O detetive moderno

>> segunda-feira, 23 de setembro de 2013

O detetive do romance policial de há vinte ou trinta anos era muito diferente do de hoje. Então era um cerebral, resolvendo os problemas e descobrindo o criminoso pela reflexão. Tinha decerto funções fisiológicas normais e uma vida afetiva com altos e baixos, mas era com ele. O leitor não tinha nada com isso. Já não estamos nesses tempos, hoje acompanhamos o detetive nos seus relacionamentos amorosos - em geral mal sucedidos - preocupamo-nos com os filhos - é em geral divorciado, tudo isto enquanto procura resolver o crime, ou os crimes. Não é fácil. O detetive cerebral movia-se pouco, solucionava casos intrínsecos sem grande actividade física. Quando necessitava de alguma informação, havia um agente de polícia que solicitamente lhe fornecia o dado desejado. Fazia-o gostosamente, já que o resultado seria por ele aproveitado. Quando era um agente da polícia, que detetava e solucionava – o que era raro, mas sucedia – o homem tinha de se esforçar um pouco mais. Fazia algumas deslocações, telefonava, e, se necessário, telegrafava. Quando o criminoso tinha contatos fora das fronteiras, o detetive preparava sua mala e deslocava-se. Pachorrentamente. Não havia pressa. O detetive de hoje - que é sempre um agente das forças policiais - desloca-se constantemente, toma o avião, regressa em outro no mesmo dia. Obtém as necessárias informações por computador - é só preciso saber procurar - e por telemóvel. Em geral tem mais que um. O telemóvel é elemento chave do enredo. O leitor conhece a música de abertura, incomoda-se quando toca em momento inoportuno. O detetive de hoje é humano, vai ao ‘rest-room’, toma duche - frio ou quente conforme o estado do seu sistema nervoso - e, de vez em quando, come. O detetive cerebral do passado decerto se alimentava, mas não era coisa em que se falasse. Subentendia-se que homem da sua inteligência comia e bebia do melhor. O detetive de hoje é em geral americano. Os seus criadores são americanos, sabem o que dizem. Quando descrevem as refeições do seu detetive estão a falar do que sabem, estão a falar verdade. Ficamos pois a saber que o detetive de hoje se alimenta praticamente de sanduiches, e estas de composições surpreendentes: sanduiche de sardinha com peanut butter, sanduiche de carne fumada acompanhada de pequeno copo de cranberry sauce. Em casa, quando está no meio de um problema muito complicado, o detetive compõe ele próprio a sua sandwich, e sucede comê-la debruçado sobre o lava-loiça, limpando a cara à torneira e secando com guardanapos de papel. Nada nos é poupado. Quando tem um momento de lazer faz esparguete com molho bolonhês, ao qual acrescenta qualquer coisa, o que indica que gosta de cozinhar, só que não tem tempo. Quando o homem se senta à mesa de restaurante come rapidamente uma salada, talvez um bife com ovo, que rega tudo abundantemente, com ketchup. Se o homem envolvido na solução do crime é um advogado, a composição das sanduiches é menos arrepiante. O counselor vai a restaurantes de renome, onde o criado lhe coloca um guardanapo preto sobre os joelhos. Se pede água - o que sucede quando está em cura de álcool - trazem-lhe uma garrafa de ‘european water’. Mas o que tem isto a ver com o crime e o criminoso. Nada, é uma concessão ao leitor. O leitor gosta de saber. Em tempos gostou de saber do copo de licor de Poirot e dos scones de Miss Marple. Um dia gostará de saber que o seu detetive resolve tudo ao computador e se regala com concentrados de carne, legumes e talvez até de sanduiches.

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