Livros de ferias e livros esquecidos

>> segunda-feira, 27 de julho de 2009




O mês de Julho é o mês em que em geral surgem nos jornais conselhos aos leitores em vésperas de férias sobre leitura para esse período. E, não sei porque, as sugestões parecem destinadas a cultivar literariamente os veraneantes. Nunca vi que aconselhassem um romance bem romântico às mulheres, um policial, um livro de aventura, ou de ficção cientifica aos homens. Esperam de pessoas que nunca leram um livro sério na sua vida, que nas suas poucas semanas de férias se debrucem sobre os grandes clássicos. Não sei até que ponto os conselhos são ouvidos. Aqueles que são leitores levarão sempre livros na bagagem, os não-leitores não vão decerto fornecer-se de literatura quando partem para para as suas praias de eleição.
Deixem que o não–leitor não leia, e quem sabe, talvez que ele, farto de não fazer nada, acabe por pegar num livro. Entretanto, o leitor, aquele que não sabe viver sem livros, que levou consigo um saco de livros, descobre talvez que aquelas semanas, afastado do seu habitat, não são condutivos à leitura. Alguns, contemplativos, pensadores, podem estar horas a olhar para o mar, para o campo, ou fechar os olhos, pensar, e não sentir a necessidade de ler. Cada um vive as férias à sua maneira. “Deixai que cada um alcance o céu à sua maneira”, parafraseando Frederico, o Grande.
Eu já não tenho férias, porque as tenho todo o ano, mas no verão ofereço-me umas semanas em que quebro a rotina normal. Este ano, o meu blogue será a primeira vítima dessa portentosa decisão. Não o calando por completo, mas procurando que sejam outros a falar por mim. Durante as próximas quatro semanas, os meus posts não vão transmitir as minhas brilhantes ideias e opiniões, vão antes ser ocupados por textos com ideias e opiniões de outros. Lembrei-me de escolher para isso textos tirados de livros que, por uma ou outra razão, me parecem estar esquecidos.
Há livros esquecidos e livros mal lembrados. Há livros dos quais constantemente se fala, outros que são ocasionalmente mencionados, outros, que, são totalmente esquecidos e nunca mencionados ou citados. Há livros que datam, que já não se conseguem ler. Há livros que não datam, que se lêem hoje tão bem como há anos, mas que pura simplesmente desapareceram da memoria mesmo dos grandes leitores. Há livros que são politicamente incorrectos e não se publicam. Há livros que, sem qualquer uma dessas razões, estão aparentemente esquecidos, mas dos quais nós, por uma razão, ou sem qualquer razão, nos lembramos. Penso que todo o leitor tem na memória livros desses, livros de que ele se recorda e de que, inexplicavelmente para ele, os outros não se lembram.
Nas próximas semanas irei pois relembrar alguns livros, que, inexplicavelmente para mim, me parecem estar esquecidos. Não com um ensaio sobre o livro em questão e as minhas razões para o recordar, antes com pequenos extractos que dêem deles uma ideia.
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À margem, fora de propósito, mas também de um livro inexplicavelmente, esquecido:
“Assim como a mulher é dotada de espírito de observação, por razões análogas, e, podemos dizer, em consequência delas, ela é dotada de uma grande faculdade de associação de ideias. A associação de ideias é mais frequente na mulher que no homem e, o que é ainda mais importante, em ela essa associação é espontânea. O homem tem associação de ideias quando as chama por um acto de vontade. a mulher tem-nas sempre. Enquanto a mulher fala consigo, perde cem vezes o fio do seu discurso , abandona o assunto principal do qual vos estava falando para passar a observações e a factos exteriores. Essas observações, essas digressões são em geral provocadas por qualquer coisa que a mulher viu ou ouviu nesse momento e que a sua rápida associação de ideias associou imediatamente e tão vivamente a outros factos a outras ideias, que ela sente uma necessidade irresistível de lhas comunicar, como se, automaticamente, esses casos tivessem acordado em si ideias análogas.” Gina Lombroso, em ‘A Alma da mulher’-

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Duas ilhas e um queijo flamengo

>> segunda-feira, 20 de julho de 2009



DUAS ILHAS
Prometi voltar ao caso dos livros em ilha deserta, e ao comentário de JPC a esse respeito e aqui estou a cumprir a promessa. JPC escreveu que a forma literal como eu desenvolvera o problema, era errada: “este é daqueles casos que não devem ser entendidos literalmente”, escreveu ele. “A metáfora da ilha deserta é um mero pretexto, a ilha é uma abstracção que dispensa concretizações.”
A minha primeira reacção foi que JPC tinha razão, que, de facto, era dessa forma, como metáfora, que a questão era posta e devia ser tratada. Mas porque seria então que, por mais que me esforçasse, eu não conseguia pensar o caso dessa forma? Porque seria que eu, teimosamente, via e vejo na minha imaginação uma ilha, e uma ilha paradisíaca diante de mim quando me põem a pergunta ? Ilha em mar azul, com altas palmeiras, estreita orla de areia branca? E porque é que eu, ao pensar nos livros que levaria, penso em coisas concretas, práticas, livros bons, evidentemente, mas que também “dessem” para muito tempo?. Porque é que eu, teria querido pôr um pequeno Larousse na lista, e até algum livro que me desse ideias sobre o aproveitamento dos recursos da ilha?
Em resumo, porque é que eu não conseguia ver o problema em abstracto? Porque é que eu achava que a ilha tinha de ser assim, quando JPC achava que a ilha tinha de ser assado, e isso também me parecia compreensível? Estávamos sinceros, um e outro.
Estaria essa radical diferença na forma diferente de mulher e homem encararem problemas? Consultei Gina Lombroso, o meu papa em material de psicologia feminina, e parece-me ter encontrado a explicação. No seu livro, ‘A Alma da mulher’, Gina Lombroso escreve que a imaginação da mulher é “involuntária, intuitiva, inconsciente e instantânea” e que, no caso do homem, “mesmo que o seu ponto de partida seja exterior, tem o seu ponto de chegada no mundo interior, no mundo das ideias”.
O que explicaria que JPC imagine a ilha como uma metáfora, que para ele a ilha seja “uma abstracção que dispensa concretizações” e que eu, ao ouvir ‘ilha’, ‘veja’ inconscientemente, imediatamente, uma ilha concreta diante de mim.
Creio que outra mulher a quem façam a pergunta - a não ser que seja uma mulher com inteligência masculina - também pensará de imediato numa ilha real e não numa metáfora.


UM QUEIJO FLAMENGO
Gina Lombroso fala também na associação de ideias igualmente espontâneas e pouco reflectida, como uma das características da mulher. e eu sou prova disso, que passei da ilha idílica e deserta para os Robinsons. e destes para outros casos marítimos, como naufrágios e incidentes a eles ligados. O que me levou à releitura da ‘História Trágico Marítima’ com a sua colecção de relatos de naufrágios.
Li o livro pela primeira vez quando estava pensando escrever sobre a aventura portuguesa na Índia. Ainda não tinha o tema certo, procurava-o, lia aquilo que sabia ser boa fonte. Como tal, li a Historia Trágico Marítima. Mas de forma crítica. Olhei o assunto na sua generalidade. Lembro-me que notei em particular as provas de sobrecarga dos navios com os seus trágicos resultados, e que me interessaram mais as narrativos dos percursos dos náufragos, uma vez chegados a terra firme, do que os relatos dos naufrágios em si.
Percorrendo agora o livro com outro propósito, dei mais valor aos pequenos pormenores, preferi saber como os náufragos se abrigavam, vi diante de mim as choupanas feitas de tapetes de Oriente, vi as cadeirinhas e mesas doiradas que o mar trazia à praia. Interessei-me pela presença das mulheres, e suas atitudes. Fascinaram-me os casos de habilidade, os estratagemas, dos naufragos.
Quando do naufrágio da nau Santiago em 1585, o batel de salvação avariou-se, perdeu parte da popa. “de tábuas de caixões, calafetadas com camisas, com uma ponta de laca e queijo de framengos fizeram a popa, e com o mesmo pau e queijo calafetaram muita parte dela porque estava mal”.
Dos três volumes da Historia Trágico Marítima muito esqueci, mas não me esqueço do queijo dos flamengos a servir para calafetar.
Para o caso de haver alguém que não leu a Historia Trágico Marítima, aqui seguem uns pequenos extratos das suas narrativas.

HISTORIA TRÁGICO MARITIMA compilada por Bernardo Gomes de Brito
”A nau......além de vir por baixo das cobertas toda maçissa com fazenda, trazia no convés setenta caixas de marca e cinco pipas d’água a cavalete, e se tirou tanta multidão de caixões e fardagem, que altura destas coisas igualara o convés com os castelos e chapitéus”T- I-50

“......havendo este por melhor conselho, começaram logo com muita presteza a despejar o convés de quanto trazia sobre as tilhas, de modo que em muito pouco espaço foi o mar todo coberto de infinitas riquezas, lançadas as mais delas por seus próprios donos, de quem eram em aquele tempo tão aborrecidas como já em outra tão amadas, e assim alijámos a maior parte da água que vinha em cima e todas as outras coisas que mais achávamos à mão e mais estorvo faziam à mareação...” T- I-51

“ Neste mesmo dia abriu a nau pelo costado, e a modo de parto lançou de si o batel com um terço menos; lançaram-no as águas para o mais baixo do recife, e encalhou três tiros de espingarda da nau.” T-II-177 Nau Santiago

“---determinaram-se muito a propósito do concerto do batel, e de tábuas de caixões, calafetadas com camisas, com uma ponta de laca e queijo de framengos fizeram a popa e com o mesmo pau e queijo calafetaram muita parte dela porque estava mal. Deram-lhe também cinco ou seis arrochos de cabos de arrestadores de mastro e nem assim bastava para vedar a água...........depois que se fez viagem sempre houve quatro gamotes (vasilha de madeira) vivos, revezando-se a ela todos que estavam para isso...” T-II-177 Nau Santiago

“... o piloto e outros elegeram , todos de comum consentimento para seu capitão (do batel de salvamento) a Duarte de Melo, fidalgo digno por certo de outras maiores honras....” T- II-177 Nau Santiago

“ Neste tempo que ali saímos em terra logo começámos a cavar, a ver se podíamos achar alguma água”. Descobriram terra molhada e alguma agua mas parecia purga. Mesmo assim “não a enjeitámos e por a gente ser muita não vinha a cada um mais que um búziozinho dela” T-I-143


“A nossa choupana que nestes baixos tínhamos (Baixo dos Banhosa noroeste das Maldivas)em que nos recolhíamos eram de panos e de aduelas de pipas e cobertas com panos de todas as sortes e sedas que o mar lançou fora, e assim nos recolhíamos de seis em seis pessoas, assim altos como baixos e as choupanas que tínhamos eram cinquenta e seis” T-I-143

“Quem cuidara que cento e sessenta e seis pessoas se podiam sustentar cinco meses em uma praia de areia de 300 passos de comprido e 160 de largo sem outro mantimento senão o que Deus nos mostrava? ..........E algum dia que a barquinha (de pesca) não podia ir ao mar, logo Nosso Senhor dele nos lançava mantimento, que era lobo ou tartaruga......que vinham desovar à terra e cada uma tinha muita soma de ovos; uns deles tinham a clara propriamente como as das galinhas e outros, mais pequenos, sem claras que pareciam gemas de ovos, e os que tinham claras, tinham pele por casca como propriamente pergaminho............. uma vez tomámos uma e contámos-lhe os ovos e achámos 1836...............e às vezes pela manhã as achávamos cavando na terra com as mãos e fazendo cova para porem os ovos, e os punham em altura de uma vara de medir, e calcavam-nos muito com a terra e depois se tornavam para o mar, e delas saiam as tartarugas pequenas, e nascidas, logo iam em busca do mar sua natureza, e não saíam gora senão quando o mar e tempo andavam tempestuosos”
T-I- 153

“Pela noite, porque havia luar, foram três marinheiros correr a praia com esperança da tormenta passada, e acharam na boca do rio um tubarão lançado à costa, e que repartiram entre si e cada dois dedos de posta nos venderam por quinze e vinte cruzados, e a falta de outro mantimento fazia tanta sobejidão de compradores que depois do corpo ser todo levado a este prelo não faltava quem desse pela metade da cabeça vinte mil reis, de sorte que bem se pudera comprar nesta terra muito arrazoada quinta com o que aquele peixe rendeu” T-I-88

“Tanto que amanheceu, olhámos para o mar se víamos o batel grande ou o esquife e nenhum vimos, assim que na noite passada se foram sem nos deixaram nenhum remédio, que foi outro segundo pranto então,..... ordenámos pôr regra sobre nossas vidas........ Pelo que demos ordem em fazer logo capitão a quem déssemos obediência, e foi eleito D. Álvaro de Ataíde, sobrinho do conde de Castanheira, homem mancebo de vinte anos, de boa condição e amigo de todos, mas não era para o cargo que lhe demos por não ser temido e ser juntamente mancebo” T-I- 141

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Quem vai na jangada?

>> segunda-feira, 13 de julho de 2009



O post anterior foi sobre ‘livros em ilha deserta’. Fi-lo de forma literal, o que, como comentou JPC, era errado: “este é daqueles casos que não devem ser entendidos literalmente”, escreveu ele. “A metáfora da ilha deserta é um mero pretexto, a ilha é uma abstracção que dispensa concretizações.”
JPC talvez tenha razão, e talvez não, um dia volto ao problema. Entretanto, e porque assunto puxa assunto, este post mantém o rumo e trata de outra questão ligada à vida marítima.
Esbarrei pela primeira vez com o problema ao ler o relato do naufrágio da ‘Flor da la Mar’, o navio em que Afonso de Albuquerque regressava de Malaca. Diante de Pedir a frota foi apanhada por um forte temporal, e na ‘Flor de la Mar’ as bombas não davam conta da agua que entrava. Percebendo que a nau estava perdida, Afonso de Albuquerque mandou construir uma jangada com os mastros. A jangada foi lançada ao mar, Afonso de Albuquerque passou para ela e mandou passar os portugueses que seguiam a bordo. Quanto aos outros, a sua sorte foi diferente: “O governador não consentiu na jangada nenhum negro nem negra, que todos deitou ao mar”, escreve Gaspar Correia em as ‘Lendas da Índia’.
Negros, ou seja, naquele caso, gente de raça malabar, era a gente mais insignificante da tripulação, e era essa que se sacrificava em semelhantes circunstâncias. Não tenho duvida que se ‘negros’ não houvesse, Afonso de Albuquerque teria lançado ao mar sem hesitação outros tripulantes de qualquer cor que fossem. Sem que isso lhe causasse problemas de consciência, e fazendo-o pessoalmente, o que nem todos os comandantes seriam capazes de fazer. Ou para melhor dizer, o que nenhum outro capitão jamais fez.
O caso da jangada da ‘Flor de la Mar’ é o primeiro dessa natureza referido na era dos descobrimentos. Houve muitos outros. Testemunham-no as narrativas dos naufrágios de naus da carreira da Índia coleccionadas na ‘História Trágico Marítima’ *.
Encontra-se de tudo nesses relatos. Desde a origem e razão do naufrágio da nau em questão, aos salvamentos de alguns e perda de outros, ao primeiro refúgio em ilha ou terra firme desconhecidas, às primeiras medidas tomadas pelos sobreviventes, à escolha de quem os dirigiria, à regra que se seguiria etc. E não faltam os problemas de consciência. Entre eles, aquele de que acima escrevi: o destino dado a quem estava a mais na jangada de salvamento. E quem diz jangada, diz outra qualquer pequena embarcação, em geral o batel que cada nau levava consigo, e que nunca chegava para todos os tripulantes.
Os textos que se seguem, extraídos de dois desses relatos parecem-me elucidativos:

“NAUFRÁGIO DA NAU SANTIAGO no ano de 1585 e itinerário da gente que dela se salvou, escrita por Manuel Godinho Cardoso..”

“.........Ao outro dia pela manhã, que foi sexta-feira, 23 do mês, estando os do batel para se partir, pareceu ao piloto em sua consciência e ao contra-mestre e a alguns homens do mar, comunicando primeiro com o capitão Duarte de Melo, que o dito batel não estava para poder navegar com tanta gente e que, como tivesse mais de quarenta e seis ou quarenta e sete pessoas, que não se atrevia a navegar, e, mandando-se contar a gente que nele estava por António Gonçalves, guardião da nau, que era muito bom homem e muito bem inclinado e dizia que não chegava a quarenta a quantia da gente àquela com que o piloto se atrevia a navegar. E, todavia, parecendo a algumas pessoas que se tinham apoderado do batel, que o guardião não contara bem a gente, por o batel estar pesado, assentaram entre si que lançassem ao mar algumas pessoas; e eles somente consultavam e determinavam quais haviam de ser estes condenados. Os desta parcialidade deram conta a Duarte de Melo do que o piloto dizia e da diligência que se mandara fazer pelo guardião; e mostrando Duarte Melo, capitão, muito sentimento cristão, não sabendo como se pudesse escusar a execração (sic) de tão cruel obra, mandou ver a quatro ou cinco pessoas a gente que no batel estava. Levaram as espadas nuas nas mãos para assim mais facilmente poderem executar as sentenças e miseráveis sortes dos condenados. Lançaram fora do batel dezassete pessoas, ............ Em se determinando que fosse ao mar fuão, o botavam logo os executores...................... Nestas execuções que se fizeram não se intrometeu nenhum dos religiosos que no batel iam, vendo o decreto do capitão e dos mais da sua parcialidade, posto que muito o sentissem, por ser negócio muito alheio de suas profissões. E deviam os do conselho entender bem isto, porque a nenhum propósito falaram nesta matéria com os religiosos”.

“NAUFRÁGIO DA NAU SÃO TOMÉ, na terra dos Fumos, no ano de 1589 (narrado por Diogo de Couto. T. II 234 ss)
“...........Ao outro dia, tanto que amanheceu, não viram terra e lançaram o batel ao mar com muito trabalho, porque, indo no ar sobre os aparelhos, se lançavam os homens a ele como doidos, sem D.Paulo de Lima, que se tinha metido dentro com uma espada na mão, lhe poder valer, porque se quis segurar dos marinheiros, que se não fossem nele e o deixassem. E sem embargo de cutiladas e crisadas, que se deram em muitos, mui despiedosamente, não deixou de se lançar nele tanta gente que em chegando ao mar, se houvera de sossobrar. E com muito trabalho tornou D. Paulo de Lima a fazer subir alguns para cima, prometendo-lhes que todos os que coubessem se haviam de salvar. E estando o batel em bom estado, se foi pôr por popa da nau, para tomar pela varanda as mulheres que ali iam, os religiosos e os homens fidalgos. Porque a nau dava grandes balanços e houveram medo que metesse o batel no fundo, afastou-se um pouco para fora, e dali se deu ordem para que as mulheres se agarassem às peças de caça, pelas quais dependuradas, se calavam abaixo, e o batel chegava a tomá-las, mergulhadas muitas vezes, com muito trabalho, lástima e mágoa de todos.....................
...........E tornando ao batel. Tanto que começou a viagem acharam-no os oficiais tão pejado, por muito carregado e com todo o grosso debaixo de água, que fizeram grandes requerimentos, que se lançassem algumas pessoas ao mar para que se pudessem salvar as outras; o que aqueles fidalgos consentiram, deixando a eleição deles aos oficiais, que logo lançaram ao mar as pessoas que foram tomadas nos ares, lançadas nele, que ficaram submergidas das cruéis ondas, sem mais aparecerem. Este piedoso sacrifício levou os olhos que o viram tanto atrás de si que ficaram pasmados, sem saber o que viam, ou como coisa que se lhes representava em sonhos. E, posto que estas seis pessoas se despejaram, ficaram ainda no batel 104.”

Edward Leslie, um autor moderno, que tal como Bernerdo Gomes de Brito, publicou uma colecção de casos de sobrevivência em condições extremas**, relata o que se deu em 1974 quando do naufrágio de um pequeno veleiro na costa de ‘Newfoundland’. O dono e capitão do barco salvou-se a si, a sua mulher e a dois dos outros velejadores numa pequena embarcação a remos. Dois outros homens agarraram-se ao barquinho, e o capitão, por mais que o implorassem, não permitiu que subissem para a embarcação. Porque esta não aguentaria a sobrecarga, e sossobreria com o movimento que se daria com a subida de um homem. Os dois homens morreram, e o capitão Labecque foi julgado em tribunal. Foi absolvido.
O problema do sacrifício de uns para salvar a vida de outras é tão antigo como a navegação, e Leslie lembra no seu livro que já Cícero discutira o dilema no seu ‘de officiis”, exemplificando-o com o caso hipotético de dois homens naufragados, tendo entre eles uma prancha que só podia sustentar um deles.
“Será que o homem de grande sapiência, pela virtude do seu intelecto superior tem o direito de empurrar o menos inteligente da tábua e salvar-se a si? Não, responde Cícero. Seria uma acção injusta.
E se o homem em posse da tábua fosse o dono do navio naufragado? Seria ele justificado em empurrar o outro por a tábua ser do seu navio? A resposta também é: não. Ao comprar passagem no navio, o passageiro tem direito a ele.
E no caso de se tratar de dois homens de igual intelecto? Qual o critério da escolha, se um deles tem de morrer para que se salve a vida do outro? Cícero conclui que deve sobreviver aquele cuja vida é mais valiosa, quer pelo seu valor intrínseco, quer pelo que ela interessa ao seu pais. No caso de ambas as vidas serem de igual valor e importância, cntão teria de se proceder ao sorteio.
Os capitães das naus portuguesas não devem ter lido Cícero, e, que o tivessem, a realidade não dava para considerações de ordem filosófica. Nem morais, nem religiosas.

*Historia Trágico.Maritima. Coleccionada por Bernardo Gomes de Brito e publicada em 1736.
**Desperate journeys, abandoned souls.

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Que Ilhas desertas?

>> segunda-feira, 6 de julho de 2009



No último número da revista ‘Lire’ encontrei a resposta do autor Antoine Bello à pergunta dos livros que levaria para uma ilha deserta. Julguei que já passara, que já não se punha a questão. Pelos vistos porém a moda continua,
“Prisioneiro numa ilha deserta, passamos a ser o único sujeito, e o nosso próprio terreno de experimentação. Eu levaria portanto livros capazes de empurrar os muros do meu espírito” , respondeu o questionado. Ele lá saberá o que quer dizer.
Naturalmente é uma ilha idílica que este e outros questionados vêem diante de si quando se lhes coloca a pergunta. Uma ligeira brisa vinda de um mar azul, e eles, nos intervalos de algumas pequenas ocupações, à sombra das palmeiras, lendo as obras escolhidas. Só que na realidade a coisa não era bem assim. Houve homens perdidos em ilhas desertas, e alguns regressaram, e contaram como fora. Homem abandonado em ilha deserta associa-se imediatamente a Robinson Crusoe, herói do livro de Daniel Defoe, cujas aventuras apaixonaram gerações de leitores grandes e pequenos. Salvando-se do naufrágio do navio em que seguia, Robinson vai dar a uma ilha na qual consegue sobreviver graças à sua força de vontade e à sua capacidade de aproveitar aquilo que vai encontrando na ilha para se alimentar e vestir.
Não era uma figura totalmente inventada, o autor baseara-se em Alexander Selkirk, um marinheiro escossês, exposto na ilha de Juan Fernandes depois de uma discussão com o capitão do seu navio, que viveu nessa ilha durante quatro anos. Sendo recolhido então por outro navio inglês que ali passou, as suas experiências foram publicadas depois do regresso a Inglaterra, causaram natural sensação e resultaram na obra de Daniel Defoe. Que por sua vez inspirou o ‘Robinson de uma Família Suíça’, de Johann David Wyss e xom iato, o nome de Robinson passou a significar homem perdido em ilha deserta.
Mas não foram ingleses e menos suíços os primeiros Robinsons. Portugueses e espanhóis é que foram os percursores na matéria. Como não podia deixar de ser. Na Europa tudo quanto era ilha estava povoado e bem povoado, só quando portugueses e espanhóis começaram a percorrer novos mares, houve de novo ilhas desertas para homens experimentar que tal era aquilo de nelas sobreviver.
Gaspar Correia narra nas suas ‘Lendas da Índia’ o caso de um tal Fernão Lopes, que viveu isolado na ilha de Santa Helena. Esse Fernão Lopes, com alguns outros, fora preso em Goa por volta de 1512, acusado de ter servido os Turcos. Ele e os companheiros sofreram terríveis torturas, mais de metade morreu, e aos que ficaram disseram que fossem para onde quisessem. O tal Fernão Lopes meteu-se numa nau que estava de retorno, dizendo que queria voltar para Portugal. Só que no caminho mudou de ideias. Quando a nau aportou na ilha de Santa Helena, Fernão Lopes desapareceu.
Foram à sua procura,. mas não o acharam. Deixaram-lhe alguns mantimentos, biscoitos, bocados de carne seca, “sal e fogo, e roupas velhas que cada um lhe deu e também um papel em que lhe diziam que se mostrasse a outra nau que ali passasse. O foragido protegeu o fogo que lhe tinham feito, encontrou pedras que fizessem faísca que guardou e com os quatro dedos da mão esquerda e a continha da direita”, que lhe tinham ficado, conseguiu escavar e aumentar um pouco uma cova que descobrira sob uma lapa na encosta duma ribeira. Trancou-lhe a entrada com tojos e ali passou a dormir. “Achou ervas tenras, que eram gostosas de comer” e que ele cozia com sal em duas panelas que também lhe tinham deixado.
No ano seguinte passou de novo uma nau por lá. Os homens que desembarcaram viram os sinais de habitação, perceberam pelas coisas que lhe pertenciam que se tratava de homem branco. Não mexeram em nada, “antes lhe deixaram biscoito e queijos e coisas de comer e uma carta em que lhe diziam, que não se escondesse, que quando outra nau ali aportasse, que falasse, que ninguém lhe faria mal.”
Passado tempo o homem ganhou coragem e começou a aparecer à gente das naus e todos lhe davam qualquer coisas para plantar e semear “abóboras, romãs, palmeiras Ada (sic9, galinhas, porcos, cabras prenhes, que tudo se fez com muita criação e tudo se fez bravo no mato”.
Deste Robinson pode dizer-se que escolheu viver naquela ilha deserta, mas o mesmo não se pode dizer do segundo ‘Robinson’ de que há notícia. Foi um espanhol chamado Pedro Serrano, que em 1526 se salvou do naufrágio de um patacho espanhol, que navegava de Havana a Cartagena de Índias. Salvaram-se unicamente o capitão, o dito Pedro Serrano, e dois marinheiros, que a nado alcançaram uma ilhota, que se revelou ser um banco de areia sem vegetação e sem água.
Os sobreviventes alimentaram-se de pássaros e peixes, bebendo sangue das tartarugas que conseguiam matar e depois da água da chuva que recolhiam nas cascas das tartarugas. Um dos marinheiros morreu pouco depois de se salvar, mas alguns meses depois juntaram-se aos restantes dois sobreviventes mais dois de outro naufrágio. Estes tentaram em seguida procurar ajuda no pequeno bote, em que se tinham salvo, e nunca mais apareceram, ficando na ilha unicamente Serrano e um companheiro.
Como a ilha não tinha vegetação, os homens nem sequer puderam aproveitar alguma folha para se protegerem do sol, que lhes queimava a pele. Pouco a pouco cresceram-lhes os cabelos da cabeça e da barba, e foi essa a sua protecção. Conseguiram construir uma pequena torre à base de conchas e corais, e daí mandavam sinais de fumo queimando alguma coisa que dava à praia, mas só em em 1534, oito anos depois do seu naufrágio, foram vistos pela tripulação de um galeão e salvos.
Os espanhois afirmam que estudos recentes revelam que Daniel Defoe não se inspirou unicamente nas aventuras de Alexander Selkirk para o seu Robinson Crusoe, que se serviu também do relato de Pedro Serrano. É possível. Daquele que foi de facto o primeiro desses sobreviventes em ilha deserta ainda nada se sabia então. Só quando a Academia Real das Sciencias de Lisboa, entre 1858 e 63 publicou o manuscrito das ‘Lendas da Índia’ de Gaspar Correia, é que se pôde ler e saber da existência de Fernão Lopes e da sua isolada vida na ilha de Santa Helena.
O primeiríssimo Robinson da história moderna foi sem duvida um português. Mas não me consta que alguém tenha prestado muita atenção ao caso.
Daniel Defoe escreve que o seu Robinsom salvara uma Bíblia e mais um livro. Mas trata-se de ficção. Nos relatos de Fernão Lopes e de Pedro Serrano, dois especialistas em matéria de ilha deserta, não se fala em livros, ou da falta que porventura tivessem sentido deles. De muitos trabalhos e muitos sofrimentos, é que sim.

O que dizem outros
“Existem relativamente poucas situações de sobrevivência. A ilha pode ter mais ou menos vegetação. O mar pode ser mais calmo ou mais agitado. o clima moderado ou rigoroso, mas isto são só variantes. Estes dramas só podem ter lugar em uns tantos teatros. O que há no entanto é um infinito número de actores para assumir os papeis. O que varia por isso - e isso consideravelmente – é a interpretação individual do papel pelo actor, é a extraordinária diversidade da resposta humano a circunstâncuas extremas” Edward E. Leslie ‘Desperate Journey’s, Abandoned Souls’

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Sobre este blogue

Libri.librorum pretende ser um blogue de leitura e de escrita, de leitores e escritores. Um blogue de temas literários, não de crítica literaria. De uma leitora e escritora

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