Parece coisa tão ínfima para um rei, e no entanto assim foi. D. João
III teve em Roma quatro homens de grande nível ocupados em demonstrar que num
solitário mosteiro em Portugal uma mulher que fora eleita sua abadessa, não o
devia ser. Mas as diligências pouco adiantavam. Baltasar de Faria, que desde
1543 era ‘enviado’ de Portugal em Roma, o homem quem obtivera do Papa Paulo III
a Bula que estabelecera em Portugal o Santo Ofício da Inquisição, fora agora encarregado
do caso de D.Filipa. Estava encontrando inesperadas dificuldades. A 25 de Março
de 1546, oito anos depois do fatídico dia da eleição de dona Filipa, e depois
ca recente confirmação dessa eleição pelo Papa, o Rei recebe carta de Faria
narrando detalhadamente aquilo que e passava naquilo que designa por ‘caso de
Lorvão’.
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D. João III |
O Papa consentira que o caso fosse reexaminado, escreve
Faria. Dera ordens ao seu Núncio em Lisboa para que se informasse pessoalmente
do caso. Que ouvisse testemunhas, e que o referisse para Roma para que se
resolvesse finalmente o Negócio. Havia três anos, que ele andava naquilo,
escreve Faria, todos os dias insistindo com o Papa, até que este concedera
agora este re-exame. Muito contrariado, porém, ‘com grandíssima dificuldade’.
El-rei conhecia a natureza do Papa, já sabia que ele era ‘humbrioso’(sic).
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Papa Paolo III E os sobrinhos Ottavao e Alessssandro Farnese (Tiziano) |
O Papa era influenciado pelos que trabalhavam a favor de
dona Filipa, escrevia Faria, e que lhe diziam que el-rei favorecia ‘don’Ana por
alguns respeitos’. Ele provara que isso não era verdade, e conseguira que a
nova solução se mantivesse em segredo até partir a carta para o Núncio. ‘Os de
dona Filipa’ continuavam contudo a insistir junto do Papa, ‘todos os dias dão gritos
ao Papa’. Era necessário que em Portugal se conseguissem prova convincentes
‘com a qual espero que Sua Santidade se quietará e dará fim a esta lide, que há
sido a mais renhida de quantas há na Rota’. O cardeal Santa Frol trabalhara
muito bem naquele assunto, acrescentava Faria, seria bom que o rei lho
agradecesse.
Dois
anos depois tudo estava na mesma. Eram precisos mais esforços da parte de
Lisboa, escrevia Faria a 15 de Junho de 1548. Seria bom que o el-Rei ou a
Rainha escrevessem aos cardeais Farnese e Santa Frol, dando-lhes conta que dona
Filipa não queria a concórdia na forma que Sua Santidade ordenara. Um mês depois, nova paragem no negócio. O Papa
insistia em que tinha de se fazer justiça, e justiça era, na opinião da Rota,
julgar a favor de dona Filipa. ‘Poucos
dias há que avizei Vossa Alteza como tendo Sua Santidade dado comissão para que
se procedesse na causa de Lorvão a instância da parte adversa’, escreve
Baltasar de Faria a 8 de Julho de 1548. Ele acudira logo, fazendo revocar o que
a parte adversa adiantara. Mas Sua Santidade, ‘ou movido por más informações,
ou por lhe parecer que nisso mostrava seu valor, ou por qualquer outro
respeito’, ordenara que o juiz da causa procedesse, dizendo que, ao agir assim,
obedecia aos desejos de D. João III. Ironia, que arrasava Faria: ‘De modo que
debaixo deste nome se quis justificar, e não bastou fazer-se nisso tudo aquilo
que se pode imaginar para o desviar deste propósito, porque não ficou nada por
fazer de minha parte, metendo nisso cardeais servidores de Vossa Alteza,
acreminando-lhes (sic) o caso como era necessário, e tudo o mais que me pareceu
a propósito’.
O embaixador de
Portugal, D.João de Meneses, também trabalhava no ‘negócio’, tanto junto do
Papa, como junto dos cardeais Farnese e Santa Frol, ‘mas nenhuma coisa
aproveitou, o Papa escusando-se sempre que justiça havia de haver seu lugar’. O
embaixador explicava-se sobre o decorrer da causa, e o que ele fizera para adiantar.
Já escrevera a Sua Alteza sobre o que se passava no negócio de Lorvão, agora
podia informar que, tendo o Papa regressado de Frescata, ele lhe pedira audiência, e se queixara da pouca atenção
que se haviam dado aos desejos e às razões de el-rei D. João III. Não era
possível que Sua Santidade não soubesse ‘o que, entre turcos e mouros, era tão
notório’, que eram o zelo e o cuidado do rei de Portugal na reformação dos
mosteiros do Reino. Fizera-o em todos os mosteiros, e o mesmo queria fazer em
Lorvão. Ora, se Sua Santidade acreditava que assim era, porque é que admitia ouvir
naquela causa a dois ‘fugidos da Inquisição?’. A isso, e ao mais que ele
dissera ao Papa, a resposta de Sua Santidade fora, ‘que não podia deixar de
mandar à Rota que fizesse o que fosse justiça’. Ao que ele retorquira, que era
isso mesmo que o seu Rei queria. Se ele não o quisesse por justiça, não estaria
há tantos anos tratando daquela causa em Roma. Ele lembrara também ao Papa os
escândalos que se poderiam seguir, se dona Filipa fosse abadessa Ao que o Papa
respondera, que a Rota vira todos os pontos de uma parte e da outra, e julgara
o caso da forma que lhe parecia ser justiça. O mais que podia fazer, era fechar
os olhos, se D. João ‘como senhor e Rei da terra, que vê claramente os
escândalos e inconvenientes dessa mulher ser abadessa’ não o consentisse, e
fizesse o que lhe parecesse mais ‘serviço de Deus’.
O embaixador contestara, replicando ‘mil coisas’, até que Sua
Santidade, ‘desejando achar uma tábua a que se acolhesse’, lhe dissera que,
possivelmente, não estava bem informado, mas que o que lhe parecia era que
aquilo não devia tocar muito ao rei, a não ser por querer favorecer a dona Ana
Coutinho. ‘Isto, indigna-se o embaixador, quando Baltazar de Faria gastara os
bofes com gritos e lamentos, e dito e feito naquele caso tudo quanto podia. Era
de perder a cabeça. E não havia ‘causa mais publica na Rota nem nela coisa mais
referida’.
Finalmente Baltazar de Faria julga ver luz no horizonte. A 4 de
Setembro de 1549 o enviado informa D. João III, que o caso de Lorvão se
resolvera. Só até certo ponto, era verdade. ‘Depois de muito trabalho, e
fadiga, que seria para nunca acabar haver-se de dar contas’, o negócio de
Lorvão resolvera-se da seguinte maneira: Decidira-se, que o caso era afinal um
caso de direito à posse dos bens do mosteiro, e, como a esses, dona Filipa de
facto não tinha direito, dona Ana podia ficar no mosteiro. Era um compromisso,
e muito duvidoso. ‘Ainda não havia a certeza da solução ser aceite por parte de
dona Filipa’. E ela já agira. ‘Da parte de dona Filipa, como disto tiveram
notícia, vendo desbaratado seu desenho, fizeram grandes clamores a Sua
Santidade e todavia o vão informando com advogados consistoriais, ajudando-se
de todo o favôr que podem’.
O caso de facto ainda se arrastaria, e não foi nunca resolvido
declaradamente a favor de D. João III. Não pode haver duvida que D.Filipa teve
poderosos apoios em Roma, mas quem foram? Não encontrei resposta. Baltasar
Faria fala em ‘os de dona Filipa,’ o
embaixador do rei dizia que ela tinha o apoio de ‘fugidos da Inquisição.’ O que
é possível, considerando que era preciso dinheiro para ganhar apoios influentes
em Roma, e a própria D. Filipa não o tinha de certeza. E não podia ter os
conhecimentos necessários para a partir do mosteiro de Celas contactar gente
influente em Roma. Consta que ela teve um conselheiro activo no abade Pedro de
São Paulo de Almavisa, pequeno mosteiro de monges cistercienses perto de
Coimbra. E talvez esteja nessa ajuda do abade de Almaviza a D. Filipa a
explicação para que D. João III tivesse pedido a Júlio III, sucessor de Paulo
III, que os bens
de S. Paulo de Almaziva fossem transferidos para o instituição de ensino em Coimbra. O novo
Papa acedeu e no ano de 1555, o mosteiro de onde o abade Pedro aconselhara D. Filipa
d’Eça, era anexado ao Colégio do Espírito Santo em Coimbra.
Quanto ao fundo da questão
do rei contra D. Filipa d’Eça, tem decerto explicação na falsa ideia que D. João
III fazia da vida monástica. Em uma das suas cartas dirigidas ao Papa o
embaixador de Portugal escreve, que não era possível, que Sua Santidade não
soubesse, ‘o que, entre turcos e mouros, era tão notório’, que eram ‘o zelo e o
cuidado’ do rei de Portugal na reformação dos mosteiros do Reino. Fizera-o em
todos os mosteiros, e o mesmo queria fazer em Lorvão. Ora, se Sua Santidade
acreditava que assim era, porque é que admitia ouvir naquela causa a dois
‘fugidos da Inquisição?’.
É
que Paulo III, educado no Humanismo, era menos inquisidor que D. João III. Ele
teria compreendido que o rei favorecesse Dona Ana Coutinho por consideração
pessoal - mesmo amorosa - mas não via razão para afastar D. Filipa pelo facto
de ela, como as suas duas antecessoras, não favorecerem excessivos rigores no
seu mosteiro.
Dona
Filipa não veio a ocupar o lugar de abadessa em Lorvão, mas as coisas
apaziguaram com o abadessado de dona Catarina de Albuquerque, que governaria
até à sua morte. Foi a última abadessa perpétua em Lorvão. No ‘Livro das
Preladas’ lê-se que, no ano de 1605, tendo morrido a abadessa dona Catharina de
Albuquerque, e o Dom abade de Alcobaça, ‘estando presente no dito mosteiro à
grade da igreja dele, para efeito de eleger nova prelada’, ele perguntara à
madre prioresa e convento, se ‘eram contentes’ de elegerem prelada trienal, ou
se queriam que esta fosse perpétua como até então tinha sido. Prioresa e
convento tinham respondido, ‘de voto comum e sem discrepância alguma’, que
queriam que as preladas, que dali em diante se elegessem, fossem trienais, e
que dessa forma se começasse logo naquela eleição. E declararam mais, que
renunciavam a ‘qualquer direito e accão, se algumas tinham, na eleição das
abadessas perpétuas, por entenderem em suas consciências ser assim mais serviço
de Deus e proveito espiritual e temporal do mosteiro.’ E assim sucedeu. Uma
nova era começou no mosteiro de Santa Maria de Lorvão.
Nota: Na próxima semana não haverá publicação, retomaremos daqui 15 dias
T.T. Gavetas da Torre do Tombo II,5-60)
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