Um Livro Novo
>> quarta-feira, 8 de junho de 2022
Nos Painéis de S. Vicente de Fora há duas figuras que não têm nada a ver com o tema da pintura. Que obviamente ali foram colocados porque têm importância própria. As duas figuras são o cavaleiro de longas barbas e capacete, e o homem de preto com o livro na mão. Não pode haver dúvida que está ali, não por ele, mas pelo livro que ele apresenta. Porque este livro é um livro impresso. É a primeira representação dessa grande novidade, um livro que não era escrito à mão. Em Portugal esse facto foi sempre ignorado. Passaram 100 anos sobre a descoberta daquelas tábuas no mosteiro de S. Vicente de Fora. Milhares de leitores, de amadores de livros raros, de bibliotecários se debruçaram sobre a figura do homem com um livro, e não houve um que se questionasse sobre aquele livro. Não há cego como o que não quer ver. Não viram o livro, o que interessava era explicar a presença ali de um homem com nítidas feições hebraicas. Pessoalmente nunca duvidei, que o que interessa não é o Homem, é o livro. No meu último livro sobre a questão dos Painéis dediquei um artigo ao homem com o livro que transcrevo aqui.
O Homem com o Livro
Há três livros nos Painéis. Aquele que um dos Santos
apresenta a D. Afonso V, no qual se lê ‘livro
dos Evangelhos’. Há em seguida, no mesmo espaço, mas no painel do duque de
Bragança, o livro que o outro Santo apresenta a D. Fernando, filho primogénito
do 2.º Duque de Bragança, e presumível mandatário da pintura. O terceiro livro
é aquele que é mostrado por um homem vestido de preto, que figura no painel da
gente da Câmara. Não se vê razão para ali estar. O livro não tem nada a ver com
o tema da pintura. O homem, de nítidas feições hebraicas, dificilmente se
explica em obra, que não seria de altar, mas que era devota. O livro está ali,
porque era uma coisa tão rara, tão nova, que o seu feliz proprietário não
resistiu à tentação de a mostrar na grande pintura, na qual - debaixo da sua
orientação e por sua ordem - se estava então trabalhando. O homem de preto foi
decerto ali encaixado quando D. Fernando adquiriu a obra. O livro era essa
raridade, um livro em papel. No afastar e dobrar das folhas há a preocupação de
mostrar que estas têm a particularidade de se dobrarem daquela
forma. E
livro em papel, e daquela dimensão, só podia ser um livro impresso. Um exemplar
do primeiro livro, que não era escrito à mão, mas impresso com letras móveis. A
pintura não podia transmitir, que se tratava de um livro impresso com letras
móveis, mas o facto de ser em papel era outra grande novidade. Outro livro da
pintura, no qual se lê a frase “O Pai é maior que eu” é obviamente um livro
escrito à mão em pergaminho. A rigidez das páginas contrastando visivelmente
com a flexibilidade das páginas do outro livro. A generosidade do proprietário
ao mandar reproduzir o seu livro na sua pintura iria permitir, que outros
pudessem ver como era um daqueles novos livros. Que livro era? Quanto a isso,
não pode haver dúvida. Gutenberg
imprimio como primeira obra, a Bíblia. Imprimio alguns poucos exemplares em
pergaminho e os restantes em papel. Uns e outros em duas colunas, e em letra
gótica. O livro dos Painéis é um exemplar da Bíblia de Gutenberg em papel. Alguns
exemplares foram impressos em ergaminho, mas a maioria foi-o em papel.
Os primeiros exemplares da Bíblia, anunciados como ‘primeira grande obra da nova Arte’, apareceram entre 1454 ou 1455, e já em 1454, Enea Silvio Piccolomini, enviado do Papa, à Reunião dos Estados do Império (Reichstag) em Frankfurt, escrevia para Roma, que vira umas primeiras folhas da Bíblia que se estava imprimindo segundo a nova arte. A arte da impressão propagou-se rapidamente. Em 1500 já havia no espaço europeu, em cerca de cem localidades perto de mil oficinas de impressão, mas Portugal só teria o primeiro impressor depois, ou pouco antes, da morte de D. João II. Como o homem tem nítidas feições hebraicas, quase todos os prévios investigadores, opinavam que se tratava de um judeu, e que, evidentemente, era - só podia ser - o rabi-mor da cidade. Por que razão ali estaria um rabi, e porque folheava um livro ninguém tentou explicar. Não creio, que se requeiram grandes explicações. O mais provável é que o homem de negro fosse o agente judeu que D. Fernando encarregara de lhe conseguir um exemplar da obra. Talvez um membro de uma das casascomerciais que existiam em Portugal, e que tinham contactos em toda a Europa. D. Fernando queria mostrar o livro, não olhouaos traços fisionómicos do homem que o apresentava
Cap.15
O cavaleiro com o capacete. Os retratos de Ruy Siqueira
Uma outra figura que está fora do
contexto, é, como se disse, o cavaleiro de longo cabelo comprido e capacete. O
homem de longo cabelo e o seu capacete têm intrigado até senhores que não se
ocupavam com os Painéis, e o que particularmente os intrigava era o capacete do
cavaleiro.
No Catálogo II, para a Exposição
Europeia de Arte, Ciência e Cultura, Maria Helena Mendes Pinto fez uma
apreciação das armas e da indumentária dos Portugueses, reproduzidas em
artefactos da Serra Leoa e de Benim, mas não tratou particularmente daquilo que
nos interessa, dos cobre-cabeças. Ora, numa figura de tocador de buzina de
Benim, conservada em Londres, no British Museum, vê-se um exemplar do chapéu do
tipo do barrete rígido, com motivos de bandas horizontais, muito parecido com o
que é usado pelo nosso cavaleiro.
Um saleiro
de marfim, também do mesmo museu, é cercado na sua base por figuras esculpidas
de cavaleiros portugueses, usando cobre-cabeças do tipo daqueles usados pelos
mercadores indígenas.
Os dados nacionais sobre a ida de Ruy Siqueira aquelas
paragens são vagas. Em uma publicação lê-se ‘É-lhe
atribuído do Cabo de Santa Catarina (mo extremo oriental de costa de Guiné)……..
não existe certeza relativamente ao ano em que o navegador efectuou a viagem,
mas é provável que tena sido em 1474 ou 1475..’ Em outro lado lê-se que
Ruy Siqueira ‘alcançou a costa da
actual Nigéria em 1472, batizando a lagoa na
região de Lagos (Nigéria) com o nome Lago de Curamo, e a cidade com o nome pela qual ainda hoje é
chamada, Lagos,
possivelmente em homenagem à cidade algarvia de Lagos’.