Um livro de notas do mosteiro de Arouca do século XIV, que, decerto
por engano, se encontra entre os documentos de Lorvão, dá conta dos homens que aquele
mosteiro empregava, e de como eram pagos. Não há livro igual para Lorvão, mas
os dois mosteiros tinham muito em comum, Arouca era, tal como Lorvão, de monjas
da Ordem de Cister, fora fundado pela infanta D. Mafalda, irmã da padroeira de
Lorvão. Arouca era igualmente rico em terras. Os dois mosteiros empregavam
forçosamente a mesma ordem de homens. Mandado fazer pela abadessa dona Guiomar
Mendes de Vasconcelos, o livro indica em primeiro lugar o que recebiam ‘os
monges e frades 00 confessos e homens de dona abadessa de capas e de saias’, seguem-se
´’azeméis, e mancebos de forno, e arengueiros, e todos os que hão de haver
soldadas, e rações, e mantimento do dito mosteiro de Arouca”.1
À cabeça desses
homens estavam os padres monásticos que rezavam as missas, que ministravam os
sacramentos. Era de entre eles que se escolhia o procurador do mosteiro, eram eles
os escribas que trabalhavam no escritório. Seguiam-se-lhes, em ordem de
importância, os ‘homens de dona Abadessa de capas e saias’, criados ou
empregados fardados, dir-se-ia hoje. Andavam por fora, iam ali onde o mosteiro
tinha terras e outros interesses. Recebiam soldada certa e ajuda de custo.
Sendo esta maior ou menor conforme a distância das terras onde o serviço os
levava. Se iam ao Porto, ou a terras de Além-Douro recebiam mais do que indo a
locais da Beira ou Estremadura: ‘de andarem em Além Doiro dez reis e meio, e na
Estremadura, três.’
Pagavam-se também
soldadas a um frangueiro, a um mancebo do hostal, ao poqueiriço, ao pateiro, ao
cozinheiro dos frades confessos, ao forneiro, ao moleiro, ao mancebo do
moleiro, ao carpinteiro, ao vaqueiro, ao ‘albergueiro do Monte de Fruste’, ao
meirinho, ao tabelião, ao moço da capela, ao ferreiro, ao sapateiro das donas’,
ao ‘sapateiro de fora’, e a numerosos azeméis.
Os ‘homens de Dona Abadessa’ de Arouca eram muito bem pagos e o
mesmo sucederia sem dúvida em Lorvão. Recebiam oito libras para vestir e
calçar, tinham mantimentos e ‘comedorias’ e, como foi dito, uma ajuda de custo
nas suas deslocações.
Lorvão, tal como Arouca, tinha homens ‘de Dona Abadessa’ indo a
toda a parte onde tinha propriedades. Verificavam obras, testemunhavam actos de
compra, de venda, de arrendamento, e tinham frequentemente procuração da
abadessa para firmar contratos. Em Fevereiro de 1349, Afonso Fernandes, ‘homem
de dona Guiomar abadessa’,3 está longe de Lorvão, tratando de determinado
assunto. Em 1367, cita-se um Martim Domingues ‘homem e procurador de Dona
Abadessa’. Em documentos de Lorvão fala-se por vezes em ‘mandadeiro’. Num
contrato de emprazamento feito em 1292 por dona Constança Soares estipulava-se
que o ‘mandadeiro’ do mosteiro, quando fosse ‘pela renda’, fosse albergado
durante um dia pelo rendeiro. Caso o mandadeiro, por motivos desse pagamento,
se visse obrigado a ficar mais tempo do que previsto, as custas e despesas
caberiam ao respectivo rendeiro. ‘Quando nossos mensageiros, oficiais e
procuradores forem por vossa casa, recebam honra e gasalho com o que tiverdes’,
recomendava em 1500 dona Catarina d’Eça.
Na sua maioria, os homens que tinham trabalho fixo no mosteiro,
eram pagos também em géneros O livro da abadessa de Arouca especifica
detalhadamente esses pagamentos. Aos frades que lá faziam serviço dava-se
anualmente, a cada um, um par de sapatos de vaca e outro de carneiro, e de
ração recebiam três pães de convento, meio alqueire de ‘vinho de convento’ - do bom, portanto - e azeite. Todos os Domingos
dava-se-lhes uma peixota e meia. Sardinhas recebiam, lê-se, ‘o mesmo que há uma
monja.’ Quando se fazia azeite, dava-se uma porção dele aos frades e,
separadamente, mais algum para ‘folhões e pão de manteiga’. Quando se matava o
porco, os frades recebiam duas espáduas dele, e pela Páscoa, tinham cabritos.
Os ‘homens de dona abadessa’ eram, como se viu, pagos em dinheiro,
e quando iam fora, recebiam também dinheiro para mantimentos. Quando iam longe
e se iriam demorar recebiam naturalmente mais. Em deslocação para lá do Douro
recebiam 10 e meio reais para mantimento. Quando andavam na Beira e na
Estremadura recebiam 3 reais. Quando estavam em Arouca tinham diariamente três
pães ‘raçoeiros’ e três fiais (sic) de vinho. Aos Domingos recebiam quatro
postas de carne e umas peixotas. Quando da matança, recebiam três espáduas de
porco, que lhes deviam durar de Natal ao Entrudo. Pelo Entrudo davam-se-lhes
cabritos ou leitões. Na Quaresma, recebiam, além da meia peixota que tinham aos
Domingos, todos os quinze dias nove sardinhas. Os ‘mancebos de forno’ recebiam
de soldada 4 libras e meia, uma capa e uma saia de burel e uns sapatos. De
ração davam-se a cada um três pães pequenos e seis broas. Aos Domingos tinham
oito postas de carne, e desde Natal até ao Entrudo recebiam sete espáduas de
porco ‘para todos’. Pelo Entrudo ‘senhas letigas,’ (sic) e pelo ano fora
sardinhas. Os azeméis tinham de soldada 4 maravedis e 5 reais e ‘senhos (suc)
quinteiros de milho’. Recebiam por dia um micho e duas broas e ums ‘fiaes’ de
vinho. Por dia de São Miguel havia para todos uma perna de vaca. Pelo Entrudo
‘senhas letigas (sic) ou senhas galinhas’. Tinham também uma espádua de porco
pela matança e uns centos de sardinhas.
Indicam-se em seguida as soldadas e as rações que cabiam aos
outros trabalhadores: ao mancebo da vinha da Corredoira, ao mancebo da Vorida
(sic), ao frangueiro do Burgo, ao mancebo do hostal, ao porqueiriço, o pateiro,
ao cozinheiro dos frades, ao forneiro, ao moleiro, ao mancebo do moleiro, ao
carpinteiro, ao vaqueiro, ao albergueiro de Monte de Fuste. E ao juiz de
Arouca, e ao meirinho, e ao tabelião, e ao juiz de Antoã. A sacristã, a
ajudante da monja que tinha esse cargo, também recebia soldada. E o moço de
capela, o ferreiro, o sapateiro das donas, e o sapateiro de fora.
A distribuição dos salários em dinheiro cabia à monja bolseira, a
dos outros géneros à celeireira. Não devia ser pequena tarefa. Não havia dois
assalariados recebendo as mesmas porções de pão, ou de outro géneros. O
frangueiro do Burgo recebia três pães dos pequenos e desasseeis broas, o
mancebo do hostal recebia três michos e dez broas etc.
Homens de fora eram também os ‘caminheiros’, que eram contratados
para levar recados a longas distâncias. Em 1359, as religiosas do mosteiro de
Chelas, querendo se queixar ao Papa do bispo de Lisboa ‘por razão de muitos
agravos’ que o Bispo lhes fazia, contrataram -‘caçaram’-, um mensageiro, ‘que
lhes levasse o dito feito à corte de Roma’. O mensageiro escolhido foi um
clérigo chamado Pedro Annes. Confiaram-se-lhe as escritas que devia entregar na
corte papal e vinte florentins de oiro para as suas despesas. Depois de se ler
a escritura do contrato, o dito Pero Anes ‘começara logo a ‘andar seu caminho
com um bordão na mão e um dobral ao colo como homem caminhante’. 3
Em 1417 certas Donas do mesmo mosteiro de Chelas mandam também recado
a Roma. Queixam-se da sua prioresa. Fizeram contrato com ‘um mancebo chamado
João Fernandes, oriundo de Vila Cova a Coelheira, no bispado de Lamego. O
mensageiro, devidamente apetrechado ‘com um sombreiro e um dardo na mão e um
barril na cinta’, recebeu moedas de vários países, prometeu que faria tudo que
lhe mandavam, e que traria de todo recado ‘guardando-o Deus do mal e de outra
cacom (sic)’. E pôs-se logo a andar ‘como homem caminhante, que segundo parecia
queria seguir caminho’.4
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Caminheiro |
Estes caminheiros não eram os únicos correios contratáveis. Os
recados para Roma sendo frequentes, havia quem se dedicasse unicamente a levar
esses recados, eram ‘caminheiros da corte de Roma’. Não encontrámos contratos
com caminheiro no arquivo de Lorvão, o que não espanta, o mosteiro tinha homens
de sobejo a seu serviço a quem confiar missões dentro e fora do País.
Importante também entre a gente de fora, era o mestre das obras. Os
incêndios eram frequentes, as inundações repetiam-se nos mosteiros, que na sua
maioria estavam implantados junto de correntes de água. As tempestades de chuva
e vento faziam estragos nos telhados. Convinha ter mestre de obra à mão, e lá
estavam. Entre os homens que testemunharam em Lorvão o treslado de uma Bula
papal estão ‘Johã de Salamanca, mestre das obras de carpintaria do dito
mosteiro e Gonçalo Affonso, carpinteiro.’. Em 1500 uma procuração dada por dona
Catarina d'Eça é testemunhada por ‘João Vaz, mestre das obras, e António Pires
seu criado’
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Gente das Obras |
Indispensáveis para o bom funcionamento da vida doméstica e
administrativa de um mosteiro situado longe de una grande cidade eram os
almocreves, que traziam de fora tudo aquilo que não se criava, ou se cultivava,
no mosteiro.
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O Almocreve |
À Esgueira, vila de pescadores, iam os almocreves regularmente
buscar o peixe, que os seus habitantes eram obrigados a fornecer ao mosteiro.
Quando havia urgência, perante uma importante e inesperada visita, por exemplo,
os almocreves iam comprar o peixe a Buarcos, que ficava mais perto do que a
Esgueira
O livro de dona Guiomar é um livro de salários e rações. Não cabia
nele a menção daqueles muitos homens que, trabalhando ‘fota’ do mosteiro, não
eram obreiros pagos se bem que constituíssem o seu mais importante braço de
trabalho. Arouca tinha decerto, tal como Lorvão, servos e escravos a seu
serviço, gente que lhe pertencia, que era posse sua, transmitida de abadessa
para abadessa, da mesma forma que se transmitiam as terras, e as casas, e os
animais. Na sua carta de protecção ao mosteiro de Lorvão, o rei D. Fernando
inclui nesses bens os seus ‘servos e escravos’. A coisa vinha de longe, do
tempo dos monges negros. Muitos devotos tinham-lhes legado terras e casais, e
outros bens, tais como os seus escravos mouriscos, ‘homes sarracenos meos’. A
iniquidade tardou a desaparecer. Uma criança nascida de servo ou serva era
serva como seus pais, a sua libertação dependendo do critério dos senhores de
seus pais. Em princípios do século XV, um padre de Lorvão teve um filho de uma
serva do mosteiro. A criança teria sido serva como a mãe, se não fosse as
monjas terem unanimemente declarado que a criança seria forra. Os pais do
progenitor, Lourenço Froles e Ana Vicente, festejaram a liberdade do neto,
oferecendo ao mosteiro uma vinha e um cortiçal que tinham em Gondelim, junto de
Penacova. A escritura dessa doação - espontânea ou não - refere que, por lhes
ter sido dito, que “dona Mécia Vasques da Cunha abadessa do mosteiro de Lorvão
e toda as outras donas e convento do dito mosteiro forraram e fizeram forro
Gonçalo, neto do sobredito Lourenço Froles, e filho de Estêvão Lourenço, e porquanto
o dito Estêvão Lourenço o fizera em uma serva do dito mosteiro, e o dito
Gonçalo seu neto ficava por isto servo do dito mosteiro pela dita razão’.5
Trabalhavam ainda para o mosteiro sem salário aqueles homens os
quais, pela carta de foral que lhes fora concedidas a eles, ou à terra onde
residiam, eram obrigados a fazer ao mosteiro determinado serviço para o
mosteiro. Assim, pelo foral dado em 1257 pela abadessa Dona Marina Gomes, à
vila de Midões, que pertencia ao mosteiro, os seus habitantes eram obrigados a
fazer anualmente ‘uma carreira a Lorvão ou a outro lugar que possam nesse dia
vir a sua casa’. Ou seja, um serviço de recado ou de transporte, que não lhes
ocupasse mais de um dia. Os homens de Torre de Vilela, que recebera foral da
abadessa dona Urraca Reimundo, davam ‘um dia de lavor ao mosteiro’. Eram muitos
dias de lavor, muitas carreiras e muitos outros serviços que o mosteiro recebia
dos seus foreiros.
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