A entrevista literaria
>> segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009
23. A entrevista literária
Como sou curiosa do que se diz em matéria de livros, logo que há na televisão um programa dito ‘literário’, lá me têm como atenta auditora. E entrevista a escritor publicada em jornal ou revista também pode contar com esta leitora. Gosto de saber como o escritor enfrenta o acto da escrita, interessa-me a sua opinião sobre temas literários, e por pouco que diga, alguma coisa lá ficará.
Em televisão os programas são em geral curtos, o tempo televisiva é caro, as grandes entrevistas não são para discutir literatura. O entrevistador não levanta problemas, não têm dúvida quanto à excelente qualidade da obra de que se vai falar. Olha para o entrevistado com respeitosa simpatia, ouve com ar compenetrado as suas opiniões e divagações.
De alguns percebe-se que de literatura pouco sabem, e de livros pouco mais conhecem do que as ultimas novidades de autores portugueses e de alguns autores americanos. Conhecem talvez a literatura sul americana e africana, da literatura do nosso continente é que estão um pouco esquecidos. O que não tem importância, porque os ouvintes também nada sabem.
Uma escritora francesa, de quem se ia lançar o primeiro livro, conta como o seu director literário, que estava também a cargo das relações públicas da editora, propusera filmá-la numa entrevista e fazer um vídeo para juntar ao comunicado que se enviaria aos médias.
A autora gostou da ideia. A entrevista dava-lhe ocasião de ganhar algum à vontade para falar no seu romance. A coisa não teria nada de profissional, nem tinha essa pretensão. Uma óptima ideia.
Aceito-o. O que penso é que não se pode confundir duas coisas tão diferentes como a entrevista literária, e a apresentação para fins comerciais de um livro por meio de uma troca de impressões e de amabilidades entre um autor e um apresentador.
Os leitores de entrevistas escritas são um pouco mais exigentes do que os auditores da entrevista de televisão, e a qualidade do entrevistador é outra. Há naturalmente bons e maus entrevistadores. Há o ‘conhecedor’, que sabe tanto ou mais do livro que o seu autor, encontrando nele o que o seu criador nunca imaginou. Há o entrevistador socialmente empenhado, unicamente interessado em romances que foquem problemas sociais, há a entrevistadora feminista, há o entrevistador das estrelas do momento. O facto é que se banalizou o género.
Originalmente, a entrevista literária não era feita a principiantes, e não era o primeiro livro de um autor que se discutia. A entrevista era feita a alguém que já tinha uma obra, era da sua obra que se falava e destinava-se a leitores com conhecimentos e gostos literários. Felizmente ainda se fazem entrevistas deste tipo.
Tanto quanto sei o género nasceu em fins do século XIX e em França, onde a literatura sempre foi considerada um tema sério. Num livro intitulado “Lire, écrire et en parler”, “Ler, escrever e falar nisso”, que contém uma colecção de cinquenta e cinco entrevistas publicadas na revista Lire entre 1975 e 85, Bernard Pivot, um dos entrevistadores, introduz a obra com um dialogo imaginado sobre o que seja esta curiosa coisa que é a “entrevista”.
Traduzo:
--A propósito-- pergunta um dos interlocutores --de quando data esta mania de ir chatear escritores em suas casas para os bombardear de perguntas espantosas sobre os seus livros e a sua vida?.
--Desde o fim do século passado (sec. XIX), responde o outro --quando floresceram as primeiras entrevistas nas gazetas--.
--Mas foram os jornais, a rádio, a televisão que criaram essa engrenagem. Que satisfazem uma necessidade do jornalista e do público e não uma necessidade dos escritores alega o primeiro. De resto quando a grande imprensa não existia, os escritores não comentavam as suas obras, e não se sentiam frustrados por isso.
--Errado--responde o segundo--Os escritores sempre sentiram a necessidade de comentar as suas obras. Mas como a entrevista ainda não fora inventada, eles faziam preceder a sua obra de um prefácio, de uma espécie de ‘forma de usar’, que intitulavam – e não por acaso – ‘ao leitor’.*
Conto-me entre os leitores que lêem os prefácios, e, em matéria de entrevista literária, sou nela a terceira pessoa. Aquela que - sem que a sua presença seja notada - assiste à conversa, e a segue com o interesse de conhecedora.
No livro que citei, Pierre Boncenne, um dos autores das entrevistas, pergunta a Ângelo Rinaldi, autor de livros e critico literário, o que ele pensava da entrevista:
“Como critico literário em que posição coloca a conversa, a entrevista, literária?”
Ângelo Rinaldi: “Numa posição importante. Sou amador de diários íntimos, os romances que escrevo são na primeira pessoa. Gosto muito do tom de confissão. Leio portanto muitas entrevistas. É nos momentos de abandono, no fundo da conversa, que tempos por vezes a sensação de apanhar a pessoa, melhor do que na apreciação da sua escrita”.
Pessoalmente, prefiro saber do trabalho mental do autor, daquilo que o levou a escrever determinado livro, daquilo que ele acha mais importante na escrita. Mas o escritor é uma pessoa com as suas simpatias e antipatias, o seu lado pessoal têm importância, e uma entrevista bem conduzida mostrará as duas faces do autor.
O papel do entrevistador é primordial. A sua primeira pergunta dará o tom da entrevista, as seguintes farão desta uma conversa.
De entre as entrevistas recolhidas no livro que mencionei, houve duas que me interessaram particularmente, por se tratar da conversa com autores de livros que li e admirei.
A primeira era feita por Bernard Pivot a Robert Sabatier, autor de “Les Allumettes Suedoises”, a história simples de uma criança nascida e criada em Montmartre, livro que foi em França um sucesso enorme e totalmente inesperado,
A segunda entrevista, conduzida por Pierre Boncenne, era com Alexandre Zinoview, e tratava do seu “Hauteurs béantes”. Um contraste absoluto. A vida de uma criança de Montmartre, a vida de um intelectual na Rússia soviética. Um livro fácil, e um livro extremamente difícil. A entrevista a Pierre Sabatier estava a calhar para alguém com a sensibilidade de Bernard Pivot, a entrevista a Alexandre Zinoview exigia um entrevistador que estivesse intelectualmente à altura de um autor que era então professor de lógica na Universidade de Munique. A leitura dessas duas entrevistas confirmou a minha opinião de que a qualidade e o interesse da entrevista literária depende em grande parte do entrevistador.
De cartas à minha filha
22 de Maio 2002
Ligando ontem para o Canal 2 fui a tempo de ouvir no ACONTECE de Carlos Pinto Coelho a entrevista dele ao Mega Ferreira, que acaba de publicar uma novela com o originalíssimo título de “Amor”. Carlos Pinto Coelho começou por fazer uma pequena consideração sobre a pessoa do autor e a obra que acabara de publicar. E o que é que estes espantados ouvidos ouviram? Ouviram como, entre os encómios ao escritor, se falou na sua grande cultura, a qual se provava, entre outras coisas, pelas citações que ele fazia e os livros que mencionava na novela que se analisava, entre eles, e cito: "o Alexandria Quartett do Durell”. Virado para nós, público, Carlos Pinto Coelho tinha, ao dizer isto, a expressão de quem nos convidava a partilhar com ele da admiração e respeito por alguém que lera o Alexandria Quartett. O que é que me diz a isto? Repito: o que é que me diz a isto? Não sei há quantos anos li a referida obra, creio que também a leu, e nenhuma de nós jamais pensou que esse facto fosse qualquer coisa de admirável. Parece-me que nos nossos meios da alta intelectualidade reina agora a admiração pelos escritores que leram livros estrangeiros e os citam...........”
7 de Julho 2002
“Percorrendo as novidades literárias portuguesas, abri o novo livro de um autor chamado Possidónio Cachapa, que se intitula “O Mar por cima”. E a primeira coisa com que deparo ao abrir o livro, e não estou a exagerar, a primeira coisa com que deparei foi com a inevitável descrição dos protagonistas na cama,............ O livro terá com certeza sucesso. Basta ver que já veio no DN a inevitável entrevista da Maria Teresa Horta ao referido autor. Eis algumas das perguntas que ela lhe fez: “Porque é que este seu livro é tão arrogante? Escrever, para si é um desafio? No seu romance o sítio de onde se parte é o sítio onde se chega?” As respostas do autor entrevistado estiveram à altura: “Eu deixo-me ir um pouco na crista da onda, para usar expressões marítimas que têm a ver com este livro. É como se cavalgasse no lombo da ferocidade.” E outra “O meu espaço é em espiral, como se eu estivesse concentrado na energia do percurso”. Não sei que mais lhe diga. Sei que me apetece berrar quando oiço estas perguntas e estas respostas.
PS. A minha editora pretendeu a dada altura que Maria Teresa Horta me entrevistasse. A entrevistadora espondeu que: só se eu fosse a sua casa. Declinei a honra”
27 de Outubro 2005
“Ontem, pelas oito e meia, ouvi uma entrevista espantosa no canal francês Telé 5 . A entrevistada era Benoite Groult, escritora feminista da qual nada li, mas cujo nome conheço. Tem 85 anos, mas parece 65. Estamos tão habituadas a esta nova moda, que é a entrevista televisiva, que nem realizamos que é extraordinário que haja pessoas que de boa vontade se coloquem diante de uma outra pessoa, e que por ela se deixem entrevistar, ou seja, se deixem interrogar sobre a sua vida e a sua personalidade. ....... Pois esta escritora, muito bem vestida, de calças e blazer, com os beiços de quem fez um lifting - como ela confessou que fez - mas nada ridícula, respondeu e fez considerações sobre as coisas mais íntimas da sua vida, com uma sinceridade admirável - ou incomodativa - como se isso fosse sua obrigação. Quanto ao ‘le sexe’, tema nº 1 da actualidade, até a entrevistadora, que já deve ter ouvido algumas, mostrou um certo espanto quando a jovem octogenária declarou que não sofria de ciúmes, e que até gostara muito quando seu marido Paul tinha ‘fait l’amour’ com uma senhora que tinham encontrado numa das suas viagens. Não sei se a dita também era octogenária, mas não eram muito novos nem ela nem o Paul, pelos detalhes em que se entrou. É verdade, ela anda de ski e vai pescar ‘la crevette’ . Como lhe digo, fez-me pensar nesta coisa curiosa que é “a entrevista”. Que um escritor não se importe, e até goste, de ser interrogado sobre a sua escrita e até sobre aquilo que o conduziu a ela, é compreensível, e na minha modesta maneira, já o fiz. Mas que isso nos obrigue a declarar tudo que somos e tudo que sentimos não entra na minha cabeça. De resto, foi agradável ouvir um bonito francês e frases claras e correctas.”
1 de Fevereiro 2006 quarta-feira)
“À terça-feira é dia em que - à hora das noticias - passa (no canal de não sei que número) um programa sobre leitura conduzido pelo Francisco José Viegas.
Ontem era entrevistado o José Rodrigues dos Santos, locutor do primeiro canal, mas, zapando para o dito canal, via-se o mesmo a ler as noticias. Do que podemos concluir que aqueles programas de leitura são pré fabricados, e que é uma treta quando o Francisco José Viegas debita no final um estribilho dizendo que “estivemos a falar de livros enquanto outros estão a ver novelas”. Não estava ninguém a ver novelas, porque não era hora delas, e eles também não estavam ali naquele momento a falar de livros, tinham estado
A entrevista era sobre o livro do nosso conhecido locutor, livro que já vendeu mais de 45.000 exemplares (que inveja!) , que se chama CODEX Nr. Tal, e que trata da descoberta da identidade do Cristóvão Colombo. Querem por força que o homem tivesse sido português e, segundo consegui perceber, no CODEX Nr. Tal há um investigador que descobre que ele era, não só português como judeu. Até aí tudo bem, num romance histórico podem-se idear identificações, o que já é menos bem é a entrevista ter sido conduzida como se o autor tivesse de facto chegado a conclusões historicamente certas. As perguntas eram feitas nesse sentido, e como não há ninguém mais corajoso - ou mais ingénuo - nas suas declarações do que o ignorante, o José Rodrigues dos Santos falava como se tivesse de facto descoberto a verdade sobre o caso. A meu ver, a culpa não foi dele, a culpa foi do entrevistador. Ele é sempre muito simpático com os seus convidados, o que – até certo ponto - está certo, mas neste caso nunca devia ter deixado a conversa fugir ao facto de se tratar de um livro de ficção, e das opiniões do autor serem puramente de ficção. Em vez disso, o entrevistador apoiava com a cabeça quando o José Rodrigues dos Santos fazia uma das suas afirmações históricas, e no fim entrou-se no surreal quando o autor fala num duque de Faro, coisa que nunca existiu, e quando os dois pareciam querer ligar o caso entre o duque de Bragança e D.João II, e a morte daquele, ao assunto em questão.
Ora Francisco José Viegas não é obrigado a ter conhecimentos profundos sobre o caso Colombo, mas devia ter estudado um pouco a coisa antes da entrevista. O que não seria difícil, porque, quando há anos se publicou um livro do Álvaro Barreto sobre o caso Colombo, as afirmações deste livro foram refutadas em quatro magníficas pequenas obras, uma da autoria de Vasco Graça Moura, outra de Alfredo Pinheiro Marques, outra do Luís Abrantes. Todas óptimas. Apoiado no conhecimento do que fora dito por especialistas, a entrevista teria tido outro valor e outro interesse.”
*Lire, écrire et en parler Dix années de littérature mondiale en 55 interviews publiés dans Lire Éditions Robert Lafont. 1985
Observações à margem
Os Livros de Afonso de Torres.
Se algum leitor desse texto quiser ajudar a decifrar o seu inventário,aqui vai uma pergunta. O que será nr..51 – A contersia de Justiça Luso 60 rs?
7 comentários:
Antonio Barreto escreveu um livro sobre Cristovao Colombo ?
Anónimo. Obrigada por me avisar desse disparate. Quis-me referir a Augusto Mascarenhas Barreto autor de Cristovão Colombro, agente secreto de D. Jão II, e saíu-me António Barreto.. Mais uma vez obrigada por me apontar a gralha. Theresa S, de CºBº
É realmente um prazer lê-la todas as semanas. Continue, porque tem uma lucidez estupenda.
Obrigada, João Pedro. Um dos curiosos aspectos deste fenómeno que se chama blogue, é o contacto directo que nos dá com os nossos leitores. Não os conhecemos, mas creio que escrevemos para eles com mais atenção do que o faríamos para leitores de jornais. É que aqueles, muitos ou poucos, que lêem os nossos blogs, escolheram lêr-nos. Vejo que é o seu caso, e agora quando escrever, vou pensar para comigo "Espero que o João Pedro Ferrão goste Theresa S. de CºBº
Gostei do seu comentário "A entrevista literária" e concordo consigo no "global", como agora de diz. Não é fácil comentar um texto em pouco tempo e cai-se com facilidade nos elogios superfície. Numa dimensão muito mais pequena, também jé senti dificuldades no Clube de Leitura, especialmente, quando um livro é fraco ou desinteressante. Procuro sempre dizer o que penso, com diplomacia e procurando não ferir o autor, no entanto não deixamos de apresentar as nossas dúvidas, mas que é fácil, não é não. Um abraço, Olga
A Olga Marques
O contacto do entrevistador com o seu convidado deve ser ‘delicado’. O autor é uma planta muito sensível, talvez não fosse mau dizerem-lhe que o facto de o terem convidado já era prova do interesse que tinham pelo seu livro (obra), mas cada uma de vós tinha naturalmente a sua opinião etc
Sabe o que este ‘bloguear’ me tem dado? Encontrar lá longe, alguém que leu o mesmo livro, que se interessa por problemas literários que me interessam, e não interessam minimamente as pessoas do meu conhecimento. É agradável. No nosso caso, a coisa é um pouco diferente, mas como só nos vemos de quando em quando, acho óptimo podermos ter estas conversas através do blogue. Um abraço Theresa
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Bom dia Theresa. Por acaso já descobriu o que é o "A contersia de Justiça Luso"? tenho dado tratos à cabeça mas não consigo descobrir....
Gonçalo da Cunha
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