As abadessas dos grandes mosteiros eram personagens importantes na
sociedade medieval, ‘mulheres de considerável posição social, habituadas ao
poder e gostando de o exercer’, assim define W.M. Labarge as superioras dos
mosteiros no seu livro sobre as mulheres na Idade Média. ‘Pessoa importante não
só no seu próprio convento, como no mundo exterior. Era vizinha, senhoria, e
filantropa nas vizinhanças da sua casa’, escreve a mesma autora. A autoridade
da abadessa exercia-se com efeito, não só sobre as suas religiosas, como sobre
a gente que vivia em torno e nos arredores do mosteiro. Mais longe até, em toda
a parte onde a casa monástica possuía terras e bens. Quanto maior e mais rico
fosse o mosteiro, maiores eram a posição e a influência da sua superiora. No
caso das abadessas de Lorvão, que eram senhoras donatárias de várias vilas, e
com jurisdição própria em algumas delas, que apresentavam os párocos em
numerosas igrejas, que eram donas de inúmeras terras das quais podiam dispor,
arrendando-as ou aforando-as, e de quem dependia uma infinidade de gente ligada
à administração dos bens monásticos, pois dessas senhoras facilmente se entende
que, na região conimbricense, só o bispo de Coimbra e, talvez, o Prior de Santa
Cruz, tivessem maior posição e influência que dona abadessa de Lorvão.
Naturalmente, também se esperava de uma abadessa, que ela, como
cabeça do seu mosteiro ou, em determinados casos, pela influência da sua
família, obtivesse benesses para o seu mosteiro, que protegesse à sua gente, e
que estendesse, se necessário, a sua protecção a outros, impondo-se aos bispos
e outros grandes senhores e, se necessário, ao próprio soberano. As abadessas
de Lorvão fizeram-no frequentemente. Em 1288, ao arrendar uma propriedade do
seu mosteiro aos frades de Santa Cruz, a abadessa dona Maria Joanis promete, no
contrato que firma com os frades crúzios, que, no caso de o rei vir de qualquer
forma a incomodar os frades, ela, abadessa, e seu convento, os protegeriam com
as suas cartas e privilégios e à sua custa, ‘per nostras literas, cartas, privilegius et expensas debemus vobis
defendere...’.
Dois séculos mais tarde, a influência da abadessa de Lorvão ainda
era tão reconhecida que, em 1416, um tal Afonso Peres não hesitava em dar à
abadessa dona Mécia Vasques da Cunha, para ela e seu convento, uma ‘marinha de
fazer sal’, com a condição de ela e as suas sucessoras tirarem, ou fazerem
tirar, o dito Afonso Peres da vintena do mar ‘em que se é posto por galiote, e
não o podendo tirar da dita vintena, e havendo aqui armadas algumas assim de
el-rei como doutras quaisquer, a que o dito Afonso Peres seja chamado, que a
dita Senhora e as suas sucessoras sejam teúdas a o tirar e livrar das ditas
armadas.’
A influência da abadessa seria naturalmente tanto maior quanto
ela, para além do seu cargo, fosse influente devido às suas ligações familiares,
que fosse pessoalmente conhecida das pessoas altamente colocadas.
E assim, ao tentar estabelecer a lista das primeiras abadessas de
Lorvão, parti do princípio, que havia que as procurar entre a primeira nobreza
do seu tempo. E mais, tinha a convicção, que elas seriam de preferência membros
daquelas famílias que gozassem então de maior prestígio e tivessem mais
influência na sociedade coeva. Conjugando e comparando os dados dos Livros de
Linhagem e as informações dos documentos, foi possível estabelecer, com
razoável certeza, a filiação das primeiras abadessas, e provar que todas elas
tinham de facto pertencido à primeira nobreza do reino. E que, sem excepção,
eram filhas de homens de grande nascimento, com influência pessoal na Corte, e
que, na sua maioria, eram homens de posses.
Dona Sancha, a que reputo por segunda abadessa de Lorvão, tendo
sucedido à abadessa Vierna, era uma Sousa, filha de D. Gonçalo Mendes de Sousa,
que, na primeira metade do século XIII, era chefe da linhagem dos Sousas, e foi
em Portugal um dos homens mais poderosos do seu tempo.
Dona Maria Afonso, a terceira abadessa, que, tal como a primeira,
viria do mosteiro de Gradefes em Leon, era de extracção real, neta de D. Sancho
I, pela sua mãe D. Teresa Sanches. A sua sucessora, dona Marina Gomes, era uma
Briteiros. Eleita já depois da morte da rainha D. Teresa, seria a primeira
abadessa a sê-lo sem a intervenção da padroeira do mosteiro. Era filha de Gomes
Mendes de Briteiros, e pertencia a uma família que se encontrava em franca
ascensão social, apoiada nos Sousas, a quem estava ligada por laços de amizade
e de parentesco. Dona Marina Gomes foi sucedida por uma prima sua, dona Urraca
Rodrigues, filha de Ruy Gomes de Briteiros. Às duas Briteiros, sucede de novo
uma Sousa, a muito rica dona Maria Anes, filha de D. João Garcia de Sousa,
senhor de Alegrete por sua mulher. Em fins do século XIII, depois de sessenta
anos de governo de Sousas e Briteiros, as religiosas de Lorvão elegem
finalmente uma abadessa que não pertencia a nenhuma dessas famílias. Trata-se
de dona Constança Soares, filha de D. Sueiro Anes de Paiva. Eleita em 1290, o
seu abadessado duraria até 1317. Segue-se-lhe no governo de Lorvão uma filha
dos Porto- Carrero. Governou até cerca de 1332, sucedendo-lhe de novo uma
Briteiros, Dona Teresa Mendes, filha de D. João Rodrigues de Briteiros e de D. Maria
Annes. Esta abadessa introduziria em Lorvão o ‘selo do convento’, que
representava a totalidade das religiosas. Dali em diante os documentos notariais
seriam- como veremos - legitimados com o selo da abadessa e com o selo do
convento. A abadessa seguinte dona Guiomar Fernandes de Panha, foi a primeira
das abadessas de Lorvão a usar apelido e patronímico. Rica, administrando ela
própria os seus bens, é talvez a esse facto que ela deveu a sua eleição. Não
pela ascendência familiar, que era relativamente modesta para a bitola de
Lorvão. Dona Guiomar morreu, lê-se ‘no ano da ‘peste grande’, em 1348 ou pouco
depois, aparentemente vítima dessa epidemia. Menciona-se que o mosteiro foi
então temporariamente regido por uma regedora, e, em seguida, por uma dona
Grácia, que provavelmente também foi regedora, seguindo uma abadessa, que deve
ter sido igualmente vítima da peste. Fora de novo uma Sousa. Em l395 entramos
no período dos abadessados de Cunhas e Eças. A partir desse ano e até 1468,
sucedem-se primeiro, quatro abadessas da família Cunha, todas próximas parentes
umas das outras. A primeira é dona Mécia Vasques da Cunha, filha de Vasco
Martins da Cunha. O reinado das Eças, que seguiu ao das Cunhas, contou
unicamente com duas abadessas, mas entre a primeira, dona Catarina d’Eça, e a
sua sucessora, dona Margarida d’Eça, Lorvão esteve em mãos de Eças de 1468 a
1537.
A eleição da abadessa era um ponto alto na vida do mosteiro.
Assunto do maior interesse para todo o convento, as monjas não seriam humanas
se não começassem a pensar na sucessão da sua prelada ao primeiro sintoma de
enfraquecimento ou de doença. A abadessa não teria ainda exalado o último
suspiro, e já havia decerto uma ou mais candidatas ao grande cargo, e a
campanha eleitoral estaria em pleno curo. As religiosas que tinham condições de
ser eleitas, tinham suas adeptas - seus partidos -, e não lhes faltava o
interesse de parentes e familiares. Ter uma sua parente à testa do poderoso
mosteiro de Lorvão não era pouca coisa.
A organização e preparação do acto eleitoral após a morte de uma Abadessa,
competia à Prioresa, a religiosa que ocupava o segundo lugar na hierarquia do convento.
Ela substituía de imediato a defunta prelada, e o primeiro acto da sua
administração era a notificação da morte de Dona Abadessa ao bispo da diocese e
ao abade do mosteiro do qual o seu dependia. No caso de Lorvão eram notificados
o bispo de Coimbra e o abade de Claraval. A partir do século XV, passou a ser
notificado também o abade de Alcobaça. Ao Bispo avisava-se unicamente por
cortesia. Era do abade de Claraval e, posteriormente, do de Alcobaça, que viria
a autorização para se proceder à eleição da nova abadessa.
A eleição realizava-se na Sala do Capítulo, estando presentes
todas as monjas. Iam escolher aquela entre elas que, de ali em diante, e até à
sua morte, as ia governar. Todas elas, da mais nova à mais velha, tinham
direito a voto. Depois de um cântico implorando a inspiração do Espírito Sant
procedia-se à votação. Era voto secreto, um voto por pessoa. Admitia-se a
eleição ‘por inspiração’ ou ‘por aclamação’, quando alguém propunha um nome, e
este era aceite por unanimidade e aclamado por todas. Uma cartorária do
mosteiro que, no seculo XVIII, escreveu o ‘Livro das Preladas’, não recorda
caso desses em Lorvão.
Uma vez a eleição concluída, e a abadessa eleita, eram de novo avisadas as mesmas autoridades eclesiásticas. Sem a sua aprovação, a eleição não era canonicamente válida. Tudo isto levava tempo, e sucedia, se bem que não fosse muito vulgar, que o bene-placit não fosse concedido, tendo de se proceder a nova eleição. Sucedia também, e isso, sim, era frequente, haver discórdias entre as monjas quanto à eleição, com violentas disputas
e com as diferentes facções querendo impor a sua candidata. Não há testemunho
de disputas nas eleições em Lorvão nos primeiros anos. Ou porque na realidade
não as tivesse havido, ou, o que é mais provável, por ninguém se ter dado ao
trabalho de as anotar. Uma disputa sucedida no século XVII ficou registada. A
autora do ‘Livro das Preladas’ escreve a esse respeito, que, querendo fazer
eleição, houvera tais bulhas, que o mosteiro estivera nove meses sem abadessa,
e que no fim deste tempo ‘para aquietar as oretialidades (sic) viera em Maio
dona Francisca de Vilhena, freira de Celas’.
As cistercienses fixavam prudentemente, a idade das candidatas a
abadessa, em trinta anos, e cinco de profissão. A duração da sua prelazia era
para a vida, eram abadessas ‘perpétuas’.
Uns sistemas que seria alterado com as reformas do século XVI, as abadessas
passarão a ser trienais, ou seja, eleitas por três anos.
Idealmente a escolha deveria obedecer aos sábios preceitos da
Regra de São Bento, e as eleitoras, inspiradas pelo Espírito Santo,
considerariam sobretudo a competência e as virtudes da candidata. Tudo indica
que a realidade era outra, que a eleição obedecia mais do que seria de desejar
a considerações de ordem material e a influências externas. ‘Grandes senhores
usavam da sua influência e do seu dinheiro para conseguirem o ambicionado posto
para alguém da sua família, e a
própria candidata não era avessa a untar as mãos das influentes, ou a pedir apoio no exterior’,
escreve Eileen Power no seu livro sobre os mosteiros de mulheres em Inglaterra.
Os autores coevos insurgiam-se particularmente contra as influências
exteriores, contra as abadessas de ‘sangue’, impingidas pelos seus familiares,
e contra as abadessas ‘simoniacas’, que tinham conseguido a eleição com
dinheiro ou à custa de benesses prometidos. Excepcionalmente houve casos de
abadessas de gestão, designadas para gerir o mosteiro em época de guerra ou
devido a problemas de administração, ou por imposição exterior. Em Portugal
verificar-se-ia isso sobretudo no século XVI, quando da luta travada entre
D.João III e as ordens monásticas, pretendendo o. Rei ser ele a nomear as
abadessas dos grandes mosteiros. Adiante se dirá da luta épica que nasceu dessa
pretensão com particular acutilância justamente com Lorvão. Nos séculos
anteriores não há memória de intervenção real tão violenta, se bem que tanto os
reis como os bispos tentassem periodicamente impor as suas vontades às monjas,
e influir directamente nas eleições das suas preladas. O que em geral não
conseguiam, porque as religiosas protegiam com afinco o direito de elegerem
elas a sua abadessa, e não hesitavam em se queixar ao Papa, quando esse, ou qualquer
outro dos seus privilégios, estivesse ameaçado.
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O Selo abacial
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Logo que canonicamente
confirmada, a nova abadessa tomava conta do seu cargo. Recebia o báculo, o
castão do pastor, que marcava a sua autoridade, e era-lhe entregue o selo
abacial.
No seu hábito, a abadessa não se distinguia das outras religiosas.
Aliás o hábito pouco se distinguia do traje mulher da classe média vivendo no
mundo. Um notário que, em fins do século XIII, descrevia o selo da abadessa de
Lorvão, diz, que se via no selo ‘uma figura de mulher com uma baga na mão
destra’
Em outro documento lê-se que no selo se via uma ‘mulher ou uma
abadessa’. O hábito da religiosa era nas suas peças quase igual ao da mulher
que vivia no mundo: Vestia camisa e cogula, e cobria-se com um véu. Para os
frios usava manto. A simplicidade no hábito manteve-se na maioria dos
mosteiros, mas em alguns as religiosas conseguiram furar o tabu. Exemplo é
Arouca, onde as monjas, decidiram no século XVIII, dar uma nota de elegância
mundana ao seu hábito.
A abadessa era senhora absoluta no seu mosteiro, mas isso não
impedia que, em todas as decisões graves, ela tivesse de se submeter à prévia
consulta e ao voto e da sua comunidade, do seu ‘convento’. Em questões menores
podia aconselhar-se unicamente com as mais velhas, as anciãs, e as oficiais. Em
caso de vulto a abadessa tinha – como se disse - de ouvir ao convento na
totalidade, e os contratos tinham de ser feitos com o consentimento de toda a
comunidade. O documento frisava sempre que assim sucedia, que o convento dava o
seu consentimento. Não punha o seu selo, acrescentava-se, porque na Ordem de
Cister o convento não tinha selo, “conventus
ad Lorbani sigillum non apponitur quod non est de ordinem Cisterciensem quo
sigillum habet”. A criação de um selo conventual em Lorvão no tempo da abadessa
dona Teresa Mendes iria permitir dali em diante um controle mais apertado das
medidas arbitrárias da abadessa, nenhum contrato sendo válido sem os dois
selos, o abacial e o conventual.
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Os selos abacial e o conventual |
O novo selo era uma ajuda contra as arbitrariedades da abadessa -
de todas as tentações do seu cargo, a de governar autocraticamente seria talvez
a maior - mas não as evitaria por completo. O nepotismo reinava em todos os
mosteiros femininos. Abadessa que se conservasse por alguns anos à cabeça do
mosteiro preparava automaticamente a sua sucessão entre as monjas da sua
família. Praticado em Lorvão pela maioria das abadessas e desde os primeiros
tempos, a coisa tomaria proporções escandalosas nos abadessados das Eças,
quando praticamente todos os principais cargos de Lorvão estiveram em mãos de
parentes chegadas da abadessa. Em 1512, no abadessado de dona. Catarina d’Eça,
assinam uma escritura a prioresa dona Joana d’Eça, a celeireira dona Guiomar
d’Eça, a sacristã dona Joana da Guerra - as Guerras eram primas das Eças - e
ainda dona Isabel d’Eça, enfermeira: No abadessado seguinte, o de dona
Margarida d’Eça, constata-se que, em 1521, a sua prioresa era dona Joana d’Eça,
a sub-prioresa dona Guiomar d’Eça e a sacristã continuava a ser dona Joana da
Guerra
E não era unicamente no interior do mosteiro, que se observa o
favoritismo em relação à família. A abadessa dona Marina Gomes combina em 1264
com seu sobrinho D. João Rodrigues de Briteiros, que este receba de Lorvão uns
casais que eram de sua irmã dona Teresa Rodrigues, monja em Lorvão, dando ele
ao mosteiro uns casais na Estremadura, que eram de outra sua irmã, monja em
Arouca. Esse quinhão, declara o contraente, fora-lhe concedido pela abadessa
desse mosteiro. A mesma abadessa fez outras transacções do
mesmo tipo com outros membros da sua família.
Caso parecido deu-se em 1400, numa troca de terras efectuada por
dona Mécia Vasques da Cunha. Nesse ano, a 21 de Dezembro, reuniram-se no
mosteiro de Lorvão, às portas da sala do cabido ‘a honrada e religiosa dona
Mecia Vasques da Cunha’ e o convento do seu mosteiro. As religiosas tinham sido
convocadas - como era costume - pelo toque da campainha ‘por campa tangida’, e,
‘todas juntas chamadas especialmente para isto’, que era, o de ouvir a proposta
da abadessa no sentido de se cederem certos bens do mosteiro a seu pai, Vasco
Martins da Cunha e ao Prior de Grijó, recebendo o mosteiro outros bens em
troca. O que seria, garantia a abadessa, a favor, ‘por prol’, do dito seu mosteiro. As monjas disseram que sim, que
‘lhes prazia de tomarem os ditos casais, que lhes assim dona abadessa dava
pelos outros que lhes tomou’, e todas juntamente ‘louvaram e outorgaram o dito
escambo’. Parece pouco provável que Vasco Martins da Cunha e o Prior de
Grijó se dessem ao trabalho de fazer esta troca por puro altruísmo. O facto é
que a abadessa ter disposto de bens que eram do mosteiro a favor de homens da
sua família.
Se as abadessas não se distinguiam das suas monjas no trajar,
distinguiam-se, e muito, em tudo o resto. Pela autoridade que exerciam, e pelas
suas regalias. A abadessa tinha casa própria dentro do complexo monástico,
fugindo assim à vida em comum, que com o tempo se tornava odiosa à maioria das
religiosas. As abadessas tinham maior liberdade em receber visitas, maior
liberdade nas saídas.
As cistercienses não tinham estrita clausura, mas esperava-se das
monjas que só se ausentassem do mosteiro em casos de grande necessidade ou de
óbvia utilidade, de serviço a que o seu cargo as obrigasse. A abadessa, essa,
tinha pelo seu cargo, ou por aquilo que ela considerava de seu cargo, frequentes
ocasiões de absoluta necessidade que a obrigavam a se ausentar do mosteiro.
Dona Vierna, a primeira abadessa de Lorvão, esteve presente em Montemor no ano
de 1221, quando aí se reuniu a corte. A abadessa firmou nessa ocasião com a
infanta D. Sancha um contrato, que garantia ao mosteiro de Lorvão a futura
posse da vila da Esgueira. Foi uma saída que se justificava plenamente Havia
uma visita obrigatória anual a Coimbra, à igreja de São Bartolomeu. Era uma
obrigação herdada dos monges seus antecessores, e que Lorvão tinha de manter se
não queria perder prestígio e a regalia de uma pele e uma ‘colheita de pão,
vinho e peixe’, que o cabido de S. Bartolomeu era obrigado a fornecer por
ocasião daquela visita. As primeiras abadessas tinham deixado cair este
direito, até que a abadessa dona Constança Soares o repôs, juntamente com
outros direitos resultantes do desleixo de algumas das suas antecessoras. Outra
saída bem documentada e de óbvia utilidade para o mosteirot é a da abadessa
dona Teresa Mendes, quando, a 4 de Setembro de l341, acompanhada de tabelião,
vai ao local da Pedra do Vento, junto de Coimbra, tratar de um cidral que o
mosteiro aí tinha, do qual o rendeiro há quatro anos não só não pagava a renda,
como instalara nele um sublocatário. A abadessa tratou directa e pessoalmente
do assunto. ‘A honrada religiosa e honesta dona Tareja, pela mercê de Deus
abadessa do mosteiro de Lorvão,’ postou-se diante da porta da casa do cidral e
‘fez pergunta a Joam Peres, dito Cidreiro,’ a quem pertenciam o cidral, a casa,
a vinha, e o olival que ali estavam. ‘E logo o dito Joam Peres respondeu, que
era da dita abadessa e do seu convento do dito mosteiro de Lorvão. E logo
outrossim fez pergunta a dita abadessa ao dito Joam Peres, quem no metera no
dito logo e de cuja mão o tinha, e o dito Joam Peres respondeu logo, e disse,
que o metera ali André Domingues de Requeixo por renda certa que lhe ele havia
de dar.’ A isso retorquiu a abadessa, que ela não estava ali para fazer ‘força
nem esbulho’ a ninguém, mas que o dito André Domingues não podia arrendar o que
não era seu, que aquele lugar era dela e do seu mosteiro, que elas não
renunciavam aos seus direitos pelo que, declarou, ‘filhamos esta casa com este
cidral e vinha e olival e suas pertenças, e entramos em posse dele em nome do
nosso mosteiro’ . Lido isto pelo tabelião que estava presente, a abadessa
dirigiu-se ao dito Joam Peres e disse-lhe que visto aquele lugar ser seu e do
seu mosteiro, que ‘ele se fosse dele a boa ventura e que saísse ende’. João
Peres obedeceu, saiu da casa, e deu ordem aos vindimeiros que lá estavam que
também saíssem, o que eles fizeram. E ‘logo, relata o instrumento, os homens da
dita abadessa, que ali estavam, filharam terra, e ramos de vides e de cidral, e
do olival, e telha da dita casa e meteram na mão da abadessa, e ela disse que
por todas aquelas coisas ela filhava posse daquele lugar como de seu, como quer
que posse sua posse...’
No período em que Lorvão teve jurisdição criminal em algumas das
suas terras, as abadessas faziam-se em geral representar por um ouvidor seu.
Caso excepcional foi abadessa regedora dona Mècia. Essa senhora não perdia
ocasião de estar presente em casos de pleito. Em 1351 - Lorvão ainda tinha
jurisdição em Abiul, direito que posteriormente lhe seria retirado - houve
nessa terra o julgamento de um tal João Monteiro por uso criminoso dum cutelo
comprido. Apesar do julgamento ser presidido pelo ouvidor do mosteiro, lá estava
também dona Mécia, hospedada ‘na casa sobrada que foi de Joham de Runinaço’,
Outra vez temos a abadessa dona Beatriz da Cunha indo a Coimbra
para se assegurar de certos bens que um tal Gonçalo Nunes Torrado tinha em
contrato com o mosteiro, e que lhe queria deixar por sua morte. A abadessa não
podia deixar fugir tal maná, e deslocou-se a Coimbra, acompanhada da prioresa,
da sub-prioresa, da celeireira e da sacristã e ainda de outras religiosas do
mosteiro. E não faltou evidentemente o notário para ali mesmo tomar devida nota
das palavras do moribundo, autentificando a doação daquilo que depois de sua
morte ficaria ao mosteiro. Toda aquela gente entrou na casa onde se encontrava
o infeliz Gonçalo Nunes: “jazendo ali o dito Gonçalo Nunes doente em uma cama
de dô de enfermidade”.
A abadessa dona Catarina d’Eça saiu frequentemente do seu
mosteiro, sobretudo nos primeiros tempos de seu abadessado. Agindo como
qualquer proprietário rural, ela vai em 1471 à Esgueira, vila que era do
mosteiro, e aí, em casa de João de Ruão, faz um emprazamento a João Pires Delgado. No ano seguinte, ela
está no ribeiro da Barroqueira, termos de Penacova, e faz aí o emprazamento de
uma vinha que o mosteiro tinha em Sabugosa. Nos últimos anos da sua vida, as
saídas são mais raras, e os contratos em geral firmados em Lorvão em seu
quarto, em sua ‘câmara’. Mas em 1503 há assunto de grande importância a tratar,
e temos notícia de dona Catarina ter saído do mosteiro. Vai à vila de Esgueira
para conseguir a composição entre o seu mosteiro e os habitantes dessa vila.
Nos últimos anos vivera-se uma verdadeira revolta dos foreiros de Lorvão, a gente
de Esgueira revoltando-se contra exigências dos administradores do mosteiro, e
não era a primeira vez. Como donatárias de Esgueira as monjas de Lorvão tinham
ali direitos que revoltavam os habitantes. Em 1428 houvera uma magna questão
por os pescadores da Esgueira retirarem o peixe das redes antes de terem
chamado o procurador do mosteiro, o que, segundo a abadessa de Lorvão, não
podiam fazer. Ela tinha o direito de escolher o peixe que lhe cabia antes de
ser retirado dos barcos. A coisa não ficou por ali, foi-se arrastando com
periódicos focos de revolta contra essa obrigação. Em 1503, ambas as partes
procuravam o apaziguamento da situação. O povo foia chamado ‘por pregão para
esta causa de boa concórdia e amigável composição’, muita gente compareceu, e,
por parte de Lorvão, estava lá a sua abadessa. ‘No ano do nascimento de N.S.
Jesus Cristo de 1503, aos 23 do mês de Novembro em a vila da Esgueira, terra e
jurisdição cível do mosteiro de Lorvão, no outeiro junto da ermida de S. Sebastião,
estando ahi a muito vertuosa senhora, a senhora dona Catherina d’Eça de viva
memória abadessa do mosteiro de Lorvão.’ O assunto
foi debatido, ambas as partes fizeram concessões, e chegou-se a um acordo
provisório. Que talvez não se tivesse conseguido sem a presença da abadessa do
mosteiro.
Em tempos de guerra ou de revoltas no país, também vemos as
abadessas saindo dos seus mosteiros. Isolados, em geral afastados de povoações,
os mosteiros eram particularmente vulneráveis aos saques da soldadesca, e
nessas ocasiões era costume as religiosas refugiarem-se na cidade mais próxima.
Há um emprazamento feito em 1385 em Coimbra, estando regedora e monjas alojadas
nas casas de Dom Ruy Lourenço, ‘Daiam (sic) da dita cidade, em que pousamos de
presente, ‘por necessidade da guerra.’
Saidas desnecessárias, idas à corte, peregrinações a santuários,
passeios, de que abadessas de mosteiros ingleses e alemães eram acusadas, não
houve em Lorvão, ou não foram tão escandalosas que dessem brado.
A mais frequente critica que na Europa medieval se fazia `às
abadessas era a de serem más administradoras dos seus mosteiros. Despesas
excessivas, contas que se deviam prestar à comunidade e não se prestavam,
arrendamentos imprudentes, vendas de direitos centenários do mosteiro contra
moeda sonante, de tudo isso houve em Lorvão.
Contra uma abadessa despesista e má administradora pouco havia a
fazer, a não ser dar-lhe depois de morta uma sucessora competente. Como sucedeu
em 1288, quando, com o mosteiro em estado de pobreza, ‘paupertate’, as monjas puseram fim fim ao longo governo de
compadrio Sousas e Brieiros, e elegeram na abadessa dona Constança Soares, uma
grande administradora. Sucedem-se com ela os
emprazamentos de parcelas de terras destinadas a olivais, com rigorosas
indicações do plantio, com boas e saudáveis plantas e, ‘escavados e cavados e
estercados como os bons olivais de Coimbra e ao tempo em que o deve de ser’.
Dona Constança procurou também reaver terras perdidas e outros bens alienados,
conseguindo até que o bispo de Coimbra, que em geral não era pródigo em
cedências, concordasse em que as igrejas de Abiul e do Botão se unissem de novo
a Lorvão, coisa até ali muito disputada entre os prévios bispos e as abadessas.
No instrumento feito por essa ocasião, o Bispo declarava que, atendendo à
pobreza e à carência de que sofria o mosteiro, ‘paupertate et megnam inopitam Conventus Santimonialem Monasterii de
Lorbano’, e também em consideração da sua abadessa ‘ab honorem Religiosae Donae Constantiae Sueri’, ele, Bispo Américo,
consentia de novo na união das duas igrejas ao mosteiro de Lorvão. A recuperação
de direitos abandonados ou perdidos era um dos grandes problemas que as
abadessas, que sucediam a uma má administradora, tinham de enfrentar. Nada
parecia mais fácil a uma abadessa que precisava urgentemente de dinheiro do que
vender uma terra ou um direito.
Dona abadessa - era assim que a partir do século XIV mais
comummente se nomeava a superiora do Lorvão – assinava sempre com a sua
comunidade ‘Nós Maria Joanis Abbatissa et
convento monasterio de Lorbano.’ lê-se em documento de 3 de Maio de 1288.
Em 1300, a abadessa Dona Constança Soares dirigia-se ao povo usando o título de
Don, e prescindio de quando escrevia ao bispo de Coimbra “Constancia Suery eidem gratia Abatisse de Lorvão et conventus eiusdem”
Também a abadessa Urraca Reimundo rescinde do Dom quando se dirige a um bispo. ‘Nós Orraca Reymundo e o convento do
mosteiro de Lorvão vos enviamos comendar em vossa graça...’ lê-se em
documento datado de Julho de 1328 dirigido ao bispo de Viseu. As abadessas
Cunha e Eça, senhoras que não transigiam sobre os seus pergaminhos, usam sempre
o Dom, quer se dirijam a bispos quer a leigos. Uma delas, Dona Maria de Cunha,
faz mesmo questão de mencionar o seu nascimento, assinando em 1 de Agosto de
1435 um contrato como dona Maria da Cunha, ‘de
nobil genere’. ‘Com as Eças não havia
que vincar nascimento. Os Eças eram de sangue real, passaram a ser ‘magníficas’:
‘Na câmara da muito magnífica e virtuosa senhora’, lê-se em documento de dona
Catharina d’Eça. A sua sucessora foi a ‘muito magnifica senhora, a senhora Dona
Margarida d’Essa’
Das abadessas esperava-se qualidades de
administradora, e autoridade sobre o seu convento, em privilegiar umas, ou uma,
das suas religiosas, e evidentemente um irrepreensível comportamento. Os
escritores do século XIX deliciavam-se quando encontravam escândalo amorosos
nos mosteiros, e assim nasceu a acusação que a grande dona Catarina d’Eça
tivera oito filhos. Coisa absolutamente impossível quando se sabe da periódica,
rigorosa visitação de que os mosteiros da Ordem de Custer eram alvo. Porém, como
este tipo de boatos notícias têm por vezes uma base de verdade, sugiro que essa
mãe de oito filhos, se na verdade existiu, fosse irmã gémea da abadessa dona
Catarina. O facto de se dar o mesmo nome a gémeos tem conduzido a mais do que
um erro genealógico.
Vintena do mar, ou da marinha, designava, segundo Viterbo,
designava o arrolamento de jovens para servirem a bordo dos navios das armadas.
Dos homens de uma vila ou aldeia postos em ala, era tomado de cada vinte, um.
Eram os ‘vintaneiros’ do mar, da marinha ou das galés. Ver-se livre da vintena
valia bem uma marinha de fazer sal.
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