Livros de viagem. De turismo

>> segunda-feira, 25 de maio de 2009


Turismo no Egipto no século XIX
O fenómeno ‘viagem no século XIX’ não deixa de espantar. A impressão que se tem, é que nesses anos toda a Europa saiu de casa para ‘ ir ver’. Sobretudo, é preciso que se diga, para ir conhecer e estudar: “havia muito simplesmente uma reverência pela ciência”. A viagem podia ser unicamente uma curiosidade declarada, e podia ser uma verdadeira expedição com fins científicos de geografia, zoologia, botânica, arqueologia. escreve Wilfred Thesiger*.
Mas começava também a surgir o viajante que viajava para seu próprio entretenimento, para ver por ver, nascia o turista, e com ele a viagem organizada. Na Alemanha, Karl Baedecker publica em 1828 o seu primeiro guia de viagem, e, mais tarde, em Inglaterra, Thomas Cook organiza viagens de grupo. Leva 350 pessoas em excursão à Escócia, e em 1867 organiza a sua primeira viagem ao estrangeiro, levando um grupo de ingleses a Calais, a tempo de poderem visitar a Exposição de Paris caso quisessem. Nos anos seguintes leva grupos à Suíça, à Itália, ao Egipto, e até aos Estados Unidos. Tem mesmo um sistema de viagem individual, nos quais o viajante ia independentemente, com a agência pagando- por um determinado período a alimentação e a acomodação.
O turista do século XIX incluía escritores e pintores, gente culta, que se achava na obrigação de anotar o que via e de o comunicar ao seu semelhante. Enquanto os geógrafos mediam as serras e os rios, os zoólogos estudavam peixes, aves e mamíferos, e os botânicos classificavam as plantas, escritores e poetas descreviam as “impressões” que paisagens e monumentos lhes tinham causado, e mais tarde aproveitavam as suas impressões na criação literária. Um dos países mais visitados por esse tipo de viajantes era o Egipto, em particular por franceses, os quais, com a decifração dos hieróglifos conseguida por Champalion, se achavam em relação à terra dos faraós numa situação privilegiada, de bom pai triunfante.
Tenho dessa época ‘Le Fayoum, Le Sinai et Petra’ de Paul Lenoir**, e em português, naturalmente ‘O Egipto’ de Eça de Queiroz.
Lenoir, pintor, viajou ao Egipto em 1872 com um grupo de colegas, estudantes de Belas Artes, em excursão organizada pelo pintor Jean Léon Gérome. Iam ver e estudar as paisagens e os monumentos como objectos da sua arte.
Eça fizera a viagem em Novembro de 1869, para assistir à inauguração do Canal de Suez, projectada para o dia 17 desse mês. Ia em companhia de um amigo, o conde de Resende. Eça tinha 23 anos, o amigo 25. Dois lisboetas elegantes que queriam ver como era aquilo do Egipto e das pirâmides.
O livro de Eça de Queiroz transmite bem o que era a viagem de um turista diletante do tempo, e parece-me que só isso desculpa que o filho tenha publicado aquelas impressões, que seu pai deixara na gaveta. É que mesmo um grande escritor não se inicia logo com uma obra de qualidade, e “O Egipto”, sobretudo na sua primeira parte, é um acabado exemplo disso. Sucedem-se os lugares comuns, os superlativos, as analogias. Os poetas e os deuses são constantemente chamados para ilustrar as imagens, nada e ninguém é como é. Pessoas, objectos, monumento são sempre como outra coisa qualquer.

“Ontem dobrámos o cabo de S. Vicente sob um luar digno de Shakespeare. O mar infindável, sereno, sem trevas, belamente escuro, tremia sob o grande raio luminoso da lua, como os antigos animais sob a carícia dos profetas. À direita do vapor, negro de perfil, seguia-se o Cabo, de linhas precisas e nítidas, e a decoração admirável da noite assentava silenciosamente em redor. O solo final da ‘Áfricana’, com a sua lenta desolação aflita, seria grandiosamente belo no meio desta imensa paisagem severa cheia das coisas infinitas!”

Passam Gibraltar, estão no Mediterrâneo, “ao fundo, sobre a negra terra de África, erguia-se o Atlas, tão belo, tão forte, tão vivo com nos velhos tempos mitológicos, quando ele sustentava nos ombros gigantescos o céu com todo o seu povo de deuses.”

“De resto a viagem era adorável. O mar parecia uma seda levemente franzida..”

“Iam a bordo algumas individualidades curiosas: um oficial da Índia ..... A sensação nele era rápida e explosiva: um verdadeiro bárbaro. De resto, um ‘gentleman’.”

Pararam em Malta, visionaram o seu passado sob os seus cavaleiros guerreiros.
“Umas horas depois, toda aquela visão da história e do romantismo tinha desaparecido no meio da noite, e nós continuávamos no mar nocturno a nossa viagem para Leste.

“De manhã avistámos uma terra baixa, negra, ao nível do mar. Era o Egipto. Aproximámo-nos da entrada terrível.”

“Eu, entretanto, pensava que ia pisar o solo de Alexandria. Estávamos talvez na mesma água em que outrora tinham fundeado as galeras de velas de púrpura, que voltavam de Actium!”

“Assim tu nos apareceste, o negro Egipto, romântica terra dos Califas!”

Numa carruagem forrada de chita “entre o monte das nossas bagagens” os viajantes seguiram para o hotel. Ficaram dois dias em Alexandria: “tínhamos curiosidades clássicas a examinar”. Foi uma decepção: “deixámos Alexandria alegremente. Aquela monótona cidade, cheia de ‘boulevards’ e de casinos, no sítio onde o solo ainda está quente dos passos dos Ptolomeus e das sandálias de Cleópatra, pesara-nos como a página dum livro comercial intercalado no arabesco fantástico d’As Mil e Uma Noites!”
O livro prossegue neste estilo.
No Cairo os viajantes instalam-se no Shepheard’s, o melhor hotel do Cairo.
“São sete horas da noite. O gás ilumina o largo corredor lajeado; os aparelhos cintilam; os ‘drogmans’ circulam. Um árabe percorre os corredores batendo uma larga placa de metal, como para anunciar um velho rito. Aquele som velado, doce e penetrante, espalha-se num eco esbatido pelas largas salas. É o jantar.
A imensa sala adornada de colunas está cheia de luz.............aqui é o nosso mundo europeu, civilizado, sábio, filosófico, egoísta e rico......”

A partir daqui, talvez cansado de tantos superlativos, ou porque o que via era tão esmagador, que não precisava de hiperbólicos, Eça baixa de tom, e temos descrições mais simples, mais naturais. Admira as casas árabes “feéricas, de ‘moucharabièhs’ maravilhosos, cheios de arabescos, rendilhadas, bordadas, riscadas de listras vermelhas..”. Os dois amigos adoptam o burro como meio de transporte, como fará mais tarde o grupo de Paul Lenoir. São turistas uns e outros, com anos de distância vêem e admiram as mesmas coisas.

As descrições de Lenoir não têm pretensões literárias. Descreve o que viu e o que sentiu com palavras simples. O seu grupo está hospedado em casa de um cozinheiro francês, e a única queixa do grupo era de menus demasiado abundantes. Era comida demais para quem queria estar leve, pronto para a aventura. Não que a coisa da comida não os interessasse. O grupo tinha o seu cozinheiro, e Lenoir descreve com entusiasmo a fabulosa marmita sueca que acompanhava a caravana: uma panela solidamente encastoada numa caixa de madeira completamente forrada lã e hermeticamente fechada. Punham-se no tacho todos os ingredientes para um ‘pot-au-feu’ e uma hora antes de partir juntava-se-lhe o que bastava de água a ferver. Fechavam-se tacho e caixa, e o cozido fazia-se por si próprio. Fosse a marmita de carro, a cavalo, a burro, ou a dromedário. Quando, tendo partido de manhã cedo, “chegávamos estenuados e esfomeados ao nosso destino. era um pot-au-feu’ fumegante que nos estndia os braços”.
Mas isso seria depois, ainda estão no Cairo, percorrem as sua ruas, vão aos bazares, entram nas mesquitas. Tal como Eça usam burro como transporte.

“A burro, meus senhores, ‘a burro’! E como num sonho japonês, estávamos todos ‘a burro’ antes mesmo de saber porque”.

“O burro é não só o primeiro amigo que se faz no Cairo, é também o melhor par de sapatos: as botas só se usam ao colocá-las ao pé da cama..............vivemos ‘a burro’ na nossa expedição ao Feyoum, assim como vivemos ‘a dromedário’ nos nossos dois meses de deserto a Sinai e a Petra”.

“O Mouski ..... Esta rua imensa, ou antes esta verdadeira avenida coberta, resume de forma completa e admirável toda a circulação das ruas orientais no que elas têm de mais vivo e mais pitoresco: inumeráveis boutiques cheias das mercadorias mais extraordinárias pela sua variedade e profusão.”
Admiram como Eça as “admiráveis esculturas em madeira que, sob a forma de ‘moucharabièhs’, servem de janelas e de ventilação às habitações”
E, uma vez o primeiro entusiasmo passado, analisam o que vêem: “Aquilo que um sábio académico (Ampère) designou muito justamente como febre da chegada ao Cairo, já a tínhamos experimentado, começávamos agora a analisar um pouco mais esse primeiro espanto.”
Em caravana, com tendas e material de cozinha e de dormida vão ao deserto, a Gizeh, a Sakhara.
“toda a cidade, invadida pelas areias está por descobrir, mas as incríveis dificuldades que se encontram quando se querem fazer pesquisas nesta areia movediça vão infelizmente retardar a descoberta dos tesouros e das maravilhas que aí estão certamente enterradas. Viam-se inúmeras ossadas, que a deslocação do solo tinham posto à vista, não tínhamos mais que nos baixar para colher restos humanos calcinados pelo tempo. Uma infinidade de múmias mutiladas cobriam a areia ....... eu tirei de um crânio de mulher, escondido sob montões de bandelettes e de cabeleiras, dois dentes admiráveis de brancura, que mereciam ter pertencido a uma serva de filha de faraó. O meu amigo G. ofereceu-se dois crânios, e eu tive a sorte de encontrar um daqueles pequenos amuletos em terra esmaltada ... uma mulher com cabeça de leão. Esta profusão de despojos à mão de semear e á superfície da areia faz pensar no que certamente se descobriria por baixo, se o trabalho das pesquisas não fosse tão dispendioso e tão difícil.”

Os futuros pintores regressaram ao Cairo, para dali atravessarem o Sinai e irem a Petra.
A viagem de Eça de Queiroz e do conde de Resende foi menos aventurosa. Assistiram à inauguração do Canal de Suez e regressarem a Portugal.
Não é a literatura de viagem da minha preferência, mas creio que os dois livros testemunham bem o que era a viagem turística do século XIX.

*em John Kaey Travel in Dangerous Ages Robinson. Londres
** Paul Lenoir Le Fayoum, le Sinai et Petra. Expedition dans le Moyen Égypte et l’Arabie Pétrée sous la direction de J.L. Gérome
Henri Plon, Imprimeur-Éditeur Paris

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Livros de viagem. Ao Amazonas no sec.XIX

>> segunda-feira, 18 de maio de 2009


Ao Amazonas no séc. XIX
Não sei quando e como nasce em nós, que gostamos de livros de viagem, o gosto por esse género de literatura. Não é coisa que se nos ensine na escola, nem mesmo em lições de geografia algum professor se lembrou de nos sugerir um livro de viagem. Os livros de aventura da nossa juventude é que nos abriram os longínquos horizontes. A história de Robinson Crusoe na sua ilha, os livros de Júlio Verne. de Rafael Sabatini. de R.L.Stevenson. E para as crianças que sabiam alemão, os livros de Karl May
O autor nunca saíra da sua nativa cidade de Dresden, mas tinha a habilidade de estudar tão bem as terras e os percursos, que mesmo os melhores geógrafos não encontravam por onde lhe pegar. Nós, jovens leitores, não pensávamos se aquilo estava mais ou menos certo, acompanhávamos com entusiasmo - muitas vezes com o atlas – os heróis dos livros através dos desertos da Arábia, dos desfiladeiros do Curdistão, das montanhas dos Balcãs. Passávamos o Atlântico, estávamos no Far West, conhecíamos as suas pradarias. Íamos ao rio de la Plata.
Talvez que seja nesses livros de aventura da juventude que assenta a futura leitura de livros de viagens. Mas passa muito tempo antes de lá se chegar. Porque depois deles se entra no mundo encantado do romance, e durante anos não se sairá dele.
Alguns nunca dele saem, outros descobrem um dia que ainda há outras formas de literatura e, entre elas, e porque não, a literatura de viagem.
O século XIX, que viu nascer aqueles nossos livros de aventura em países remotos, foi também o grande século da literatura de viagem. A Europa queria finalmente saber como eram as coisas em outros continentes, como era a sua flora, a sua fauna, como eram os costumes dos habitantes dessas terras desconhecidas, que línguas por lá se falavam, que literatura havia. Nasciam por toda a parte os Institutos Científicos, as Sociedades de Geografia, as Academias de Línguas Orientais, os Museus de História Natural. Algumas dessas instituições, generosamente financiadas, podiam pagar as viagens de estudo dos seus cientistas, e havia mecenas que, não podendo eles ir, mandavam outros para lhes contar como era aquilo por lá. Alguns viajantes iam pelos seus próprios meios, e, todos em geral com um fim em vista: de estudar a fauna, a flora, a natureza. E como para o viajante do século XIX tudo que via era novo, tudo lhe parecia digno de recordar, e de narrar, de explicar aos que tinham ficado em casa. Todos os anos se publicavam na Europa novos livros narrando as impressões de viajantes.
Há tempos comprei, através de dois diferentes catálogos, dois desses livros de viagem publicados no século XIX. Um, ‘The Naturalist on the Amazons’, de Henry Walter Bates*, o outro, ‘Narrative of Travels on the Amazon and Rio Negro’, de Alfred Wallace**. Só depois de os ter lido, e de me ter interessado pelos autores, de quem ignorava tudo antes de os ler, é que realizei que os dois livros se completavam.
Alfred Wallace era professor num colégio de Leicester. e ai encontrou Henry Walter Bates, um jovem e entusiástico entomologista (que é, segundo me informam, como se designa o zoologista que se dedica em particular ao estudo dos insectos). Os dois homens descobriram que partilhavam o mesmo gosto pela História Natural, que ambos tinham lido o mesmo género de livros, entre outros - lê-se em Wikipedia, henry Bates - “o anónimo Vestiges of the Natural History of Creation***, que fizera da evolução um assunto de debate diário entre a gente letrada”.
ambém tinham lido o livro de William H. Edwards sobre a sua expedição ao Amazonas, e foi essa leitura, segundo se lê em Wallace, que os fez pensar numa ida àquela região. Edwards escrevera que o acesso não era difícil, e quanto às despesas da viagem podiam cobri-las, achavam eles, coleccionando plantas e animais para os museus inglesas. O interesse pela história natural era geral em toda a Europa, e pagavam-se bons preços por exemplares desconhecidos de flora e fauna.
A coisa decidida, os amigos passaram um tempo em Londres onde procuraram ver tudo o que havia a ver de plantas e animais da Amazonia já coleccionados. Contactaram museus e colecionadores de quem obtiveram listas com os respectivos desejos de espécimes, e, em Abril de 1848, embarcaram em Liverpool chegando ao Pará a 26 de Maio. Bates tinha 23 e Wallace 25 anos.
Bates não dá as razões que o levaram àquela decisão, mas Alfred Wallace explica, na introdução ao seu livro, que aquilo que o levara a empreender aquela viagem fora “um intenso desejo de visitar um país tropical, de contemplar a luxuriante vida animal e vegetal que se dizia existir lá, e de ver com os meus próprios olhos todas aquelas maravilhas, das quais lera com tanto prazer nas narrativas de viajantes”. Haviam sido estes os motivos que o tinham levado “a partir para
“uma terra distante onde reina um verão eterno”

Uma vez chegados a esse paraíso de verão eterno, os amigos instalaram-se numa pequena casa térrea fora da cidade, compram tachos e panelas e outros utensílios de cozinha, mesa, bancos e redes para servirem de cama, e começam de imediato a coleccionar. O que era fácil, os primeiros espécimens - lagartixas e formigas - tinham-nos na própria casa, a floresta nascia à sua porta, era só olhar com atenção e apanhar ou colher, e quando a gente da vizinhança soube daquele estranho gosto, trazia constantemente novo material.
O que mais havia nos arredores eram lagartos e formigas: “Lagartos há-os por toda a parte, alguns são cor de cobre, outros têm costas do mais brilhante e sedoso azul e verde, outros estão marcados com delicadas sombras e linhas castanhas e amarelas”, escreve Wallace. E formigas de todos os tamanhos por todos os lados, “a flor que se colhe, o fruto que se apanha estão cobertos delas”. Pelos caminhos encontravam-se umas formigas gigantescas, de perto de três centímetros “passeando gravemente só ou em par”. Mas o que maior impressão lhe causara, escreve Wallace, fora o seu primeiro contacto com o macaco. Uma espécie pequena, muito engraçada e aliás muito boa de comer.
Bates também comenta a abundância de lagartos e formigas, mas pasma sobretudo com o número e variedade de borboletas. “Dar-lhes-ei uma ideia dessa diversidade, se disser, que aqui, no perímetro de uma hora a pé, se contam 700 variedades de borboletas, enquanto em Inglaterra, nesse mesmo espaço se contam 66, e em toda a Europa, só 321”
Os dois companheiros fizeram uma primeira excursão ao rio Tocantins até aos rápidos de Arroyos, regressaram a Pará, e, ao fim de um ano, decidiram coleccionar cada um por seu lado. Wallace viajou pelo rio Negro e chegou à boca do Amazonas: “Dois dias depois estávamos no próprio Amazonas. e foi com um misto de admiração e de respeito que contemplámos a corrente daquele enorme e famoso rio”.
Quanto a Bates, percorreu de novo o rio Tocantins, e aventurou-se até ao Amazonas Superior, à região conhecida pelos Solimões, ou Maranhão, onde ficaria durante quatro anos e meio: “uma magnífica terra selvagem, onde o homem civilizado ate agora practicamente não pôs o pé.” Bates ignorava a existência de um livro intitulado ‘História dos animais do arvores e do Maranhão’, do padre frei Cristovam de Lisboa, mas isso é outra história.
Cada um por seu lado, os dois naturalistas iam coleccionando e conservando os seus espécimes e fazendo as suas observações sobre o que viam. Não tinham as facilidades de transporte que hoje se lhes ofereceriam, serviam-se dos transportes dos habitantes, viviam com eles a vida do rio.
Wallace interessa-se muito pelos costumes dos nativos, a sua língua, os seus artefactos, e faz constantes observações sobre a curiosa facilidade de adaptação dos animais. “Em todas as obras de História Natural encontramos detalhas da maravilhosa adaptação dos animais à comida, aos hábitos e aos locais onde se encontram. Mas o naturalista começa a olhar um pouco para além disto, e a ver que têm de haver algum princípio regulando a infinita variedade da vida animal”.
Bates concentra-se na sua especialidade, mas não deixa de fazer também ele as suas observações sobre a vida indígena e da gente com que tem contacto: os indianos, os portugueses - originalmente na sua maioria gente da classe baixa, que se misturara facilmente com os indianos - os escravos negros. Fala dos canoeiros do rio e dos cantos com que quebravam a monotonia da viagem:
“A lua está saindo
mãe, mãe
A lua está saindo
mãe, mãe
As sete estrelas estão chorando
mãe, mãe
por s’acharem desamparadas
mãe, mãe”
cantavam. “Há naquelas melodias uma selvajaria e uma tristeza, escreve ele, que harmonizam bem com as circunstâncias das suas vidas, e que em parte decerto nasceram delas: os escuros canais do rio com os seus ecos, a infinidade daquela sombria floresta, a solenidade das noites”.
“…o coro dos gritos dos animais do fim da tarde começou, tendo os macacos como principais actuantes. O seu grito arrepiante, extraterrestre, faz acrescer a sensação de solidão que nos envolve ao anoitecer….”

Wallace demorou-se três anos na Amazónia, Bates onze. Finalmente, com a saúde abalada e cansado da falta de contacto com gente com quem pudesse trocar impressões, decidiu o regresso a Inglaterra. Recordou o que a gente do Pará dizia da sua terra “Quem vai para o Pará para”, e sentiu que também ele estivera prestes a sucumbir, mas o desejo de ver de novo os seus pais e, sobretudo, de gozar de novo os prazeres do convívio intelectual, decidiram-no. Lembrado do que sucedera a Wallace, que perdera tudo que coleccionara quando o seu navio se incendiou durante a viagem para Inglaterra, Bates despachou as suas colecções em três diferentes navios. Tudo chegou a salvo. “Quando ele, passados onze anos, regressou a Inglaterra em 1869, trazia - ou tinha já mandado - mais de 14,000 espécimens (sobretudo de insectos) dos quais 8,000 eram cientificamente desconhecidos.”(Wikipeda)

O que, para um leitor dos nossos dias, faz a diferença entre o relato de um viajante do século XIX sobre a sua viagem e estadia na Amazónia e, digamos, um artigo sobre o mesmo tema num National Geographic Magazine, é que, já não falando na diferença de estilo, o artigo de hoje nos dá só mais uma visão de coisa que já conhecemos. Conhecemos o Amazonas por dentro e por fora e até por baixo em fotografias subaquáticas. Mas ao lermos as impressões do viajante do século XIX, passamos a ver aquilo pelos olhos de alguém para quem tudo era novo, e tudo para nós é novo também.

Observações à margem
Wikipedia.Henry Walter Bates
Deu o primeiro relato científico de mímica entre animals.
Como outros cientistas ingleses daquele tempo, Bates não teve uma educação formal em ciência, foi um auto didacta. Deixou a escola com doze anos para trabalhar, e enquanto trabalhava, ensinou-se a si próprio pela leitura. Nos tempos livres colecionava insectos.

Observações à margem
Reflectindo sobre os seus cinco anos de exploração, Darwin escreveu: “Aconselharia eu outros a fazer tão arriscadas jornada? Sim, mas só se tivessem um particular interesse – zoologia ou geologia - de outra forma o prazer é abafado pelos sofrimentos, pelas pequenas irritações que assumem proporções gigantescas – a falta de espaço, de privacidade, de descanço – a sensação de constante pressa, a privação de pequenos luxos, de confortos da civilização, e, pior que tudo, o constante enjôo. E os viajantes não devem ter unicamente interesses de diletante. Têm de usar a colheita das suas observações, têm de tirar dela algum fruto conclui.****
* Dent & Sons, London and New Yotk
** Fac símile da 1ª edição
*** Wikipedia Vestiges of the Natural History of Creation era uma importante controversica teoria de História Natural publicado anonimamente em 1844 defendendo uma evolução a natural ou evolucionada
****Adrian Desmond & James Mooore DARWIN

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Livros de viagens. De descobrimento

>> segunda-feira, 11 de maio de 2009



A costa de Madagascar
O comandante Humberto Leitão abriu o jornal da tarde, folheou-o, e deu com um artigo intitulado “Como Paulo Roiz da Costa foi à ilha de São Lourenço” da autoria de Theresa Schedel de Castello Branco. Confessar-me-ia mais tarde que ia caindo da cadeira.
É que ele estava preparando um trabalho sobre a exploração pelos portugueses da costa de Madagáscar, acompanhado de comentários seus sobre a parte náutica da empresa. Havia três relatos desse feito, mas faltava o mais importante, o texto do roteiro redigido por Paulo Rodrigues da Costa, o capitão em cujas mãos estivera a missão. “Tinha-se por certo, que Paulo Roiz tinha apresentado ao vice-rei circunstanciado relato da viagem que fizera. Dele, porém, não havia notícias”, escreve o comandante na introdução à sua obra.** Agora esbarrava com um artigo sobre Paulo Roiz da Costa.
A explicação era fácil. Quando da organização do arquivo de família, eu dera com um caderno escolar em que o jovem Francisco de Mello Torres tinha copiado um relato do descobrimento das costas da ilha de São Lourenço. Pareceu-me que o achado merecia ser comunicado, e escrevi o artigo que o comandante Humberto Leitão veio a ler com tanta emoção. Ele entrou em contacto comigo e de imediato se lhe confiou o códice que continha o texto para o incluir no seu trabalho.
O texto que eu descobrira não era o do roteiro definitivo. Tratava-se de apontamentos, uma espécie de diário, da exploração da costa. Era baseado nestes seus apontamentos que Paulo Roiz se propunha escrever o roteiro definitivo. Desse não há notícia. O diário, chamemos-lhe assim, está copiado, como se disse, num caderno de cosmografia de Francisco de Melo. Ora este estudava no colégio de Santo Antão da Companhia de Jesus, e considerando que na referida expedição tinham participado três padres jesuítas, é mais que certo que no seu Colégio se conservavam não só os relatos dos referidos padres, como algum texto de Paulo Roiz.
Não seria de espantar que um jovem entusiasta daquelas matérias - como Francisco de Melo comprovadamente era¬ - tivesse copiado o referido relato de motu próprio, para si. Mas o facto de o texto se encontrar nas primeiras páginas do seu caderno de cosmografia, leva-me a pensar que Francisco de Melo copiou os apontamentos de Paulo Roiz como parte do seu estudo de cosmografia. Os estudos de matemática e de cosmografia estavam em primeiríssimo lugar no colégio de Santo Antão, e é sabido que os jesuítas tinham métodos de ensino muito práticos. Pelo que não me parece impossível, que um professor tivesse ordenado aos seus alunos a cópia daqueles apontamentos, para os usarem talvez como uma espécie de livro de estudo ou como fonte de exercícios para a cadeira de cosmografia.
Aquilo não era texto que eu soubesse analizar. Mas merecia ser conhecido, e daí o referido artigo, de que em seguido transcrevo uma parte.
Em 1612 enviaram-se para a Índia duas caravelas para avisar da passagem para essas bandas de doze grandes naus holandesas. Uma das caravelas dirigiu-se a Malaca a outra a Goa. Esta ultima era comandada por Paulo Roiz da Costa, conhecido por um dos mais seguros capitães da carreira da Índia, com mais de trinta anos de serviço no mar. No regresso ao Reino devia Paulo Roiz explorar a costa entre o Cabo da Boa Esperança e o Cabo Negro. Porém o vice-rei, então Ruy Lourenço de Távora, resolve descurar essas ordens, Transformou a caravela de Paulo Roiz, em “arte redonda”, e fez dela uma linda naveta que pensava levar consigo para Portugal. Entretanto chega a Índia novo vice rei, D. Jerónimo de Sousa, e este, vendo a naveta já aparelhada, resolve aproveitar-se dela para uma missão que muitas vezes havia sido considerada, que era a exploração da costa da ilha de Madagáscar, ou de São Lourenço, como então também se dizia, verificando-se juntamente se não haveria na ilha, como muitos supunham, gente portuguesa das naus perdidas naquelas paragens, Paulo Roiz da Costa vinha-lhe a propósito para essa empresa. Desculpou-se o capitão com a sua idade, retorquiu o vice-rei “que ele quisesse quer não havia de ir à dita empresa”, que a ele havia escolhido por cima de muitos fidalgos e cavaleiros que se lhe haviam oferecido, e, diz Paulo Roiz, “vendo esta decisão tão formal, me ofereci”. Aviada a caravela, a 26 de Janeiro de 1613, levantaram âncora e partiram de Goa. Fora marinheiros lascares, iam na nau 32 homens e entre eles dois padres jesuítas, o P. Pêro Freire e o P. Lucas da Silva. Em Moçambique embarcariam ainda o P. Luís Mariano, também da Companhia de Jesus, “grande matemático, que serviria para fazer a descrição da ilha e toda a costa dela”, como se lê no Regimento. Este – o documento que continha as instruções para a viagem - abriu-se, como era dado, quando a nau estava já em mar alto, e foi lido diante de toda a tripulação. O seu teor era, na substância, que o capitão fosse dar a volta à ilha de São Lourenço “sondando e arrumando os rios, baías, baixos, ilhéus com um roteiro mui claro, com os nomes das terras, rios, portos, enseadas, ilhéus, areias, e que qualidade eram os ventos mais comuns e de quando era na Ilha o inverno e o verão. Averiguaria mais com toda a cautela se “pode haver comodidade e entrada com os naturais daquela Ilha para receberem a santa Fé católica”, e em toda a parte por onde passassem procurariam saber de gente portuguesa perdida. Se encontrasse alguma da caravela de Manuel Sousa Coutinho, cunhado do vice-rei e que há pouco se perdera no regresso ao reino “trazei-a a toda e tratai os bem. E vinde-me pedir as alvíssaras, que boas vos hei-de dar.”
Encarregava-se também o capitão de tomar nota do viver dos nativos e da fauna e da flora da Ilha para disso dar conta ao conde de Salinas, “que é curioso dessas coisas”.* E com isso, recomendando ao cuidado do capitão os padres que levava e encarecendo a harmonia entre todos os companheiros de viagem, os encomendava a Deus e os despedia. Não havia que lhe lembrar, escreveria Paulo Roiz, os cuidados a ter com a tripulação, “como todos comíamos de uma panela, desde o capitão até ao gurumete, sempre houve grande união.”**
Previa-se a duração de dois anos para a viagem. Em dia de Ramos de 1613 a nau de Paulo Roiz largou de Moçambique para a sua viagem de reconhecimento. O capitão demorara lá doze dias para apetrechar a “manchua”, uma embarcação a remos de tipo oriental, destinada a entrar terra dentro, ali onde a nau não podia entrar sem prévia exploração. Fizera-se-lhe uma meia tolda e encurvara-se para a fortificar. Na nau seguia já o padre Luís Mariano, e cinco interpretes, “línguas”, entre eles um árabe de nobre raça, grande amigo dos portugueses, conhecedor da ilha. e de nome Facabulay. Quinze dias depois de partir de Moçambique chegaram à ilha da Mazalagem Grande, residência do rei Samamo, e o único dos muitos chefes de tribo daquelas paragens de quem se sabia que tinha tido contacto com portugueses.
Paulo Roiz levava consigo uma carta de tratado que já havia sido concertada para ser finalmente assinada pelo rei. Deitando ancora diante da ilha, deram uma salva de cumprimento “como é nosso costume quando chegamos aos portos donde queremos saber”. Logo o rei lhe mandou uma embarcação e depois da conversa entre os línguas, no terceiro dia, deu-se o encontro com toda a cortesia de parte a parte. Esperava o rei ao capitão e ao seu séquito debaixo de uma grande ramada, onde havia sobre “fermosa areia” umas esteiras finas e sobre elas estavam “três cadeirinhas, uma da China dourada e outras duas lacradas feitas em Goa”. Soube-se depois que eram lastro deitado ao mar do encalhe da nau de Brás Telles. De portugueses perdidos não sabia o rei nada.
Meteram água, fizeram lenha e alguns reparos necessários, e partiram. Era uma viagem de descobrimento pacífica, de estudo. Navegava-se quase só de dia, a caravela navegando o mais perto de terra que podia, indo a manchua à frente sondando o fundo. Diante de enseadas pairavam, entrava a manchua a ver se havia ancoradouro seguro para a caravela, água, lenha. E tudo o capitão anotava, escreve ele: “para um roteiro que farei da Ilha”.

“Aos 15 de Maio depois de estar servido de tudo o necessário, fui sondar o baixo, deixando a barquinha por baliza, e, com dois quartos de água cheia, me virei com a viração de sudoeste, caminho do noroeste, que assim diz a barra, indo eu na embarcação, diante da caravela, sondando sempre com o prumo na mão por fundo de três braças escassas, que na praia mar devem ser largas no banco, e saindo fora surgi em 7 braças, esperando o terrenho de noite para navegar com ele, o que fiz aos 16 do mês com vento su-sueste, que é o terrenho por se a costa aqui lançar lés-noreste oés-sudoeste, e assim fui até à noite em que andaria 7 léguas donde tinha partido, mas. como são já muitos de Maio, entendo que são já entrados os ponentes, que estes me deram hoje tão furiosos no quarto de prima, que me foi necessário surgir com duas âncoras com as amarras pela ponta em fundo de 8 braças, bom, de areia, e com isto cassou muito a caravela com o grande mar que metia e grande vento com que estive até a quarta da alva, com que me levei por não poder sofrer o mar com o vento sul de oés-sudoeste, .......” ( pg. 90,1)

Teve de regressar ao ponto de partida.

“Aos 27 (de Maio) saí do reino de Cassane com o vento leste, terrenho, na volta de sudoeste, correndo a costa de que vou fazendo larga descrição. Nesse dia foi o vento até oeste, correndo pelo norte. Governando ao sudoeste por fundo de doze braças de vasa solta que está por todo o mais desta costa. Surgi à noite em dez braças, uma légua da terra, indo-se o vento de noite a lés-sueste. Levei-me ante-manhã com grandes vigias, e amanhecendo vi uma ilha pela proa e, largando a manchua com gente, a mandei fosse por uma banda dela, e eu fui com a caravela pela outra, com os prumos na mão, ao longo da qual fui distância de meia légua, sempre por fundo de doze braços de boa areia miúda e cascalho e areia farinhenta.....” (pg.99)

“Vi hoje (30 de Maio) um feijão (ave de tamanho de um pombo) dos que achamos por altura das ilhas de Tristão da Cunha até o Cabo, o que é maravilha: nem pode ser senão que veio de lá com alguma nau por não haver estes pássaros em outras paragens”

“Aos 31 (de Maio) tomei o Sol e fiquei em 18 graus e um quarto. Diminuiu-me a nau três léguas para o norte com as voltas que fizemos esta noite muito curtas, e por arribarem em popa ao virar, por não fazer mal à manchua, que levava por popa. Como amanheceu, que aguentou o Sol o dia e acalmou o vento sul e foi-se a viração de sudoeste e, ao tomar do Sol, tornei a tomar um baixo, digo tornei a ver um baixo, que me demorava ao sul, onde rebentavam seis mares de comprido, que deve ser certo meia légua para se ver ao longe, e como o vento me era escasso para o cavalgar por barlavento, surgi em fundo de 25 braços, areia preta .E com duas horas de Sol, caçando-me a âncora, com a grande vaga que vinha de sudoeste, suposto que o vento era pouco ou era oeste, fiz-me à vela na volta do sueste por me apartar do baixo, e, como digo, me demorava ao sul, e assim toda a noite fui com a manchua com o prumo na mão e lua muito formosa, indo sempre por fundo de vinte até vinte cinco braças. Em o quarto de prima rendido, houvemos vista do baixo a barlavento como um tiro de uma peça, e assim fui na volta da terra, que era do sueste e quarta do sul, até que acalmando o vento, surgi em fundo bom de areia com uma âncora até amanhecer...” (pg.103)
“Cumpriram tudo isto com a maior pontualidade que puderam, continuando e suando na empresa até 17 de Setembro de 1614”, navegando “por costas e lugares tão pouco sabidos, de surgir, tomando todas as velas quase quatrocentas vezes; de tornar atrás pela braveza dos tempos contrários dez ou doze.” **
Isto escreve o P. Luís Mariano na segunda parte do livro, num relato que esse sim, com a sua descrição da terra e gentes, é o verdadeiro livro da viagem..
O comandante Humberto Leitão completou o diario de Paulo Roiz com a elucidação das expressões de marinharia.


*Tratava-se de Diego da Silva e Mendonça, conde de Salinas, então vedor da Fazenda em Portugal e seu vice rei em 1615
** Humberto Leitão Os dois descobrimentos da ilha de São Lourenço mandados fazer pelo vice –rei D. Jerónimo de Azevedo nos anos de 1613 a 1616

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Livros de viagem

>> segunda-feira, 4 de maio de 2009


Livros de Viagem
Há anos um articulista do Diário de Notícias confundia - para grande indignação minha - os livros que se lêem em viagem com os livros que nos falam de viagens. Não desprezo os livros que se compram nos aeroportos para nos entreterem durante a viagem, mas não são eles os "livros de viagem": os relatos de viagens. E de descobrimentos, e de explorações.
Muitos viajantes e muitos exploradores deixaram testemunho escrito daquilo que viram, e fizeram, e sofreram. E porque o fizeram podemos viajar com os viajantes, descobrir e explorar com os descobridores. Assim, vivi os calores húmidos da Amazónia, experimentei as noites geladas e os dias tórridos dos planaltos da Ásia Central. Percorri a rota da seda com as grandes caravanas que iam à China em busca da seda e da especiaria e as traziam para os portos do Mar Negro. Descobri o deserto de Gobi com Sven Hedin, e mais tarde errei durante três anos pela Sibéria com o capitão Clemens Forell, prisioneiro de guerra alemão fugido das terríveis minas de chumbo de extremo leste da Sibéria. De onde ninguém saía vivo. Com Heinrich Harrar, outro fugitivo, estive sete anos no Tibete. Em 1849, coleccionei no Amazonas. plantas e insectos com Henry Walter Bates, e com ele parei em Óbidos e em Santarém. Os de lá, lugarejos ali plantados por portugueses anónimos, saudosos das suas longínquas terras. Em 1832 estive com o capitão Bonneville nas Montanhas Rochosas. Vi as grandes manadas de búfalos nas planícies do oeste americano. Dobrei várias vezes o cabo da Boa Esperança e o aterrador cabo Horn. Com Ibn Batúta, percorri as costas da Índia. Com o piloto Paulo Rois da Costa descobri as costas da Ilha de São Lourenço, com Magalhães circum-naveguei a terra, Fui com Cook à Austrália, e com Darwin aos Galápagos, atravessei a imensidade do Pacífico no Kon Tiki, aportei nas suas ilhas desertas, vi as suas praias e as suas lagunas. Atravessei a África com Ivens e Capelo. Vivi as perigosas calmas e as terríveis tempestades de todos os mares. Fiz incómodas viagens de comboio com Bill Bryson. Viajei calma e pachorrentamente a pé, a cavalo, em caleche, comboio e automóvel por terras de Portugal, Alemanha, Castela.
Conheci descobridores, exploradores e naturalistas, viajantes de estudo e de recreio, viajantes fugitivos e pacatos viajantes nas suas terras. Acompanhei a todos desde o momento da sua partida. E até vivi interessada os preparativos da viagem. Viajei muito. Vi muito. Sem sair de casa. Devo-o aos livros de viagem. Tenho alguns e espero escrever sobre eles em mais pormenor no andamento deste blogue. Considero a literatura de viagem uma das leituras mais satisfatórias entre tantas outras.

Observações à margem
Na mesa em que escrevo tenho um globo terrestre. Coisa modesta, globo de escola. Tenho um globo, sei quando se fez o primeiro globo, mas não pensara até hoje no que a visão de um globo teria significado para quem o viu pela primeira vez.
Em “The last voyage of Columbus” o autor, Martin Dugard, lembra que foi em 1493, ano em que Colombo regressou da sua primeira viagem, que um homem chamado Martin Behaim produziu o primeiro globo. A noção da terra ser redonda já era geralmente aceite, mas era ainda um conceito abstracto. “O globo de Behaim iria permitir, tanto a pensadores como ao comum mortal, ver o mundo de forma táctil, tridimensional”, escreve Dugard.
Martim Behaim, alemão, natural de Nueremberga, vivia em Portugal onde constituíra família, casando com uma senhora dos Açores. Em Nueremberga dizia-se que ele fazia parte dum grupo de homens encarregado pelo rei de Portugal de estudar os problemas de ordem científica da navegação e, em 1492, a cidade convidou-o a fabricar um globo terrestre. Já que ele não se cansava de afirmar que a terra tinha a forma duma esfera, pois então, que mostrasse como era, Nueremberga pagava.
Cidade aberta às grandes questões culturais e científicas do tempo, cidadãos e governadores da cidade rivalizavam uns com os outros no patrocínio das manifestações culturais. Em 1492, Hartmann Schedel, autor da Crónica Nurembergensis, obra também ali patrocinada e produzida, escrevia à margem de um dos seus livros uma pequena nota com o título: "De Globo sperico terre", onde falava do fabrico do globo por Martim Behaim, dando a entender que ele próprio participara no estudo que se fizera antes de passar à composição final e que a sua biblioteca estivera à disposição dos estudiosos. Nela tinham sido consultados, escrevia Schedel, cosmógrafos antigos como "Strabone, Pomponio Mella, Diodoro Siculo, Herodotus, Plinio secundo Novo(comensi), Dyuonisio etc," e modernos, tais como "Paulo Veneto, Petro de Eliaco (sic)" assim como os peritos do rei de Portugal, "et peritissimis viris regis Portugaliae".
Parece que há erros de distâncias no globo de Behaim, e é disso que em geral se fala. Em Portugal o homem era invejado, incomodava, e a coisa perdurou. O que importava era apontar os erros nas distâncias geográficas do seu globo. Mas o globo como objecto não mais se deixou de fabricar, e ainda hoje não há melhor forma de visualizar o mundo de terra e mar em que vivemos. Eu tenho o meu.

Das cartas à minha filha
8 de Novembro 1999
“Há dias comprei através do catálogo do Carlos Bobone dois livros óptimos. Ele não tem obras de bibliófilo, mas nos catálogos tem coisinhas variadas e muitas vezes com interesse. Um dos livros que comprei chama-se ‘The Naturalist on the Amazone’ e é da viagem e estadia de 12 anos de Henry Walter Bates, um naturalista inglês, na Amazónia no fim do século passado. A edição é de 1914 e é da EVERYMAN'S, que, apesar de ser para divulgação popular, imprimia em papel fino e bom. É interessantíssimo e as descrições são óptimas. O texto é acompanhado de pequenas gravuras tiradas do original. Confirmam aquilo que acho há muito tempo, ou seja, que os desenhos daqueles viajantes, na sua simplicidade. são mais elucidativas - ou melhor, mais evocativas - do que as maravilhosas fotografias de agora.
O outro livro é uma história da arqueologia, que ainda não comecei.

17-X-2008
“Através do catálogo da Livraria Académica do Porto comprei ........ e um livro de outra qualidade, o “Naturalist on the Amazon and the Rio Negro”, de Alfred Wallace. É uma óptima edição fac-similada do original de 1848 quando a Europa queria saber como eram as coisas em outros continentes, e, oficial e particularmente, se exploravam as terras desconhecidas. Havia mecenas que, não podendo eles ir, mandavam outros para lhes contar como era aquilo por lá. O autor deste livro colecciona animais que prepara para os museus londrinos. É agradável ler de insectos de todas as cores, tamanhos, e maior ou menor perigo para o homem, sem ter contacto directo com eles. Outros viajantes contam aventuras, este passeia-se pelas aguas do Amazonas e Rio Negro, bebendo chá e apanhando borboletas, e até agora não sofrendo grandes perigos.

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Sobre este blogue

Libri.librorum pretende ser um blogue de leitura e de escrita, de leitores e escritores. Um blogue de temas literários, não de crítica literaria. De uma leitora e escritora

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