No ano de 1538 as
monjas de Lorvão elegeram por sua abadessa a D.Filipa d’Eça, prima da falecida
D. Margarida d’Eça. D. João III tentara impedir essa eleição, e, como não o
conseguisse, agiria pela força, e acabou por levar o caso contra a abadessa
eleita a Roma. Os enviados do Rei procuraram convencer a Rota papal, que a
razão pela qual D. João III agia contra a eleição de D. Filipa d’Eça obedecia
ao seu bem conhecido e provado empenho na reforma dos mosteiros do Reino. Dando
a entender, que Lorvão carecia de reforma, e que D. Filipa d’Eça não era mulher
indicada para estar à cabeça de um mosteiro necessitado de reforma.
Ora o
facto era, que não havia em Lorvão falta de moralidade e de religiosidade. Na
insuspeita opinião do Abade de Claraval, Lorvão era, em 1533, um dos poucos
mosteiros portugueses que não carecia de reforma. O Abade criticara na sua
visita o excessivo nepotismo da então abadessa - os principais lugares eram
ocupados por parentes suas - e a exagerada hospitalidade que o mosteiro
concedia, mas não encontrara outros motivos de crítica em matéria de religião e
moral. O visitador de Orem que visitara o mosteiro três anos depois, foi da
mesma opinião. Não havia portanto necessidade de reforma Como então explicar o
procedimento de D. João? Os Eças eram aparentados à casa real, pela sua
descendência de D. Pedro e D. Inêz de Castro, Senhoras da família ocupavam cargos
principais em alguns mosteiros do Reino, e em nenhum o seu domínio era tão preponderante
como no de Lorvão, havendo quase cem anos, que abadessas daquela grande
linhagem, governavam, para não dizer, reinavam, em Lorvão. É evidente que o Rei
tinha uma particular animosidade contra aquelas longínquas parentas, que aquele
feudo de Eças em Lorvão irritava D. João III, mas a leitura dos documentos
mostra, que o antagonismo era também de ordem religiosa. As Eças eram mulheres
que não comungavam das fanáticas ideias de rigor religioso que D. João
advogava. A religiosidade que os visitadores de Cister tinham gabado em Lorvão
não convencia D. João. Ao pretender impor a Lorvão uma abadessa da sua escolha,
fá-lo muito claramente também para que ali se praticasse a religião como ele a
entendia. Uma razão de ordem material também existia. D. Catarina de Eça, a
primeira abadessa desse nome mandara fazer um grande número de objectos
religiosos de grande qualidade e valor, e já o rei D. Manuel se interessara por
esse tesouro, mandando avaliá-lo. O mesmo, como se verá, fará seu filho.
Em 1538 o rei era informado, que a abadessa
dona Margarida d’Eça estava gravemente doente. Age imediatamente Escreve para
Coimbra, ao bacharel Domingos Garcia dando-lhe rigorosas instruções em previsão
da previsível morte da abadessa. Que o bacharel estivesse atento às notícias
vindas de Lorvão, e que, logo que dona abadessa morresse, fosse ao mosteiro, e
tomasse conta deste. Devia impedir, e por todos os meios, que as monjas
elegessem nova abadessa. Ele, Rei, escrevia nesse sentido à Prioresa – em cujas
mãos estaria o mosteiro após a morte da abadessa - em carta que juntamente
enviava ao bacharel. Que este entregaria à dita senhora logo após a morte de
dona Margarida. Eis a carta a Domingos Garcia, da qual se conserva o
rascunho:
‘Bacharel Domingos Garcia, eu, el Rey vos envio muito saudar. Nós
houvemos agora grã recado como está abadessa de Lorvão em mui má disposição, e
em perigo de sua vida. Pelo qual havemos por Nosso serviço vos avisar que
tenhais grande avisamento de saber como ela está, e, em tal caso que, dispondo
Nosso Senhor dela, possais logo, na mesma hora, ser disso notificado. E, como o
fordes, logo, com grande diligência, vos hy ao dito mosteiro, e tomai por nossa
parte a posse da abadia dele, e de todas as rendas do dito mosteiro’. E isso,
escrevia o rei ainda, tanto no lugar de Lorvão, como em todos os outros lugares
da comarca de Coimbra onde o dito mosteiro tivesse rendas. O bacharel faria o
inventário de todos esses bens, assim como de toda a prata, e de todos os
ornamentos existentes. E de tudo que houvesse no celeiro, e de tudo que
existisse da abadessa dona Catarina d’Eça. Tratava-se de objetos dos quais o
bacharel já em tempos fizera inventário por mandado de el-rei D. Manuel: ‘de
que vós fizeste inventario pelo mandado d’el-Rey, nosso senhor e padre, que
santa gloria haja’. Depois de ter feito o dito inventário de pratas e
ornamentos de culto, o bacharel poria tudo - excetuando aquilo que fosse
preciso para os ofícios religiosos - em mão de pessoa segura. A qual de nada
disporia sem especial mandado. Do que houvesse na casa em pão e vinho e outros
mantimentos, o bacharel forneceria à vigária e outras oficiais da casa o que
fosse necessário para a manutência (sic) das monjas e servidores da casa.
Enviaria ao rei cópia de todos os inventários. Poderia suceder, ‘que as freiras
do mosteiro se queiram intrometer de eleger abadessa’. O bacharel entregaria à
Prioresa a carta que juntamente recebia, pela qual ele, Rei, proibia essa eleição:
‘pela qual lhes defendemos, que não se intrometam de fazer eleição da
abadessa’. Ele próprio trataria disso: ‘nós queremos intender acerca de quem
seja provida a dita abadia, e que nela sirva a Nosso Senhor assim como seja
mais servido, e que as coisas da religião melhor façam’. Era, como
atrás já se disse, à prioresa - ou vigária, como também se designava – que
cabia o governo depois da morte da abadessa. E ela que era responsável pela
eleição de uma nova prelada. D. João escreve-lhe a seguinte carta:
“Vigaria, sub-prioresa, freiras e convento do mosteiro de Lorvão,
nós el-Rei vos enviamos muito saudar. Nós houvemos agora recado como a abadessa
desse mosteiro estava muito doente, e de tal modo que sua vida está muito
perigosa’. A notícia entristecera-o, ‘pela bondade e virtudes’ dessa senhora.
Dispondo Deus chamá-la a si, ele, Rei, trataria de a
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D. João III |
substituir, de forma, a
que, a dita abadia ‘seja provida de pessoa que a Nosso Senhor inteiramente
sirva, e com quem nossa Religião receba muito louvor e todas vós outras sejais
consoladas’. Por tudo isso, proibia-lhes que fizessem eleição de nova abadessa:
‘vos encomendamos muito, e mandamos, que, por seu falecimento, vós não vos
entremetais de fazer eleição de abadessa, e estejais regidas e governadas pelas
oficiais da casa, assim como sempre se costumou fazer, até ser eleita
abadessa’. Da qual, lê-se em seguida, ele, Rei, esperava em Nosso Senhor, seria
tal ‘de que se sigam os bens que desejamos’. O bacharel Domingos Garcia, Juiz
de Fora de Coimbra, dir-lhes-ia o mais que ele ordenava.
As coisas não correram exatamente como o rei
previra e ordenara. O decorrer dos acontecimentos indica, que no mosteiro as
monjas não foram apanhadas de surpresa e que se tinham preparado para uma eventual
intervenção real. Houvera uma primeira alerta nesse sentido, quando, numa
medida sem precedentes, el-rei D. Manuel mandara inventariar os bens de D. Catarina
d’Eça depois da sua morte. Houvera provavelmente outras medidas, e talvez
rumores que lhes chegavam de fora as tenham alertado. Contactos não faltavam a
mulheres tão altamente aparentadas. É também muito provável, que o bacharel
escolhido pelo rei não se tenha empenhado a fundo na execução das ordens de Sua
Alteza. A corte estava longe, as ligações da gente de Coimbra a Lorvão eram
muito fortes. O facto é, que nunca mais se fala em Domingos Garcia. E que o seu
sucessor, um tal Sebastião Lopes, também seria substituído.
Tudo indica que as monjas de facto não se
deixaram surpreender. Para não terem de obedecer a alguma ordem desagradável da
parte do rei, elas fecharam as portas do mosteiro logo após a morte de D. Margarida,
evitando assim a recepção de cartas ou outras missivas. Não as lendo, ou
ouvindo, não eram obrigadas a seguir o que porventura nelas lhes fosse
ordenado. Em seguida procederam à eleição de nova abadessa. A 11 de Fevereiro
de 1538, dona Filipa d’Eça, era eleita abadessa do mosteiro de Santa Maria de
Lorvão. Havia de novo uma Eça à cabeça do mosteiro.
Dona Filipa, que não era monja de Lorvão,
encontrava-se de visita no mosteiro. talvez lá estivesse para acompanhar a abadessa
sua prima, nos seus últimos momentos. O mais provável, é que ela ali se
encontrava deliberadamente, em previsão do que poderia suceder. E mesmo muito provável,
que a eleição de dona Filipa obedecesse a um bem pensado plano da abadessa dona
Margarida. Há documentos que - indiretamente, é verdade – apontam nesse
sentido. Datado de 15 dias do mês de Abril de 1534,- quatro anos antes da sua
morte - ‘por mandado da senhora dona Margarida d’Eça, em a pousada da dita senhora,
em presença de ela dita senhora e de seu convento’, a abadessa requerera a frei
Thomas, monge da ordem de Cister, e notário apostólico, que lhes fizesse um
treslado de certa Bula papal, e que esse treslado fizesse fé como se fosse o próprio
original. Tratava-se da Bula pela qual o papa Honório III tomara o mosteiro, as
suas monjas, e os seus bens sobre a sua protecção. Não se vê para que outro fim
se desejaria naquela ocasião o treslado daquela antiquíssima Bula, a não ser
para que a dita Bula pudesse ser usada em defesa de antigos direitos,
apresentando-a em Roma.
A eleição de uma abadessa que não era monja do próprio
mosteiro, como era o caso de Dona Filipa, tinha uma vantagem. Era previsível
que o rei demitiria uma abadessa eleita contra a sua vontade. Se a escolha
recaísse em uma monja do mosteiro, ela seria igualmente demitida, mas não necessariamente
expulsa. O contrário dava-se com uma nova abadessa que não fosse do mosteiro.
Essa, sim, seria decerto expulsa. E, de fora do mosteiro, Filipa d’Eça, - de
Bula papal na mão – saberia agir junto das entidades religiosas e civis. E Frei
Tomás, o notário apostólico, que D. Catarina d’Eça conseguira para Lorvão, era
monge de Cister, e não deixaria de recordar às monjas, de Lorvão que elas eram
filhas de Claraval, e que só deviam obediência a Roma A ter sido pensado e
preconcebido, e o que se segui-o aponta nesse sentido, o plano foi brilhante.
Nota: este
capítulo tem quatro partes. Na próxima semana será publicada a 2ª parte: A
Expulsão
T.T.
Cartas Missivas Mº1 Nr. 38
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