o capítulo em que São Bento na sua Regra tratava ‘da quantidade das iguarias e qualidade do comer’, o
autor especificava o que, em seu entender, devia ser o comer de cada dia. Podia
haver a cada refeição - ‘a todas as mesas’ - duas iguarias, ‘pelas infirmidades
e fraquezas de muitos, para que o que não poder comer de uma, coma da outra’.
Destas duas iguarias, o religioso ou a religiosa escolheria uma, à qual poderia
juntar fruta ou um legume, havendo-os. Quanto a carne, não era permitida. Frangos,
patos, pombos não eram tidos como carne, e eram tidas como salutares em caso de
doença e fraqueza, e eram permitidos e até aconselhados nesses casos.
Normalmente, porém, as bases da refeição eram peixe e pão, água e vinho.
Dava-se em geral por refeição uma ’peixota’, uma pescada, na opinião da maioria
dos autores. Uma pescada média, decerto, ou, talvez outro peixe de médio
tamanho quando não havia a obrigatória pescada.
Alimento principal era o pão. O pão de trigo,
que se foi generalizando com um maior plantio de trigo, com bom fermento designava-se
por ‘pão de convento’. Havia o ‘pão raçoeiro’, de trigo e centeio. Havia pães
pequenos e grandes de todas as qualidades. Havia os ‘michos’, havia pães
redondos, pequenos ou grandes., feitos de trigo e milho, e por fim as broas, só
de milho.
A distribuição dos pães cabia à tulheira e não era tarefa fácil. As ‘soldadas’ eram em parte pagas em
pão, os pães não eram os mesmos para as monjas e os apaniguados, nem os mesmos
para todos os apaniguados.
A partir da Páscoa e até à festa do Espírito Santo, na Primavera
portanto, a ‘comida’ - a principal refeição - era à sexta hora, ao meio dia de
hoje, portanto. E assim se continuaria pelo verão fora, tendo em consideração o
calor dessa estação. Nos dias de jejum, a ‘comida’ era à Noa, ou seja às três
da tarde. Era também a essa hora que, a partir dos primeiros dias de Setembro e
até ao princípio da Quaresma, se tomava a principal refeição. Na Quaresma, até
à Páscoa, a ‘comida’ era a vésperas, ou seja à tarde, recomendando São Bento
que se comesse ainda com luz do dia para poupar a iluminação artificial, para
que os ‘que comerem não tenham necessidade de candeia’
">As religiosas tinham pois por dia uma única refeição forte. Podiam
comer fora de horas algum bocado do pão que lhes era distribuído, mas só se
sentavam à mesa uma vez por dia, para a refeição forte, ‘a comida’.
Gradualmente passou a ser usual e permitido haver uma segunda refeição sentada
no fim do dia, distinguindo-se a partir daí entre ‘comida’ e ‘ceia’.
De mosteiro para mosteiro, e de Ordem para Ordem, as expressões
usadas para as refeições e horas delas podiam variar. Na tradução para
português da Regrade São Bento feita por Frei Tomás do Socorro, lê-se: ‘a hora
da ceia ou da comida’, dando a ambas as designações o mesmo significado. Nas
constituições das freiras de São Domingos, traduzidas no século XV, lê-se, que
a sacristã tocaria a campainha ‘antes do jantar ou da ceia à hora convinhal’, e
que logo se davam ‘as coisas necessárias para refeição das irmãs’. À pequena
porção de comida que se dava em tempo do jejum, designava-se por ‘colação’: ‘No
tempo do jejum, à hora conveniente, faça a sacristã sinal para a colação’.
Em certos dias havia uma melhoria no volume das refeições com
‘pitanças’ legadas por devotos do mosteiro. Eram legados com condições
devidamente refustadas. Designavam-se por ‘pitança’. Em 1241 a abadessa de
Lorvão e seu convento comprometem-se a comprar uma propriedade no valor de 200
aureos, ‘áureos vetens’, que lhes
deixara a rainha D. Branca para que, com os rendimentos dessa propriedade,
tanto elas como as suas sucessoras, pudessem ter ‘pitança’ de pão e vinho e
peixe fresco no dia de seu aniversário, ‘bono
pane et vino et piscibus recentibus’.Houve muitas dessas pitanças, e sempre
mais do mesmo: mais pão e mais peixe.
A Regra partia do princípio que q comida dos monges - e portanto
as monjas, que haviam adoptado a mesma Regra - deviam comer à mesma mesa a sua
refeição. Nos mosteiros femininos o costume não tardou a mudar. A Regra autorizava,
como se leu, duas iguarias em todas as mesas, para que aqueles que não podiam
comer certa iguaria, pudessem escolher outra. Com esta consideração ia ser dada
uma das primeiras machadadas na tão apregoada vida em comum. Em alguns
mosteiros seria criada uma divisão separada – uma ‘misericórdia’- na qual
comiam as monjas, que por razões de saúde tinham comida mais substancial ou
mais delicada. A partir daqui nasceu a ideia da divisão das religiosas em
pequenos grupos, comendo separadas mesmo sem razões de saúde, e que cozinhavam
para si as suas próprias refeições.
A opção da comida separada, em vez da refeição em comum, não se
explicava só pelo muito humano desejo de mais privacidade, porque a ser essa a
razão, as monjas teriam conseguido o relaxamento da vida em comum também no
dormitório. Onde isso mais tarde também se viria a dar, mas nunca como na
comida. As aristocráticas filhas de família que professavam em Lorvão estavam
mais que habituadas a dormir com uma ou mais mulher no mesmo quarto. Em suas
casas não se fazia outra coisa, privacidade era coisa que não havia nas casas,
grandes ou pequenos. Dormir em comum não era sacrifício. Duro era ter de comer
comida cozinhada para muitas bocas, fatalmente menos cuidada do que os
cozinhados feitos para duas, três, ou mesmo quatro pessoas. E, mais difícil que
tudo, era o ter de aturar os hábitos de comer menos cuidados de uma ou outra
companheira. E assim, pouco a pouco, foi-se instalando entre as monjas o hábito
de cozinhar e comer separadamente. Foi hábito que por toda a Europa os
visitadores e reformadores se esforçaram por erradicar, mas com pouco êxito. E
por vezes causando revolta declarada, como a das monjas do mosteiro de
Wenningen perto de Hannover na Alemanha, onde, em 1455, as monjas se revoltaram
por as quererem a obrigar a comer em comum. Algumas entregaram, relutantemente
os pratos, copos e facas e os utensílios de cozinha próprios, mas outras
‘deixaram cair os pratos para os partir’.
Em Lorvão a coisa foi menos belicosa. Em 1534, respondendo aos
reparos do visitador, que não se habituava àquela flagrante quebra da Regra, as
monjas alegariam que não podiam comer em comum, porque o mosteiro não tinha
pessoal suficiente para o efeito. O visitador, cansado de bater sem efeito na
mesma tecla, desistiu de impor o impossível, e descarregou’ a consciência, e a
de ‘dona abba e monjas e religiosas’ permitindo o novo hábito. Causando um
trabalho insano à celeireira e às suas oficiais. É que as monjas recebiam não
só quantidades definidas em pão, peixe e condimentos para os seus cozinhados,
como essas quantidades diferiam conforme as datas em que eram dadas.
Acerca das mesas às quais se sentavam os pequenos grupos de
monjas, há uma curiosa recomendação por parte de um visitador. Exigia ele que
as mesas fossem redondas. Com o que se eliminavam as cabeceiras, o que evitava
as questões de precedência, a discussão de quem tinha mais direito à cabeceira
e à presidência da mesa, e quem ficava à sua direita e esquerda. Na linguagem
monástica nasceu também uma nova e mais elegante expressão para designar o
local das refeições. O refeitório passou a ser designado por ‘sala de jantar’
Em 1536 as monjas de Lorvão assinam um documento em a ‘sala de jantarem’.
Os cozinhados individuais
permitiam a inspiração, criavam-se variantes com os mesmos elementos, e
tentavam-se novas combinações. Deve ser o resultado de uma dessas experiências
o caldo qual se conservou a receita, que as monjas de Lorvão tomavam na
Sexta-Feira-Santa. Fazia-se com 4 alqueires de tremoços, alqueire e meio de
grão e alqueire e meio de ameixas. Ou seja, aproximadamente, 2 kg de tremoços
750 g de grão e 750g de ameixas.
Houve que esperar pelas Descobertas para conseguir combinações
mais atrativas, mas antes disso já se tinha conseguido variar a monotonia de
pão, peixe e conduto, fugindo à Regra dentro da Regra. Havia dias de consoada
em que a comida era especial,
Já só existem livros de
contas do século XVII, os mais antigos sendo gradualmente destruídos, mas os
usos pouco mudavam nos mosteiros, e o que se usava a em matéria de consoada no
século XVII não diferia decero do que se dava nas mesmas ocasiões nos anos anteriores.
Os dias de Jejum - que não eram poucos do ano religioso - eram compensados com
uma consoada, uma ligeira refeição à noite. No austero mosteiro da Madre Deus
em Lisboa, as religiosas gabavam-se de consoar com ‘dois bocados de pão e umas
folhas de hortelã’ .
Em Lorvão era-se menos frugal. Nos meses de Junho e Julho compravam-se grandes
quantidades de cerejas para as consoados dos dias de Santo António e São João.
O “Livro da Mordomia” de Lorvão do ano de 1659 diz que para as consoadas das
vésperas de Stº António, S. Joâo Baptista, e da Visitação, e merenda de Stª
António’, se tinham comprado nesse ano 735 arráteis de cerejas.
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