num, seja ele qual for, que não se tenha vontade de logo o ler todo inteiro. Toda uma prateleira de devoção, e que devoção! Meu Deus, que inspiração para honrar a nossa religião. Outra é toda de obras admiráveis de história; outra de moral; outra de poesia e de novelas e de memórias. Aos romances desprezámos, foram relegados para os pequenos armários. Quando entro neste gabinete, não percebo porque de lá saio. É digno de ti, minha filha".
Não sou uma madame de Sévigné, mas também tenho uma filha vivendo longe e também lhe escrevo sobre livros, os meus e os de outros:
“mando-lhe um recorte mostrando o Dr. xxx xxx na sua biblioteca, escrevi-lhe em carta de xx de 2002. Interessam-me imenso as bibliotecas particulares das actuais figuras gradas cá da terra, e a primeira coisa que procuro observar quando vejo fotografias deles, tiradas nos seus interiores, são os arranjos dos seus livros. E o que lhe digo é que me consolam da minha pelintrice. Não vou a férias às ilhas do Pacífico, não tenho Mercedes (com pena), não tenho montes alentejanos. Em resumo, sou uma pelintra ao pé da maioria dos outros possuidores de muitos livros, mas a minha biblioteca, ou livraria, ou quarto de livros, ou o que lhe quiserem chamar, compara-se favoravelmente com aquilo que, em matéria de arrumação de livros, me é dado ver dos interiores de personagens da nossa vida política e social em jornais e revistas”.
Biblioteca particular, familiar, caseira, domestica?
• Christine de Pizan, La Cité des Dames Paris, 1405
** Abel Barros Baptista A Infelicidades pels Ribliografia. Crónicas
***Joachim Joseph Moreira de Mendonça, Historia Universal dos Terremotos...... e as particularidades do ultimo. Lisboa 1758
****Nancy Mitford, Madame de Pompadour Hamish Hamilton, London, 1954

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E porque nao um blogue?

>> segunda-feira, 9 de março de 2009


28 E porque não um blogue?
Todos os bloguistas tiveram decerto a sua especial razão para entrarem na blogo-esfera, e hoje vou falar da minha razão.
Não sei o que faríamos sem frases banais para começar artigos.
Há anos, quando um escritor tinha alguma coisa a dizer, mas não havia quem fizesse o favor de o ler, o autor, mais ou menos desanimado, punha o seu textozinho ‘na gaveta’. Era a expressão usada. Também havia, e creio que ainda há, uma expressão para dizer que o autor está momentaneamente incapaz de começar, continuar, ou terminar a obra prima que está ideando ou elaborando. O autor está ‘bloqueado’. Eu vivo de momento as duas situações. Tenho textos ‘na gaveta’, e tenho um livro preparado, estudado, pronto para ser redigido, que pretendo intitular “A curiosa história da Crónica de Zurara”, e que não consigo começar. Estou portanto também ‘bloqueada’.
Não me faltam escritos prontos: um livro histórico, que está à espera de editor --e os editores não pulam de entusiasmo perante livros de história -- um romance histórico (que eu adoro) a publicar em breve pela Presença - antigamente dir-se-ia que estava no prelo, ou seja na prensa, hoje já não deve haver prensas, e quanto a sair em breve, também é força de expressão - e ainda tenho, como disse, um texto ‘bloqueado’. Pois foi ao tentar mais uma vez pôr aquilo em letra redonda, e quando mais uma vez não o consegui, que me lembrei desta coisa que se chama blogue. Porque não escrever uma série de artigos sobre temas literários e lançá-los na tal blogo-esfera? Talvez desbloqueasse, e decerto haveria uma ou outra alma que me lesse.
Telefonei ao senhor Casaca. O senhor Casaca vive em Sesimbra, têm aí o seu escritório, e é perito em Macs. Sempre que preciso de dar um passo em frente nesta nova arte, dou uma lição com o senhor Casaca. Lição interrompida com fascinantes relatos da pesca ao largo do Cabo Espichel, porque o senhor Casaca, filho de pescador, é pescador ao domingo. E pesca pargos que são a minha inveja. Eu tenho pouco a contrapor, mas sou tratada por Doutora - o que não sou - e me dá uma certa auréola de sapiência. O senhor Casaca não ficou tão espantado com o meu projecto como eu pensava, mas avisou-me dos perigos.
--Que perigos?
–Ah, a doutora sabe lá.
Mas não era preciso preocupar-me, se algum insulto, ou comentário pouco decoroso surgisse em resposta a um dos meus artigos, o senhor Casaca apagaria o escrito infame.
--E o perfil?
--Que perfil?
--Assim como a doutora é.
Quem me lesse, perceberia que perfil era o meu, respondi.
Fotografia é que tinha de ser.
Pois vá pela fotografia.
A composição não nasceu de um momento para o outro, esperei um mês, quase dois. Aproveitei para me inteirar do que se fazia por aí em matéria de blogues literários, e constatei que na sua maioria estes se dedicam à critica ou análise de livros. Alguns textos excelentes, aliás. O que me confirmava no propósito de abordar os mais variados temas literários, talvez até do que entendo por critica, mas de, pessoalmente, evitar um tema que me assusta. Perante a abundância de blogues literários, pensei mesmo em desistir. Quem me iria ler? Mas não pensava eu o mesmo, sempre que escrevia um livro? E não continuava a escrever? Pois então. Porque não ir em diante com o blogue?
E, finalmente vi-me perante a amostra do meu futuro blogue - composição do senhor Casaca - muito mais imponente do que eu imaginara, e, quisesse ou não, tive de começar.
Os primeiros artigos foram lidos por alguns indulgentes membros de família – houve logo uns que me comunicaram que adoravam ler – enquanto a mimha filha e as sobrinhas leitoras declararam que esperavam para ver antes de se pronunciar. Mas que não pusesse a fasquia muito alta. Não é coisa que eu costume fazer em matéria literária, e não me desiludi com os poucos leitores que tive de princípio. Agora já tenho mais, mas não muitos, entre quarenta a cinquenta leitores para cada um dos meus artigos, e estou contente.
--Uns míseros quarenta a cinquenta leitores? Muitos deles provavelemente nem lêem, e está contente?
--Estou, sim senhor, e gosto do que faço.
--Porquê?
Foi o que me perguntei a mim mesma. E reparem como consigo resistir à citação óbvia.
Os artigos semanais, por pequenos que fossem, tinham de ser bem escritos e bem estudados, dariam trabalho. Mas isso não me assustava. Eu fui uma daquelas irritantes meninas que há em todas as aulas, que gostam de estudar. Creio que não chegava a irritar, porque era crime que sempre disfarcei, mas a verdade era essa: eu gostava de estudar. Até gostava de fazer os meus deveres de casa. O gosto manteve-se pela vida fora, passei de ser a menina estudiosa, para ser aquela Theresa, que tem a mania da leitura. –O que vale é que o marido também é grande leitor, acrescentava-se.
E agora sou aquela Theresa, a mãe da Isabel, que escreve livros e a quem, além de escrever livros, lhe deu na cabeça ter um blogue. Assim é, e gosto.
Gosto de pensar no artigo que vou publicar na segunda-feira, gosto de o estudar como se dependesse dele ganhar uma fortuna. Faço o possível para que aqueles que me lerem, entendam o que eu pretendo dizer, e até, se possível, se interessem pelo que escrevo.
Pierre Assouline diz no livro que escreveu sobre as experiências com o seu blog “la république des lettres”*, que um blogue é o ultimo salão onde se conversa: “Un blog est un salon. Le nouveau et le dernier salon ou on cause...........” Estava a pensar nos salões do século XVII, evidentemente, ali onde a sociedade francesa elevou a conversação a uma arte. O sentido entende-se: Tal como nos ‘salons’ literários, nos blogues conversa-se. Com uma diferença monumental. Os parceiros de então conheciam-se, na Net, os parceiros de conversa desconhecem-se. Pois sim, mas em contrapartida, o seu número e a sua variedade não têm fim.
Eu conto já entre os meus desconhecidos parceiros com alguém que conversou comigo sobre os Nibelungos, tenho alguém com quem estou falando sobre plágio e com ambos espero vir a conversar sobre outros temas. Pelo amador de um dos meus livros penetrei com ele num blogue muito masculino ali para os lados de Coimbra. Apesar de muito bem acolhida, senti-me um pouco estranha, percebi o que sentiu Alice no paiz das Maravilhas, ao encontrar criaturas de outro mundo, que pareciam do dela. Ou vice versa. Encontrei alguém que – tal como eu - lê livros sobre as batalhas medievais. E com quem espero discutir o assunto logo que tiver lido os livros de que ele me falou. Encontrei alguém que, tal com eu, ia morrendo de rir ao ler a história do tio Podger a pregar um quadro. E ainda outros que me fazem rir com os seus próprios escritos e humor. Conversei – e teria gostado de falar mais - com alguém que tem os mesmos problemas que eu quanto à arrumação de livros. Conversei com alguém que se preocupa como eu com a saúde do comissário Maigret.
Adérito, que ali me introduziu, o simpático e vigilante Cão, Britannicus, Viriato dos Santos, Tinoni, outros ainda, anónimos, ou com nome próprio, foi bom, é bom, conversar com eles.
E o que dizer de ter reencontrado, e com tanto gosto, a autora de um blogue literário, com quem há anos contactara? Devo-o ao fenómeno que é a blogo-esfera.
Quer isto dizer que não preferisse ser publicada em jornal ou revista? Foi hipótese que neste caso não cheguei a pôr, mas, citando Daniel Abrunheiro em comentário que ele me enviou, eu, tal como ele: “prefiro o papel”. Assim como prefiro a leitura com o livro na mão, à leitura no computador. Mas uma série de artigos em blogue não é um livro, é uma conversa. E eu gosto de conversa. De boa conversa. Tenho-a no mundo dos blogues, não a teria em jornais ou revistas

*Pierre Assouline, Breves de Blog. Le nouvel âge de la conversation Les arenes

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De livros. De os roubar, copiar e adoptar

>> segunda-feira, 2 de março de 2009



Livros. De os roubar, copiar e adoptar
Há meses vi roubar livros na FNAC do Chiado. Eu estava em baixo na secção dos livros, vi um homem subindo a escada, reparei como ele olhou para a direita, onde sabia estar um empregado, como pôs um livro no interior da aba do casaco, imagino que em algibeira praticada para o efeito. Subiu mais uns degraus, virou-se de novo para o lado perigoso, sossegou, pôs outro livro em outra algibeira na outra aba do casaco. A curiosidade. feminina sendo o que é, subi a escada um pouco atrás do homem. Vi como ele |à saída abriu o casaco com as duas mãos, como alguém que está com muito calor. Talvez para enganar os sistemas electrónicos? Se era esse o fim, conseguiu, levou os seus livrinhos.
Ignoro de que tipo de ladrão se tratava. Há os que roubam para revender, há os que roubam sem fins lucrativos, para si, para ler, ou estudar, porque gostam de os ter e não os podem comprar. Há outros. E que não actuam nas FNACs. São os amadores de livros raros e preciosos, os bibliófilos que não resistem à tentação de roubar o que não podem obter de outra forma. Talvez a rara primeira edição há muito ambicionada, talvez uma obra prima da impressão, um exemplar saído da oficina de Aldo Manuccio, por exemplo. Raridades tentadoras não faltam.. Houve ladrões bibliófilos que ficaram célebres pelo volume e qualidade dos roubos que cometeram e pela pessoa que eram. Citam-se larápios historiadores, homens de ciência e, o que, como católica lamento, pelo menos dois cardeais, um dos quais veio a ser Papa. Consola-me que se nomeiem também eminentes teólogos protestantes praticando a arte. Houve furtos de colecções completas. Num pequeno livro intitulado “Buchmenschen in Buechern” - em português, “O homem do livro na literatura” - o autor relata o caso do conde Libri, um nobre italiano, professor de física na Universidade de Pisa e no Collège de France, membro da Académie Française, redactor do Journal des Sciences, o qual, eleito para a comissão encarregada de elaborar o catálogo dos manuscritos antigos das bibliotecas franceses, aproveitou o acesso livre que lhes tinha para formar uma das maiores colecções privadas de obras manuscritas do seu tempo. Até ser descoberto.
Comum a todos os ladrões de livros, há, creio eu, a convicção que roubar livro não é grande crime.. É só um livro, não é?
Um tipo especial de roubo de propriedade literária é o plágio. Na Roma antiga designava-se por plágio o roubo de um escravo, de um homem que pertencia a outro. E um dia, não sei quando, passou a ser designado com essa palavra o aproveitamento da escrita de um autor por outro. O que nem sempre foi tido por condenável, note-se. De momento que aquilo ali estava para todos lerem, também ali estava para todos copiarem. Na antiguidade romana não deixou contudo de haver discussões sobre quem copiara de quem. ou quem se inspirava em que obra. Nos tempos dos trovadores, era praticamente impossível saber quem primeiro ideara os contos e as lendas e os romances, levados de terra em terra, de castelo em castelo, pelos contadores de histórias. Com a descoberta da impressão, e o autor começou a assinar as suas obras, já não apreciava que outro se aproveitasse do seu texto, dando-o como seu.
Até que “ sob a pressão das ideias românticas, se começa a desenvolver uma nova atitude em relação à literatura.” Traduzo este trecho de “Le Plagiat” da autoria de Christian Vandenloyse.*
“A estética da imitação que reinara nas letras desde as suas origens, é substituída pela estética da originalidade que levará a uma procura acelerada da novidade. O escritor é visto como pertencendo a uma raça à parte, o seu génio é magnificado e a sua escrita profissionalizada. A crítica literária que também se tornou profissional acelera essa tendência……” Começou a caça ao plágio. Descobrem-se plágios desde Shakespeare a Dickens, desde Corneille a Voltaire e por aí fora.
Voltemos aos dias de hoje.
Júlio Pinto, um jornalista satírico, que durante algum tempo enriqueceu o ‘Independente’ com óptimos pequenos artigos sobre livros e leituras, falava num desses artigos, intitulado “Talento imitativo”, de um grande êxito editorial que seria quase decalcado de outro. Dava exemplos. Assim lia-se no primeiro livro: “…o eco longínquo das vozes que me trespassam”, e no outro: “…trespassava-me o eco de longínquas vozes”. E ainda, no primeiro: ”Minha mãe abraçava-se a meu pai, intimando-o a viver”, e, no segundo: “…e os meus dedos intimavam-na a viver”.
Surge aqui a minha dúvida: será que o segundo autor copiou na verdade, propositadamente, aqueles trechos do primeiro autor? Não será antes que ele, tendo lido o outro livro, o tenha apreciado tanto que fixara algumas das expressões e instintivamente as usara também? Todo o escritor sabe quantas vezes lhe vêm à pena expressões que não são suas, que lhe ficaram de leituras anteriores, ou de livro em que se exprimia justamente aquilo que ele também queria dizer.
Eu que o diga. Em um dos meus livros de ficção a heroína relembra a viagem que há anos fizera no então chamado Sud Express quando, vinda de França, regressava a Portugal: a travessia das vastas terras de Castela, as paragens nocturnas nas isoladas estações, a sua entrada em Portugal pela madrugada. Eu, que já fizera a mesma viagem, e que lera A Cidade e as Serras, tive de me esforçar para não descrever a viagem da minha Margarida com as palavras com que Eça de Queiroz descrevera a viagem de Jacinto.
Não digo que não haja quem propositadamente alinde os seus textos com a seara alheia, mas há muito plágio involuntário, ou – digamos - de boa fé. Em outro dos meus livros meti a dada altura uma pequena história, que vinha muito a propósito. Tinha-a lido algures, com certeza, mas não fazia ideia onde fora, ou se alguém a contar. Passaram-se anos, não mais pensei nisso, e eis que agora, que estou a escrever sobre plágio, sei finalmente de onde tirei a ideia. Sei finalmente onde a li, e de onde a tirei. Foi no livro “Erdachte Gespraeche” (Conversas ideadas) de Paul Ernst, de uma conversa ideada entre Sócrates e Alcibiades.
Em “As Casas da Celeste”, Ema, uma das suas heroínas, diz:
“—Pois vá, a história da galinha. Não a vou contar toda, porque a Olga rebentava. Mas é uma história que eu aplico muitas vezes e que me dá muito que pensar. Dita depressa, é assim: ‘Uma mulher tem uma galinha. Vem a raposa, leva-lhe a galinha, e come-a. A mulher diz que a raposas é uma ladra e uma assassina. Mas a raposa acha que fez bem, ela vive de galinhas. A galinha, essa, em vida, comia vermes. A mulher achava muito bem que a galinha comesse vermes, que até lhe ficavam os ovos mais gostosos. Mas os vermes, esses, achavam que galinha era uma assassina”. E por aí fora....
Mea culpa,. mea culpa. Ao escrever aquilo, estava a escrever o que tinha na memória de um dialogo entre Sócrates e Alcibíades imaginado por Paul Ernst. Estava a plagiar. Só que não fazia ideia a quem plagiava.
Já me sucedeu ler em algum livro trecho em que reconheço mão alheia. Ainda há pouco me indignei ao reconhecer um ideia de Maupassant em autor (português) moderno. Até que me lembrei do meu próprio crime.
Como autora, ainda não tive a honra de ser plagiada, mas achei graça quando percebi pela leitura de uma autora light da nossa praça, que ela se dera ao trabalho de ler os meus livros. A descoberta do passado da mãe da sua heroína num livrinho de veludo encarnado, não queria dizer nada. O meu livrinho era de veludo azul. Mas quando a autora fala de “linhagem” a propósito de uma “boa” família do Estoril, a coisa já deu para pensar. É que “linhagem” não é expressão comum, e nunca se emprega em relação de famílias de hoje, por muito boas que sejam. Posso estar enganada, mas suspeito que a autora em questão leu um meu romance histórico passado em que se fala em linhagem. Sabia-se então o que isso queria dizer.
Como disse um autor francês, só o primeiro é que não copiou de ninguém: "le plagiat est à la base de toutes les littératures, excepté de la première, qui d'ailleurs est inconnue".
Recentemente surgiu uma nova forma de plágio. Um autor escreve um romance histórico, e publica no fim uma “bibliografia”. Isto feito, imagina que está livre de usar dos livros aí mencionados para seu próprio uso. Mas não está. É evidente que na sua maioria esses autores o fazem por pura ignorância do que seja bibliografia. Como autores de ficção ignoram que o facto de indicarem quaos os autores que leram para escrever o seu livro, não os autoriza automaticamente a usar partes do texto deles, adaptando-o ao seu. Uma bibliografia no fim do livro - coisa pouco usada em ficção - permite que se citem frases de algum dos autores consultados, mas sempre com a menção do seu nome e obra. Adoptar frases de outro autor na nossa obra quando, em ‘bibliografia’ no fim do livro indicamos que lemos essa obra, não deixa de ser plágio.
ªCrhistian Vandenloyse Le Plagiat
wwwletttres.uottava ca/vanden.plagiat.htm

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