Aquela empresa podia ser dada por concluída, mas no mosteiro
reinava um clima de revolta. A abadessa imposta pelo rei não conseguira
conquistar a obediência das monjas, acabando por se retirar de novo para
Arouca. -lhe uma sua sobrinha, dona Ana Coutinho, também monja de Arouca.
Era de novo uma escolha de D. João III ou do Cardeal-Infante, que,
ambos eram regularmente informados do que se passava em Lorvão Em Dezembro de
1542 há de novo revolta contra a abadessa. Uma das mais insubordinadas era uma
monja chamada Leonor Telles. A abadessa queria despachá-la para outro mosteiro,
D. Leonor resistia, declarava que não saía de Lorvão.
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Mosteiro de Arouca |
Avisado, o rei tomou o caso a sério. Escreveu para Coimbra ao Juiz
de fora Bartolomeu Fernandes. Que este, caso a dita dona Leonor se negasse a
sair do dito mosteiro a bem, e a abadessa o requeresse, fosse a Lorvão e
tratasse pessoalmente da ‘modança da dita dona Leanor’. O juiz devia agir com
muita diligência e com toda temperança, de maneira que a coisa se fizesse ‘com
menos escândalo e alvoroço’ possível.
O juiz obedeceu, foi a
Lorvão, é recebido por dona Ana Coutinho, e combina com esta a forma e o dia da
transferência da insubmissa dona Leonor. A coisa resolveu-se aparentemente a
bem, quando juiz, no dia combinado, se apresentou no mosteiro para tratar da transferência,
foi-lhe dito que dona Leonor, perante a ameaça de ser levada dali à força, se
não saísse às boas, se decidira a partir, e já se fora. Juiz e Abadessa
congratulavam-se com o feliz desfecho do incidente, quando, estando o juiz ainda
falando com dona Ana no parlatório, apareceu uma religiosa, dizendo ao Juiz,
que as freiras ‘das partes de dona Filipa d’Eça’ lhe queriam falar. E logo ali
viera ‘uma soma de mulheres freiras’, escreve o tabelião que acompanhara o
Juiz. Eram umas vinte ou trinta, segundo ele, as quais, todas juntas, ‘se
vieram onde a dita dona Ana Coutinho abadessa estava, e todas juntamente
alevantaram grande grita (sic), e fizeram grande alvoroço, todas contra a dita
abadessa. Gritavam, batiam as palmas, e diziam que lhe levantavam a obediência,
e não haviam de ir ao coro, nem obedecer a seus mandados. O juiz dizia-lhes que
se calassem, falando muito alto, porque estavam na casa da grade, e separados
por duas grades. Uma de ferro, outra de pau’, especifica o notário. O Juiz
dizia às religiosas, da parte de el-rei, que se calassem, e que não fizessem
mal á abadessa, sua prelada. Dona Leonor Telles já saíra dali por mandado de
Sua Alteza.’ ‘Elas não se calavam.
Continuavam a falar ‘muitas indignidades, e rijo, contra a abadessa’. A ele,
tabelião, e aos outros oficiais que ali presentes, queria parecer, que as monjas
se teriam ‘enviado’ a abadessa e a teriam maltratado, se não fosse o juiz as
ameaçar com ‘grandes vozes’ que procederia contra elas, caso não se calassem e
se recolhessem. O que finalmente tinham feito. Recolhendo-se ‘indignadas e com
muita fúria’.
Fora
do mosteiro, as coisas não tinham estado paradas. Tanto dona Filipa d’Eça - a
‘Eleita’ - como dona Ana Coutinho - a ‘Intrusa’ - tinham apresentado os seus
casos em Roma. E quem diz Dona Ana Coutinho, diz D. João
III. Não é fácil entender, quem dos dois contendores, D. João III ou D. Filipa,
agiu primeiro. Se o rei levara a causa a Roma para justificar a sua acção,
expulsando do mosteiro uma abadessa canonicamente eleita, ou se agira em Roma
por saber que D. Filipa levara lá o seu caso, e estava a ser muito bem até As
forças não eram iguais. O rei tinha em Roma o seu embaixador, e aquilo que
então se chamava um ‘enviado’, o homem conhecedor das minúcias da corte papal,
e activo nos negócios diplomáticos. Dois conceituados cardeais, Farnese e Santa
Frol, trabalhavam por Portugal, ou melhor, eram gratificados para trabalhar por
Portugal. De parte de dona Filipa, refugiada no mosteiro de Celas em Coimbra,
pouco era se esperar. Não se apresentavam, e menos, se defendiam causas em Roma
sem meios financeiros, e sem apoios superiores. Ora, mesmo eu dispusesse deles,
D. Filipa não podia agir sem ser aconselhada por quem estivesse dentro dos tramites
daquelas questões. Consta que D. Filipa teve esse conselheiro na pessoa do
abade do pequeno mosteiro de frades cistercienses em São Paulo de Salavisa,
pero de Coimbra.
Fosse como fosse, o facto é que, em Dezembro de 1543, cinco anos
após ser eleita abadessa de Lorvão e de lá ter sido expulsa a eleição de D. Filipa
d’Eça era superiormente reconhecida, e confirmada por sentença papal.
D. João é notificado, e escreve de imediato a D. Filipa. A missiva
do Rei é datada de Almeirim, ‘primeiro dia do mês de Dezembro de 1543, e diz:.
‘Eu são informado que vós tendes havido da Rota executarias
com vossas três sentenças sobre a posse e finitos da abadia de Lorvão, pelo que
vos encomendamos muito que, vindo-vos as ditas executórias, não useis delas sem
me primeiro as enviardes mostrar para eu as ver e prover nisso como for
justiça.’ E não queria que ela continuasse a viver em Celas, comunicando com
Lorvão ‘dando vexação’ às monjas do mosteiro. Esperava que ela tivesse esse seu
desejo em conta, e se afastasse dali para mais de 15 léguas. Ele receberia disso
prazer e serviço e o agradeceria muito.
Dona Filipa respondeu, que recebera entretanto
as sentenças dadas na Rota papal a seu favor. Era de crer, escrevia ela, que em
Roma não julgariam a seu favor, sendo ela tão desfavorecido no reino como era,
se a razão não estivesse de seu lado, ‘se me não sobejava na justiça pano para
mangas’. Agora, que recebera as sentenças, podia falar sem receio, declarava,
que não tencionava ceder no que era seu direito reconhecido pelas sentenças
papais. Assinava: “De Vossa Alteza, abadessa de Lorvão dona filipa D’Eça ”A notícia da sentença favorável a dona Filipa
soubera-se naturalmente em Lorvão, e as suas adeptas rejubilaram. Esperavam ver
a sentença cumprida, e a abadessa por elas eleita, de novo no seu cargo. Como
nada sucedesse, escreveram ao rei. A carta é de 3 de Fevereiro de 1544.
Estranhavam, dizem aquelas religiosas, que, tendo elas escrito tantas vezes e
com tanta verdade, a Sua Alteza, nunca tivessem tido resposta, e que Sua Alteza
as deixasse à mercê das maldades de dona Ana. As anciãs, e a maior parte do
convento e religiosas do convento, que tinham elegido a Filipa d’Eça por
abadessa do seu mosteiro, informavam Sua Alteza, que viera um breve do Santo
Padre, ordenando o secreto das rendas do dito mosteiro, para que dona Ana
Coutinho não lhes pudesse tocar. E que o Juiz encarregado do dito sequestro,
lhes dissera dele o necessário. Isso não sucedera. Não era a primeira vez que
escreviam a Sua Alteza, contando como eram vexadas e desonradas. Agora pediam
que el-rei, por pessoa insuspeita, mandasse tirar inquirição daquilo que dona
Ana Coutinho lhes fazia. ‘Não era mulher para pessoa sofrer’. Se elas se
queixavam, era porque as coisas eram mais do que se podia dizer. Elas eram
mulheres fracas e enfermas, e não sabiam por quanto tempo poderiam resistir aos
males e injustiças de que eram alvo. Havia doze ou treze monjas no cárcere ‘Deus
haja misericórdia de nossas almas’.
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Cárcere Monástico |
Pediam de novo a Sua Alteza, que
interviesse, para que não houvesse naquela casa ‘tantas exorbitâncias (sic),
pois é Rei Cristianíssimo de que esperamos Justiça’. Esperavam que Sua Alteza não
fizesse com aquela carta o que fizera com as outras, que elas lhe tinham
escrito. Que lhes desse ouvidos, e não acreditasse falsas informações delas.
"Oiça-nos, pois lhe pedimos justiça e mercê e por verdade nos assinamos aqui
todas”. Seguem-se
as assinaturas de quarenta e quatro religiosas.
D. João continuou a ignorar pedidos, ou não
recebeu as cartas que lhe eram dirigidas. As cartas escritas do mosteiro eram decerto
na sua maioria apreendidas. Pois apesar da vigilância que decerto existia, uma
carta dirigida pela mesma ocasião a dona Filipa lhe chegou às suas mãos, e foi
por ela enviada a D. João. A carta, dirigida ‘À muito ilustre e magnífica
Senhora, a senhora Dona Filipa d’Eça, abadessa de Lorvão minha senhora’ , é
assinada por dona Violante de Castro.
Dona Violante agradece a carta de dona Filipa, que lhe chegara às mãos. Fora
consolação ver letra de Sua Senhoria em tempo em que tinham tanta necessidade
dela, quando andavam todas ‘tão atribuladas e cheias de paixão’ com as coisas
que dona Ana Coutinho lhes fazia. Não se poderia sofrer aquilo por muito tempo,
‘porque de duas há-de ser uma: ou morrermos todas juntas, ou fazermos mil
desatinos como este que agora fez dona Ursula de Sotto Maior, filha de dom Nuno
e dona Isabel sua mulher, que se vira tão desesperada com má vida e muita
perseguição suas, e vitupérios e desprezos que lhe fez.’ Muitas vezes lhe ouviram
dizer, que, ou se havia de matar, ou fugir. Na última Quinta-feira de
Fevereiro, deram por falta dela. Não lhes parecia que pudesse ter fugido, por
ela ser muito nova, e não conhecer ali ninguém. Além de que era muito virtuosa.
Viriam a saber, que a desesperação dela fora tão grande, que lhe fez parecer
que poderia fugir, e ir ter a casa de sua mãe. Procurara fugir por um telhado,
mas, estando nele, enfraquecera de tal maneira, que descera de novo, e se fora esconder
no sótão da casa de lavor. E ali ficara quatro dias e quatro noites, sem comer
e sem beber, ‘com desejo e determinação de se deixar morrer assim desesperada
antes que se tornar ao poder desta mulher’. Ao quinto dia do seu
desaparecimento foi sentida de uma religiosa, que a fez sair do buraco onde
estava. Parecendo já mais coisa do outro mundo do que daquele, escreve dona
Violante. “Nós, quando a vimos, não se podemos dizer o prazer que tivemos e as
muitas lágrimas que com ela chorámos’
A Intrusa - dona Ana Coutinho - não a quisera
ver, e no dia seguinte ‘se foi a Cabido e a mandou levar lá, e, depois de a
vituperar e desonrar, e assim a todo o convento,’ mandara-lhe tirar o hábito e
véu preto, e fizera- lhe vestir uma mantilha de burel, que a cobria até aos
pés, e pô-la no grau mais abaixo de todos. E ordenara que às Sextas- feiras
jejuasse pão e água, e que sempre comesse em terra, e ‘fosse em cruz toda
(sic). E, de cada vez que acabassem as horas, se deitasse à porta da igreja
estirada’. Todas se tinham indignado, e todo o convento se levantara, e se
pusera de joelhos, pedindo-lhe ‘que se houvesse com ela piedosamente, e não lhe
quisesse dar azo outra vez a tentar.
Pediram-lho todas, e com tantas lágrimas, ‘que não houvera coração, por
duro que fora, que se não demovera’ Pois a Intrusa, não cedera, ficara antes
mais furiosa. Até Violante d’Azevedo, que era tão partidária dela como todas
sabiam, ela empurrara com tanta força, que quase a ditara ao chão. Quando ela
fazia isto a uma mulher tão velha, e que sempre fora coxa, ‘julgue Vossa
Senhoria o que fará a outras’. Por fim,
a abadessa castigara a todas tirando-lhes um dos pães até à Páscoa. Mas o que
elas mais sentiam, escrevia a autora da carta, era que ninguém acreditaria no
mal delas, porque elas mesmas, que o padeciam, não o conseguiam dizer, porque
as coisas eram tantas e tão grandes, ‘que por umas (se) esquecem as outras, e
fica em nossa memória o que elas causam. Que são muitas enfermidades
desvairadas e tanta magreza, que todas parecemos tísicas’. Se Deus não se
lembrasse delas, e lhes trouxesse dona Filipa de volta, e as livrasse de dona
Ana, ela tinha a certeza que muitas delas morreriam. ‘Se nos Vossa Senhoria de
alguma maneira poder acorrer, faça-o, por amor de Nosso Senhor ao menos. Pois,
já (que) os corpos estão destruídos, não percamos as almas, que é impossível
poderem-se salvar em tal poder. As queixas soam a verdade, e nem todas as cartas que foram
dirigidas ao Rei foram confiscadas. Ele não podia ignorar por completo o que se
passava. Seria difícil perceber com, sabendo-o, não lhes deu remédio, se não
houvesse claros indícios - já apontados -, de que D. João tinha uma concepção inquisitorial
da religião, e estava perfeitamente de acordo com os rigores impostos às monjas
pela abadessa por ele nomeada.
2 comentários:
Cara Sra. Doutora Theresa Castello Branco tendo descoberto recentemente o seu blogg venho dar-lhe os parabéns pela qualidade e interesse das matérias publicadas. Curiosamente sou a única neta do Pedro Theotónio Pereira e, neste momento, o meu livro de cabeceira é justamente a biografia do Marquês de Sande...
Por estar dedicada a uma tese de Doutoramento sobre a presença da porcelana da China e do Japão em portugal, no final do séc. XVII e primeira metade do século XVIII, só lhe posso estar muito grata não só pela publicação dos vários artigos sobre gastronomia e respectivo contexto histórico-social, mas também pelo extremo rigor e diversidade na selecção das fontes que publica.
Gostaria muito de a pode conhecer pessoalmente para trocar impressões sobre "vidas passadas", incluindo a partilha de alguma memória que possa ter acerca do meu avô.
Muitissimo obrigada, mais uma vez,
Felipa Theotónio Pereira Marques de Sousa
Cara Sra. Doutora Theresa Castello Branco tendo descoberto recentemente o seu blogg venho dar-lhe os parabéns pela qualidade e interesse das matérias publicadas. Curiosamente sou a única neta do Pedro Theotónio Pereira e, neste momento, o meu livro de cabeceira é justamente a biografia do Marquês de Sande...
Por estar dedicada a uma tese de Doutoramento sobre a presença da porcelana da China e do Japão em portugal, no final do séc. XVII e primeira metade do século XVIII, só lhe posso estar muito grata não só pela publicação dos vários artigos sobre gastronomia e respectivo contexto histórico-social, mas também pelo extremo rigor e diversidade na selecção das fontes que publica.
Gostaria muito de a pode conhecer pessoalmente para trocar impressões sobre "vidas passadas", incluindo a partilha de alguma memória que possa ter acerca do meu avô.
Muitissimo obrigada, mais uma vez,
Felipa Theotónio Pereira Marques de Sousa
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