A doçaria conventual - aquilo que ainda hoje faz lembrados
os mosteiros femininos portugueses - foi arte que só começou no século XVI. Só
então, com a importação da cana d’açúcar da Índia e do Mediterrâneo e
implantação da produção de açúcar em Portugal, na Ilha de São Tomé e depois no
Brasil, o açúcar se tornou um género acessível. Que os reis até davam em esmola
aos mosteiros seus protegidos. Em 1509, D. Manuel dá dez arrobas de açúcar ao
Convento de Jesus de Aveiro; em 1517 dão-se 8 arrobas de açúcar de esmola à
Santa Clara de Lisboa, e 5 arrobas de açúcar branco a Santa Clara de Beja. Nos
anos do reinado de D. Manuel esmolas dessas vão ainda para a Madre de Deus em
Lisboa, para os conventos de Santa Clara em Lisboa, Portalegre, Beja e outros.
Também as especiarias eram dádiva frequente dos soberanos aos mosteiros: 4.000
reis em especiaria ao convento de Celas, em 1512, especiarias em porção não
especificada a Santa Clara de Portalegre e ao mosteiro de Jesus de Aveiro em
1518; 4000 reis de ‘droga’ ao mosteiro de Santa Clara de Coimbra em 1519. E as
religiosas de todos os mosteiros de Portugal lançaram-se e na produção de uma
arte nova, a arte da doçaria ou pastelaria, alcançando, nesse campo glória
imorredoira. E merecida.
A coisa deve ter evoluído gradualmente, as monjas tiveram de
pensar como melhor aproveitar o doce açúcar que lhes caía em casa e que até ali
praticamente desconheciam. Tinham talvez usado um pouco dele em alguma mesinha
para as suas doentes, nunca na cozinha. Descobriram, provavelmente por acaso, a
cozedura do açúcar em ponto. Deram nomes aos graus de ponto ‘de cabelo, de
pingo.’ Lembraram-se de juntar açúcar aos ovos postos abundância pelas galinhas
que pululavam em todos os mosteiros. Cozida ou em caldo, a galinha era remédio
para todos os males. Os visitadores faziam os seus reparos: que o galinhaço até
entrava pelo coro, que as galinhas sujavam o claustro e originavam brigas entre
as suas donas. Sem efeito. As galinhas continuaram a picotar nos claustros e
pátios dos mosteiros. Enquanto não se lhes torcia o pescoço, se coziam ou
guisavam, as galinhas punham ovos. Ovos e açúcar ligavam bem, monjas e freiras
criaram, com arte e imaginação, inúmeros doces diferentes com os mesmos dois
ingredientes. Juntaram-lhes por vezes especiarias, amêndoas. Lembraram-se de
usar a obreia das hóstias para base de queijinhos d’ovos, de broas d’ovos.
Nos mosteiros havia a matéria-prima, a mão-de-obra, e o
tempo para aquele fabrico. E a criatividade. Entre tantas mulheres, haveria
sempre uma com talento para inventar e inovar. E para dar nomes adequados
àquelas criações: A produção de doçaria por parte das religiosas
desenvolveu-se, mas não era apreciada por todos as autoridades religiosas. Nas
actas dos visitadores encontram-se - a partir do século XVI - constantes
protestos contra os exageros da produção de doçaria, e da venda de doces para
fora, ‘porque o fazerem-se as religiosas tratantes, e da casa de Deus
mercancia, resulta em desserviço do mesmo senhor’. Depois de uma visita ao
mosteiro de Santa Clara da Guarda, os visitadores ordenavam que nenhuma
religiosa fizesse ‘trato em mercancia de doces para fora’, e que a madre
abadessa acabasse de vez com o abuso. O que não aconteceu. Uma vez começada, a
coisa iria tomar proporções de exagero, as monjas esquecendo as rezas na
azáfama de bater ovos e vigiar o ponto de açúcar. Em Arouca faziam-se, em
meados do século XVII, dezoito espécies diferentes de pastéis e doces. E, por
todo o Portugal, as abadessas gratificavam em dias de festa os magistrados que
trabalhavam para o seu convento, e os padres que lhes diziam as missas, com
‘prateleiras’ de doçaria variada.
Em Lorvão havia no século XVII uma ‘sala dos doces’,
presume-se que aí se preparavam doces, mas ignorava-se até há pouco que doces
eram esses. Livros conventuais de receita de doces são raros, se os houve,
desapareceram. As receitas transmitiram-se por tradição oral. Um livro,
recentemente publicado, da autoria do Dr. Nelson Correa Borges, intitulado
‘Doces conventuais de Lorvão’ , contém receitas de doces, conservadas nas
famílias da terra, atribuídos - e decerto com razão - às monjas do mosteiro de
Lorvão. As monjas tinham criadas, mulheres da terra que as ajudavam na
convecção dos doces, que muito naturalmente levaram as receitas para suas
casas, ou as ensinavam a outras mulheres. As receitas iam-se transmitindo, a
sua origem conventual muitas vezes esquecida. Em Lorvão faziam-se entre outros
os ‘Papos d’anjo, o Bolo de Bispo, o Bolo de Santa Teresa, os Bolos das
Infantas, Queijinhos do céu, Capelas de ovos, Fatias do céu’. Tudo doces à base
de ovos e açúcar, em Lorvão como nos outros mosteiros e convento de Portugal
com nomes adequados à sua proveniência: papos d’anjo, pingos de tocha,
queijinhos do céu, tocinho do céu
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Pingo de tocha de Arouca
|
Um doce conventual que não tem a nada a ver com os doces
d’ovos é aquela curiosa confecção doce, à base de peito de galinha., conhecida
por ‘Manjar Branco’. Aquela papa branca, que, em Lorvão, era apresentada em
toscos discos de barro, é coisa muito mais antiga que os doces d’ovos, e não,
como estes, especificamente português. Um doce com os mesmos ingredientes era
designado em França por ‘blanc manger’, e era uma confecção usada em toda a Europa
medieval. Uma pesquisa Google menciona a existência da receita em um caderno de
ensegnements, de ensino culinário, de fins do blanmangerséculo XIII, inícios de
XIV. O mesmo caderno ensina ainda como confeccionar o ‘blanc-brouet’, também de
peito de galinha, mas com uma diferença, não levava leite.
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Manjar branco ‘ Blancmange’
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Sabe-se que a receita do manjar branco veio do mosteiro de
Celas para o de Lorvão, ignorando-se contudo como e quando chegou a Portugal.
Talvez tivesse sido trazida por um dos visitadores de Cister, que periodicamente
vinham a Portugal, ou por um qualquer outro viajante de passagem. As monjas de
Lorvão tiveram a ideia de servir o seu branco manjar numas rodelas de barro. O
que faz do seu ‘manjar banco’ uma especialidade laurbanense.
Havia outras confecções doces nos diferentes mosteiros. No
livro de Mordomia de Lorvão de 1659 lê-se que no dia de Santo António havia
‘milhares’ para a merenda desse dia. Compraram-se - em Junho desse ano 145 pães
e 150 queijos, assim como leite para ‘milhares’. ‘Eram papas de milho que, em
Lorvão, quando feitas para a comunidade, levavam 3 arráteis de açúcar e mais de
200 quartilhos de leite. Em 1660, lemos que se tinham comprado para a
enfermaria e para a merenda que se dava no dia de Sº António, além das
habituais cerejas, 150 queijos, 165 pães, 145 pastéis. E ainda leite para
‘arroz doce’, que se dava ao convento no dia de Sº António, e o dos ‘milhares’
da merenda do mesmo dia. Acrescentara-se portanto pastéis e arroz doce à ementa
do ano anterior.
O ‘arroz doce’ que também deve ter entrado nos mosteiros com
os Descobrimentos, designava-se de entrada por ‘arroz de leite’. Numa receita
quinhentista de Lorvão lê-se que se gastavam ali para o ‘arroz de leite para o
Santíssimo Sacramento’- ou seja, para a refeição desse dia – ‘27 arráteis de
arroz, 26 de açúcar, 213 quartilhos de leite’. Em receita mais recente o ‘arroz
doce’ já é enfeitado com canela. Fazia-se com ‘28 arráteis de arroz, 12 de
açúcar, o almude de leite, 1/2 quartilho de água de flor, e 1 onça de canela”
~~FIM~~
NOTAS finais e
BIBLIOGRAFIA
Cheguei ao fim desta minha primeira experiência de
publicação on-line - creio que é assim que se diz. O livro teve à volta de
cinquenta leitores para cada capítulo. O que parece pouco, mas em Portugal não
é mau para um livro deste tipo e sobre este tema. Gostaria de pensar que tenha
ajudado algum estudante proporcionando-lhe informações úteis que não
encontraria facilmente de outra forma. O texto vai agora ser publicado em Pdf.
Farei ainda uma revisão, e agradeço desde já aos leitores que indiquem erros ou
falhas que tenham notado, e que eu possa corrigir.
Umas palavras sobre a Bibliografia que em seguida indico.
Cito unicamente os livros que de alguma forma são pertinentes ao assunto do
livro. Consultei obviamente outros, o tema faz parte da história medieval, e
não se estuda lendo unicamente textos sobre um determinado aspecto dessa época.
Para alguns do livros indicados há uma explicação, que pode
não ocorrer ao leitor. A ‘Crónica Nurembergensis’ de Hartman Schedel é citada
porque foi lá que procurei, e encontrei, uma imagem contemporânea do Porto
medieval. A ‘Crónica’ é considerada útil pelas imagens das cidades alemãs que
reproduz. Quando procurei uma vista da cidade do Porto para o capítulo XVI
consultei a ‘Crónica’, e dei com uma gravura que me pareceu ter a marca de
alguém que esteve na cidade, ou a quem esta foi descrita.
O livro ‘Religioese Frauenbewegungen im Mittelalter’, ou
seja sobre os movimentos religiosos femininos na Idade Média, que me foi
indicado na Livraria Histórica Ultramarina pelo Dr. Berkmeier foi essencial
para a compreensão do que se passava no século XIII em matéria de religião
quando os monges foram expulsos de Lorvão e substituídos nesse grande mosteiro
por monjas de Cister.
Os livros ‘As freiras de Lorvão e ‘o mosteiro de Lorvão’ de
T. Lino d’Assunção deram o impulso a este livro. Quando iniciei este trabalho
esses livros eram considerados fonte da história do mosteiro de Lorvão, e
praticamente os únicos livros que tratavam dos mosteiros femininos. Pensei que
as muitas mulheres que, por vocação ou obrigação, viveram as suas vidas nos
mosteiros de Portugal, e muitas vezes aí se realizaram como administradoras,
mestras de letras e canto, e em muitos outros ofícios, mereciam ser recordadas
de outra forma do que com a superficial ligeireza que Lino d’Assunção
considerou adequada ao tema.
BIBLIOGRAFIA
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CARTAS MISSIVAS
EITURA NOVA. Lº 3, 6, 9, 11, 12 da Extremadura Lº 2 de Além
Douro Lº 7 de Odianna
ARQUIVOS MONÁSTICOS
Mosteiro de Santa Maria de Arouca
Vols. 2, 4, 5, 7, 107, 135, 150, 161
Mosteiro de Santa Maria de Coz
Mosteiro de Jesus de Aveiro
Mosteiro de Jesus de Setúbal
Mosteiro de Santa Maria de Almoster,
Mosteiro de Santa Maria de Celas, Maços IV a Maço IX
Mosteiro de Santa Maria de Lorvão,
COLECÇÃO ESPECIAL, Lº 40, Maços 2 a 9.
Lº 313 Privilégio e Prazos
Lº 359
Livro das Preladas
Colecção de maços de Doc. Avulsos
Mosteiro da Madre de Deus dm Lisboa
Fundação do mosteiro da Madre de Deus Livro Mss
Mosteiro de Odivelas
Mosteiro de Chelas
Convento de Santa Clara da Guarda
Vol. 3 Livro de Visitações
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Elucidário das palavras, termos, e frases anticuadas da
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Em casa do Editor A.J.Fernabdes Lopes rua Áurea 132-34
Lisboa
MLCCCLXV
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