‘Vão para o deserto’, dissera Jesus, dando voz à arreigada
ansiedade de alguns homens. E os desertos povoaram-se de ‘monacos’, de homens vivendo só. Por ‘deserto’ entende-se o ermo
longe das povoações, não obrigatoriamente um ermo árido de areia ou pedra. Um
local isolado, sim, mas fértil, onde haja água. Frequentemente um local
aprazível, ou mesmo de grande beleza natural, porque o homem que procura Deus
anseia por encontrar provas visuais da existência divina na paisagem que o
rodeia.
Há um homem que
descobre o seu lugar no deserto, é o primeiro cenobita. Que não fica só por
muito tempo. Mais tarde ou mais cedo, por meios de comunicação que mal se
explicam, a notícia da sua existência chega aos ouvidos de outros que, como
ele, procuram Deus na solidão. Atraído pela fama do local ou do seu eremita
chega ali outro aspirante á tranquila vida contemplativa. À cela inicial
junta-se outra e outra, e em pouco tempo existe um núcleo de células. É um
cenóbio. Constatam também ser mais cómodo e mais seguro juntar sob o mesmo
telhado as células individuais. Constroem casa que os albergue a todos. É o
mosteiro.
Em breve torna-se necessário a estes homens solitários, que vivem
juntos, aquilo que preside a todas as sociedades: uma regra de conduta. No
século VI esse instrumento nasceu. Obra de Bento de Nurcia, fundador da Ordem
beneditina, o seu livro de conduta, a sua Regra..
‘Se for possível, escreve São Bento, ‘edifique-se o mosteiro de
maneira, e em parte que tenha de portas a dentro tudo o que for necessário.
Convém a saber: água, moinho, horta, forno e que todos os ofícios se exercitem
dentro do mosteiro’.
Foi obedecendo a estas diretrizes
que nasceu, e foi evoluindo, o plano de construção a que obedeceriam com poucas
variantes, praticamente todos os mosteiros de raiz beneditina, particularmente os
da Ordem de Cister, seus abades resistindo sempre às modificações que lhes eram
propostas.
Em 1533, estando em pleno entusiasmo de reforma monástica, D. João
III questionou frei João Claro, abade de Alcobaça, sobre alguns melhoramentos
que propunha mandar executar no seu mosteiro. Frei João não apreciou as ideias
de Sua Alteza - abades e abadessas eram na sua maioria da opinião que el-rei
não se devia meter onde não era chamada - e rejeitou quase todas as reais sugestões.
De uma proposta declarou que dessa forma não convinha, na biblioteca era melhor
não mexer, por tal e tal razão, o chão sempre fora ladrilhado, não convinha que
fosse lajeado como el-rei sugeria. Em suma: nos mosteiros cistercienses não se
podia mexer porque eram todos feitos segundo o mesmo plano. ‘Senhor, as nossas
casas são todas fundadas em uniformidade’ escrevia frei João Claro.
E assim era quando se tratava de mosteiros fundados de raiz pela
ordem de Cister. O que não era o caso em Lorvão, que nascera antes da Ordem de
Cister ter visto a luz do dia. Não há pois que imaginar o mosteiro que as
monjas de Cister vieram a herdar em Lorvão como típica casa monástica
cisterciense.
Em um pequeno
livro manuscrito proveniente do mosteiro de Alcobaça, um tal Frei Hilário das
Chagas, reuniu, entre textos de natureza diversa, alguns apontamentos
referentes a mosteiros de religiosas da sua Ordem. Há notas – ‘títulos’- sobre
os mosteiros de Odivelas, de Celas, de Arouca, de Lorvão e de Coz. O capítulo
que trata de Coz é da autoria do próprio Frei Hilário, e data de 1572; os
apontamentos sobre os outros mosteiros, entre os quais o de Lorvão, são de
autores desconhecidos e datam de l491 e de 1496. Um desses autores escrevera
então sobre Lorvão: ‘Este muy insigne mosteiro de Lorvão está fundado em uma
terra de muito pouca consolação, entre umas serras mui ásperas e cobertas de
muita carqueja. E de redor deste mosteiro não há lugar para fazer uma horta,
que tudo não seja pejado dos ditos servos (sic), e o sítio do mosteiro é lugar
mui frio e húmido e sem condição alguma para mulheres ou para homens, somente
tem muita água e boa.’
Cabe perguntar o
que teria acontecido a vinhas e hortas que havia junto do mosteiro quando lá se
instalaram as monjas. Os documentos comprovam que as monjas aforaram hortas e
vinhas junto do mosteiro pouco tempo depois de lá se instalarem. No entanto, no
século XVI, como se leu, hortas e vinhas tinham desaparecido dando lugar à
carqueja. Outra apreciação do local, feita uns anos depois, pouco difere desta.
Frei Claude de Bronseval, secretário
do abade Claraval dom Edmé de Saulieu,
que, em 1531, veio a Portugal inspecionar os mosteiros cistercienses, descreve
a primeira impressão que teve do mosteiro. Atravessando os montes do Bussaco, o
abade e a sua comitiva atingiram um píncaro do qual avistaram Lorvão, situado
dentre dois montes assustadores ‘horridos
montes’, em local horrível e numa solidão absoluta, ‘in loco horroris et vasta solitudines’.
A sul situava-se a casa monástica propriamente dita. Tinha por
centro o claustro, e, em torno deste, o refeitório, o dormitório, e as outras
dependências funcionais como cozinha, celeiro, tulha. Ficava também aí a casa
de abade ou abadessa, a casa para doentes e velhos e a enfermaria. Era espaço
reservado exclusivamente às habitantes do mosteiro. Por vezes o conjunto dos
edifícios era cercado por um muro, formando uma cerca. Simples, funcional,
magistralmente concebido para o fim a que era destinado: albergar condignamente
homens ou mulheres vivendo segundo uma regra, assim era o mosteiro.
Quando em 12111 os monges foram expulsos de Lorvão e instalado lá
um pequeno grupo de monjas não haveria de proceder a grandes alterações.
Igreja, casa para abadessa, casa de capítulo, refeitório, dormitório, oficinas,
tudo isso existia e pouca adaptação terá sido necessária. A igreja que hoje
existe ocupa o mesmo local daquela que os primeiros monges ali construíram.
Crê-se que ela foi em dada altura aumentada no sentido do comprimento, mas
mesmo assim não se obteve uma igreja grande. A igreja primitiva seria portanto
de proporções modestas, de uma só nave, segundo o protótipo das igrejas da
região conimbricense. A situação era, tal como hoje é, de nascente poente, com
o altar- mor virado para o sol nascente.
No altar repousavam as relíquias de
S.Mamede e S.Pelágio, os santos da devoção dos primeiros ocupantes do mosteiro.
As suas sucessoras, não partilhavam da mesma devoção, os dois primeiros santos
protectores iriam gradualmente cair no esquecimento, e quando a infanta
D.Sancha enviou para Lorvão os ossos dos frades franciscanos martirizados em
Marrocos, seriam essas as relíquias dali em diante veneradas.
No tempo dos monges, a igreja teria provavelmente, além do
altar-mor, alguns altares laterais, onde aqueles monges que eram clérigos,
pudessem rezar, além das missas diárias obrigatórias, as inúmeras outras que
lhes eram encomendadas. É pouco provável que as monjas tenham feito
desaparecer. Era sabida a queda que elas tinham por pequenos altares dedicados
a algum santo de sua devoção, e que, quando os não podiam ter na sua igreja, os
espalhavam pelo claustro. Uma alteração importante que fatalmente se deu na igreja
foi a mudança do local do coro. Que era o espaço onde se sentava o conjunto dos
monges durante os ofícios divinos.
Nos mosteiros de homens o coro com
os seus cadeirais era junto do altar-mor, em situação de receber a luz do sol
nascente, alumiando os ofícios das primeiras horas da manhã. E quando se pensa
na modesta iluminação artificial que se conseguia pelos meios que então
existiam, e se recorda que os monges - se bem que devessem saber de cor parte
da liturgia - tinham de ler as leituras do dia, compreende-se o imperativo de
haver boa luz natural no coro.
Também as monjas tinham necessidade de boa
luz para as suas rezas. Mas a rigorosa segregação que a Regra impunha, requeria
que o seu coro fosse em lugar afastado dos oficiantes, e, consequentemente, do
altar-mor. Cremos pois que, em 1211, uma das modificações efetuadas na igreja
do mosteiro, seria o recuo do coro para a parte traseira da igreja. O que tinha
como consequência que se tapava ou, pelo menos, inutilizava, a primitiva porta
de entrada. Haveria portanto que abrir outra porta para admitir os fiéis. E
assim sucedeu. Ainda hoje, em Lorvão, se entra na igreja por uma porta lateral
praticada na sua parede norte.
Quanto ao
cadeiral - os renques de cadeiras colocadas no coro - este teria forçosamente
as características de todos os cadeirais dos mosteiros, e teria pelo menos
quarenta lugares, já que fora esse o número de religiosas, previsto pela nova
padroeira.
Os cadeirais eram uma obra de marcenaria estudada para dar algum
conforto a homens e mulheres obrigados a passar longas horas na igreja, rezando
ou cantando. Numa luta constante contra a humidade sempre prevalecente em
edifícios que, na sua grande maioria, se situavam nos fundos dos vales, os
cadeirais assentavam em geral numa ligeira elevação de pedra ou de alvenaria.
Os assentos eram distribuídos por duas alas que se faziam face, cada uma com
duas ou mais fileiras em degraus. Os assentos das últimas fileiras tinham
possivelmente costas altas e talvez um dossel de madeira como protecção
adicional contra o frio e as correntes de ar. Na divisória que separava os
assentos, as monjas podiam poisar os seus livros ou, cuidadosamente, alguma
vela. Estavam verdadeiramente ‘encaixadas’ nas suas cadeiras.
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Cadeiral construído no séc XVIII em substituição do cadeiral primitivo |
Munidos de
gonzos, os assentos das cadeiras podiam levantar-se para trás e já no século
XIII se introduzira neles uma pequena prateleira afixada por baixo do assento,
uma comodidade que viria a ser conhecida por ‘misericórdia’. Levantando os
assentos, as monjas podiam apoiar-se nesta prateleira quando rezavam de pé.
Eram uma ‘misericórdia’. Entre as duas alas dos assentos colocava-se a estante
que suportava os livros de canto. Estante grande e forte, porque os livros também
o eram, enormes até. A fraca iluminação artificial que se obtinha exigia letras
grandes e havia que ter em consideração aquelas que viam mal. Óculos só começam
a aparecer no século XV.
A necessidade de mudar o local do coro e o consequente encerramento do portal primitivo deve ter
colocado os instaladores das monjas perante outro problema. Sabe-se com efeito
que a igreja do mosteiro servia desde tempos imemoriais de igreja paroquial aos
fregueses do burgo. Tinha portanto de existir na igreja uma fonte baptismal e
um altar próprio para uso dos paroquianos. Nos mosteiros de homens, quando nas
suas igrejas havia serviço paroquial, o altar dos paroquianos situava-se em
geral junto à porta de entrada, encostava à traseira do coro. Assim sucederia
decerto em Lorvão em tempo dos monges. Quando, com a nova situação, os
fregueses passaram a entrar pela pequena porta lateral na parede norte da
igreja, seria decerto também desse lado, perto da nova entrada, que se
colocaria o altar paroquial.
Era grande incómodo, na opinião das monjas, que a sua igreja
servisse de igreja paroquial à gente de Lorvão. Incómodo que só terminaria no
século XVIII, quando a abadessa dona Serafina da Câmara mandou fazer à sua
custa igreja própria para os paroquianos de Lorvão Foi também nesse tempo que
se fez um claustro novo, por ameaçar ruína o claustro velho que ainda datava do
tempo dos monges. A expressão ‘fez-se claustro novo’ usado pela cartorária é
enganadora. Não se tratou de fazer claustro em outro local do que aquele que
desde início ocupara. Desse primitivo claustro, aquele que as monjas medievais
conheceram, conservam-se fragmentos das colunas e dos capitéis românicos no
Museu Machado de Castro de Coimbra
O claustro era o ponto de comunicação que ligava entre elas as várias dependências da casa monástica. Inspirado no
traçado do átrio das vilas romanas, o claustro consiste de um quadrado central
ajardinado, ladeado de corredores tapados, abertos para o centro por meio de
arcaria assente nos muretes dos corredores. Dos corredores do claustro abriam
portas dando acesso às dependências contíguas. No corredor sul havia portas
abrindo para a igreja, uma mais pequena, que dava entrada para o coro, outra,
maior, que abria junto do altar-mor. A nascente, uma porta mais ornamentada dava
acesso à casa do capítulo. Em todos os grandes mosteiros a porta para a sala
capitular era ornamentada com particular grandeza e assim sucedia também em
Lorvão. Como ainda hoje se pode constatar. A Casa do Capítulo tinha acesso à
Igreja, e o nome nascera do uso que os monges faziam dessa sala para ouvir um
capítulo da regra de São Bento depois do ofício de Prima. A casa foi sendo
conhecida por sala de capítulo, e estabelecida como o local onde se realizavam
reuniões importantes. Era lá que se procedia à eleições dos prelados ou
preladas. Era também ali que o ‘visitador’, tendo terminado a sua visita de inspeção,
fazia as suas observações às monjas, e onde lhes era lida a acta da visitação.
Era também na sala de capítulo que se concluíam em geral os contratos de venda
e emprazamento de maior importância, ou pelas elevadas somas da compra ou
venda, ou pela categoria dos compradores ou vendedores.
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Os mártires de Marrocos do mosteiro de Lorvão
Museu Machado de Castro
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Nos mosteiros de mulheres decerto não houve de inicio essa sala. O
que sucedeu foi ter-se estabelecido a expressão ‘fazer capítulo’ quando se
tratava de reunião para a qual todo o convento era chamado a assistir. O que
nem sempre se dava em sala destinada a esse fim. As monjas gostavam de variar o
local das suas reuniões. Os documentos falam de reuniões realizadas em este ou
aquele local, as monjas sendo chamadas para ele por toque de campainha. Assim,
no dia 20 de Dezembro de 1400, realiza-se uma troca de propriedades do mosteiro
por outras, e o contrato dessa troca - feita aliás entre o convento e a própria
abadessa - realizou-se ‘no dito mosteiro ante as portas do coro sendo hy a
honrada e religiosa dona Mecia Vasques da Cunha e o convento do dito mosteiro
em cabido por campa tangida, como é de seu costume, todas juntas e chamadas
especialmente para isto’
Em 1432 o emprazamento de um olival
é feito no mosteiro ‘dentro no balcão que está junto com a casa que chamam do
Pereiro Velho sendo ali a honrada senhora dona Mecia Vasques da Cunha, abadessa,
e convento, juntas em Cabido e Cabido fazendo’.
Era nesta casa monástica, neste ‘monasterio’, que devia viver ‘em religião’, um grupo, um
‘convento’, de pelo menos doze ‘monacas’. Idealmente, a abadessa amava as suas
monjas, e a todas da mesma maneira, e estas veneravam e amavam a sua abadessa.
As anciãs seriam carinhosamente tratadas, as orações seriam rezadas a horas e
sempre com a maior devoção, o claustro seria um oásis de silêncio, e todas as
monjas executariam entusiasticamente os mais humildes trabalhos. É assim que um
autor anónimo francês descreve no século XIII, numa pequena obra que intitulou
‘La Sainte Abbaye’ o convento ideal.
Uma miniatura do manuscrito mostra as habitantes desse santo mosteiro na igreja
e no claustro. Contra um fundo doirado, um grupo de monjas assiste à missa e
participa numa procissão. A abadessa segura o seu báculo, a sacristã toca o
sino, a celeireira tem as suas chaves à cintura. Outras monjas seguram livros
de canto ou de oração nas finas e compridas mãos. Todas as monjas são belas e
aristocráticas senhoras levando o seu hábito com suprema elegância. Era o
ideal. A realidade era um pouco diferente
As doze monacas do mosteiro ideal foram-se multiplicando, as
mulheres de eleição que optavam de livre vontade por uma vida em oração
desapareciam no aglomerado de mulheres que entravam para o mosteiro ideal por
razões que nada tinham a ver com religião e oração, adaptou-se às novas
realidades. A evolução não foi igual em todos os mosteiros. A história dos
mosteiros de mulheres na Idade Média é a história de mulheres que humanizaram à
sua maneiro habitat que não tinham
escolhido, que lhes era estranho. O mosteiro não desapareceu, o nome ficou, na
sua essência não tinha nada a ver com o mosteiro ideal de doze monácas.
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O mosteiro ideal |
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