O escritor, as suas personagens, e a TV

>> segunda-feira, 7 de outubro de 2013

O escritor não cria as figuras dos seus livros copiando pedanticamente figuras reais. As personagens nascem da sua imaginação, mas a imaginação precisa de exemplos para trabalhar. Quanto mais pessoas o escritor veja, observe e estude, melhor irá trabalhar a sua imaginação, melhor irá criar. O escritor pode dar a alguma das suas figuras fictícias as idiossincrasias de alguém que conhece ou viu, mas isso não quer dizer que esteja a copiar um original. Inspirou-se nele. O escritor é naturalmente observador, as pessoas interessam-no. Se não o interessassem, não seria escritor. Não estou escrevendo livro de ficção, e duvido que venha a ter tempo para outro, mas continuo a ser observadora. Recentemente, dei por mim olhando as figuras reais da nossa TV como possíveis figuras de ficção. Os telejornais fornecem um manancial riquíssimo. Surgem os locutores que leem as notícias, os comentadores das notícias e aqueles que fazem as notícias. São dezenas de figuras que passamos a conhecer. Notamos como aqueles senhores leem, como opinam, e, no caso dos políticos, o que eles fazem, fizeram, ou tencionam vir a fazer. Os locutores leem as suas notícias, não se lhes pede que tenham opinião sobre o que leem. São bons profissionais, mas figuras anódinas, sem potencial de personagem fictícia. Os comentadores - de Economia, de Futebol, de Política – diferem em interesse fictício: Os primeiros, impecavelmente vestidos, enunciando com clareza o que se passa com a Economia, agem moderadamente sobre a imaginação do escritor, os comentadores de futebol - que pululam a partir das dez horas - são descontraídos, animadas, e decerto iluminariam o autor que se atrevesse a escrever sobre problema do divino desporto. É no grupo dos comentadores de política, e, naturalmente, naqueles de quem eles comentam os feitos, que o escritor encontra maior potencial literário. Escolhidos pelas suas capacidades de análise e comunicação, são pessoas inteligentes e cultas. Têm características que à força de os vermos acabamos por fixar. Em resumo, interessam ao escritor. Pessoalmente, servi-me da figura do professor Marcelo Rebelo de Sousa para uma das personagens do meu livro ‘Júnia ou a Justiça de Trajano’. Dado que não conheço pessoalmente o professor, não é um retrato, nem pretende ser. É uma personagem do mesmo tipo do Professor. Porque, note-se, é só isso que a TV nos dá a conhecer. De figuras como o professor Marcelo, o autor utilizará – chamemos-lhe assim – a personagem intelectual que a TV apresenta. De outras figuras ele poderá aproveitar – chamemos-lhe assim – o seu aspecto físico. Viesse eu a escrever romance de amor no século XIX, e não deixaria de me inspirar no Dr. Passos Coelho e no Eng.º Sócrates como tipos de galã português desses tempos, um de sala, o outro de feira. Há ainda aquelas figuras públicas que – na opinião do autor – personificam determinadas qualidades, defeitos ou idiossincrasias. Assim por exemplo, querendo o autor construir a figura eterna de maçador, terá nos doutores Cavaco, Medina Carreira e Seguro, figuras tipo, com grande vantagem de cada um desses senhores ser maçador à sua maneira. E há as senhoras locutoras e comentadoras, mas isso é outro capítulo.

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O detetive moderno

>> segunda-feira, 23 de setembro de 2013

O detetive do romance policial de há vinte ou trinta anos era muito diferente do de hoje. Então era um cerebral, resolvendo os problemas e descobrindo o criminoso pela reflexão. Tinha decerto funções fisiológicas normais e uma vida afetiva com altos e baixos, mas era com ele. O leitor não tinha nada com isso. Já não estamos nesses tempos, hoje acompanhamos o detetive nos seus relacionamentos amorosos - em geral mal sucedidos - preocupamo-nos com os filhos - é em geral divorciado, tudo isto enquanto procura resolver o crime, ou os crimes. Não é fácil. O detetive cerebral movia-se pouco, solucionava casos intrínsecos sem grande actividade física. Quando necessitava de alguma informação, havia um agente de polícia que solicitamente lhe fornecia o dado desejado. Fazia-o gostosamente, já que o resultado seria por ele aproveitado. Quando era um agente da polícia, que detetava e solucionava – o que era raro, mas sucedia – o homem tinha de se esforçar um pouco mais. Fazia algumas deslocações, telefonava, e, se necessário, telegrafava. Quando o criminoso tinha contatos fora das fronteiras, o detetive preparava sua mala e deslocava-se. Pachorrentamente. Não havia pressa. O detetive de hoje - que é sempre um agente das forças policiais - desloca-se constantemente, toma o avião, regressa em outro no mesmo dia. Obtém as necessárias informações por computador - é só preciso saber procurar - e por telemóvel. Em geral tem mais que um. O telemóvel é elemento chave do enredo. O leitor conhece a música de abertura, incomoda-se quando toca em momento inoportuno. O detetive de hoje é humano, vai ao ‘rest-room’, toma duche - frio ou quente conforme o estado do seu sistema nervoso - e, de vez em quando, come. O detetive cerebral do passado decerto se alimentava, mas não era coisa em que se falasse. Subentendia-se que homem da sua inteligência comia e bebia do melhor. O detetive de hoje é em geral americano. Os seus criadores são americanos, sabem o que dizem. Quando descrevem as refeições do seu detetive estão a falar do que sabem, estão a falar verdade. Ficamos pois a saber que o detetive de hoje se alimenta praticamente de sanduiches, e estas de composições surpreendentes: sanduiche de sardinha com peanut butter, sanduiche de carne fumada acompanhada de pequeno copo de cranberry sauce. Em casa, quando está no meio de um problema muito complicado, o detetive compõe ele próprio a sua sandwich, e sucede comê-la debruçado sobre o lava-loiça, limpando a cara à torneira e secando com guardanapos de papel. Nada nos é poupado. Quando tem um momento de lazer faz esparguete com molho bolonhês, ao qual acrescenta qualquer coisa, o que indica que gosta de cozinhar, só que não tem tempo. Quando o homem se senta à mesa de restaurante come rapidamente uma salada, talvez um bife com ovo, que rega tudo abundantemente, com ketchup. Se o homem envolvido na solução do crime é um advogado, a composição das sanduiches é menos arrepiante. O counselor vai a restaurantes de renome, onde o criado lhe coloca um guardanapo preto sobre os joelhos. Se pede água - o que sucede quando está em cura de álcool - trazem-lhe uma garrafa de ‘european water’. Mas o que tem isto a ver com o crime e o criminoso. Nada, é uma concessão ao leitor. O leitor gosta de saber. Em tempos gostou de saber do copo de licor de Poirot e dos scones de Miss Marple. Um dia gostará de saber que o seu detetive resolve tudo ao computador e se regala com concentrados de carne, legumes e talvez até de sanduiches.

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Simpatia

>> segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Penso muita vez no que seja ‘simpatia’. A pessoa de idade é mais sensível à simpatia ou falta dela no próximo, e é na idade avançada que há a experiência que ajuda a procurar explicação para o que sejam, ou ao que, por ventura, obedeçam as qualidades, os defeitos, e outras características do comportamento humano. É um entretenimento de pessoa madura. La Rochefoucauld não era novo quando ideou as suas ´Maximes’. Pensei pois definir o que é simpatia. Recordei para o efeito homens e mulheres do meu longo passado, procurando entre eles aquele ou aquela, que tivesse achado particularmente simpático, no sentido, um pouco superficial, de ‘agradável no trato’. Não me faltaram exemplos de gente agradável, simpática: ‘nice people, nette Leute, des gens simpatiques’ dir-se-ia em inglês, alemão e francês’. Sucede que, sem premeditação, espontaneamente, pus de parte dois nomes. Os nomes de duas mulheres – falo delas no presente se bem que uma delas já não viva – das quais sentia que havia nelas uma simpatia especial. Qualquer coisa que era mais que trato agradável. A franqueza, a simplicidade, o agrado na presença da pessoa amiga, alegria, que nelas se acha, são tudo atributos que se em maior ou menor grau se encontram na pessoa simpática. Em Margarida e Teresa há tudo isso, mas há mais. A simpatia é uma característica, como podia ser a beleza, a bondade, a fealdade. Pensa-se em simpatia quando se pensa nelas. Os dicionários não são muito claros quanto ao significado da palavra. Optei pela definição que leio em Wikipedia: ”Simpatia é uma forma de magia ou feitiçaria mágica, extremamente ligada ao povo, normalmente de origem campesina e geração empírica”. Ora Teresa e Margarida, hoje de diferente condição social, são - se olharmos para trás - uma e outra, de origem campesina.

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Vermeil

>> segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Este artigo trata de talheres de vermeil, mas é escrito porque quero descrever uma caixa de madeira. Há muito estava decidido que um dia se venderiam os talheres de sobremesa de vermeil. Não em Portugal, onde as peças não seriam estudadas e classificadas por entendidos em ourivesaria francesa. Com um importante leilão de artes decorativas anunciado em Paris, chegou o momento. Contemplei os talheres, e, pela primeira vez, notei também a caixa em que estão arrumados. Nos anos 80 do século XVIII Pierre Nicolas Sommé, mestre em ourivesaria, recebeu a encomenda de um serviço de sobremesa de 12 “couverts”, 12 talheres de colher, garfo e faca, em vermeil. Vermeil é uma liga de prata e ouro, obedecendo a proporções legalmente estabelecidas. Era obra cara, mas mestre Sommé devia saber que era cliente que podia pagar, aceitou a encomenda. Os talheres requeriam caixa adequada, o ourives contactou mestre X, homem de confiança para caixas e estojos. Disse- que queria uma caixa compacta para 12 couvertts de dessert, caixa elegante, mas forte. Deu-lhe decerto as medidas dos talheres. Mestre X, encomendou a caixa de madeira a um marceneiro de obra fina. O peso dos talheres iria à volta dos 4 kg, o marceneiro escolheu madeira forte, de dedo e meio de espessura para as paredes da caixa, e um pouco mais delgada para o tabuleiro. Estudou a forma de melhor arrumar os talheres. Fez duas divisões no fundo da caixa, e duas – idênticas - no tabuleiro. No fundo arrumavam-se horizontalmente as doze colheres, e na estreita divisão à esquerda arrumavam-se, verticalmente, seis garfos. No tabuleiro colocavam-se horizontalmente as doze facas e, na vertical, os restantes seis garfos. Para que as peças não chocassem, o marceneiro aplicou pequenas placas que se adaptavam perfeitamente às diferentes formas dos talheres. Para as facas havia espaço mais largo para a cabeça do cabo, estreito e fino para a ponta da lâmina. O mesmo sucedia com colheres e garfos. Caixa e tabuleiro seriam forrados, havia que ter isso em conta, deixando espaço entre as paredes de caixa e tabuleiro. A caixa tinha de ser facilmente transportada. A tampa foi reforçada de forma a receber uma pega de metal. Outras duas pegas foram aplicadas de cada lado da caixa. Para que a caixa fechada se pudesse levar pela pega superior, a fechadura tinha de ser adequada, e assim se fez. Mestre X foi avisado que a caixa estava pronta para os devidos acabamentos. O exterior foi coberto de pele escura com os bordos lavrados, a base da caixa levou um pano verde macio. Para forrar o interior escolheu-se veludo branco. As bordas de todos os elementos levaram cordão amarelo, verde e oiro, e fizeram-se pegas do mesmo cordão para o tabuleiro. Por fim o ourives aplicou uma placa de vermeil em torno da fechadura. Pôde arrumar os talheres. Cada um levava três punções, de ourives, cidade, e data de feitura: Pierre Nicolas Sommé, Paris, 1789. Estava-se no primeiro ano da revolução francesa. Anos depois um senhor chamado Charles Auguste, conde de Flahaut ofereceu os talheres na sua caixa em presente de casamento a uma rapariga portuguesa. Charles de Flahaut era filho de Adéle-Adelaide du Filleul e é provável que os talheres lhe tivessem pertencido. Comprados por ela? É pouco provável. É mais provável que tivesse sido uma oferta, e de um de três homens: seu marido, o conde de Flahaut, seu amante francês, o príncipe de Talleyrand, seu amante americano, Governor Morris, ministro em Paris dos recém-criados Estados Unidos da América. A condessa de Flahaut enviuvou, voltou a casar. O segundo marido era português, de velha nobreza e grande fortuna. Chamava-se D. José Maria de Sousa Botelho, morgado de Mateus. Era viúvo por sua vez e pai de um fiho. Adèle, que passou a ser conhecida por Madame de Sousa, tinha também um filho. Chamava-se Charles Auguste de Flahaut, mas era na realidade filho do príncipe de Talleyrand. Dado que este era bispo, arranjara as coisas de forma elegante, casando Adèle com o conde de Flahaut, este dando o seu nome ao rapaz. Charles de Flahaut e José Sousa Botelho, os filhos do novo casal, foram sempre amigos, e, quando Maria Teresa, uma das filhas de D. José Sousa Botelho, conde de Vila Real, casou, recebeu do amigo do pai um serviço de talheres de vermeil numa caixa de madeira.

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Postal Ibérico

>> segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Agradeço desde já o que me possam dizer sobre estes postais

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Que boa ideia

>> quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Recebi uma curiosa factura da EDP. Refere-se a um andar que há quatro meses - resultado da crise – está devoluto. A EDP faz uma ‘suposição’ quanto a eletricidade a pagar. Suposições quanto a gastos em casas vazias estão decerto a cargo de empregados dotados de imaginação, talvez sejam sonhadores, talvez até poetas. E assim se explica que a factura indicando a suposição da eletricidade gasta por invisíveis habitantes de um andar devoluto, decidisse dar a esse triste andar uma designação condigna. No canto superior direito da factura escreveu: “Agência de Publicidade IDEIA”. A ideia obrigou a uma deslocação – morosa e infrutífera - à sede da EDP, o que, naturalmente, me irritou. Mas reconsiderei. Houve ali alguém que foi mais que um obreiro de suposições. Houve alguém que teve uma ideia. Lembrou-se de dar um nome ao belo andar vago da rua Áurea. Chamou-lhe ‘Ideia’. Executou a sua ideia. Foi assim que nasceram as grandes invenções. Quem sabe se o 2º andar do 146 da rua Áurea não será um dia conhecido por ‘andar Ideia’. Se assim for terei de dar nomes a todos os andares, talvez: andar Eidea, andar Reflexão, andar Pensamento, andar Meditação. Sinto empatia com o anónimo autor da fatura da EDP.

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