"Gabai-vos de ler e cantar bem?"

>> terça-feira, 2 de dezembro de 2008


14. “Gabai-vos de ler e cantar bem?”
Um dia – há muitos anos - publicou-se na secção ‘Cartas dos Leitores’ do hoje desaparecido "O Independente" uma carta, intitulada "Estimado JPC", na qual um grupo de leitores - que assinavam "Club dos Snobs" - ironizava a mania do jovem João Pereira Coutinho de gabar as suas leituras e os seus livros e, juntamente, criticar as patéticas poucas leituras e poucos livros dos ignorantes leitores das suas crónicas.
Senti-me frustrada por outros que não eu terem exprimido tão bem, e com tanta graça, o que eu queria ter escrito e não escrevi. É que também eu muitas vezes me encanitara com aquele jovem que me apontava determinados livros como um must absoluto, considerando ineptos aqueles que porventura não tivessem lido a obra prima por ele recomendada.
O que os autores da carta provavelmente ignoravam, e também eu até há pouco ignorava, é que a bazofia das leituras e o gabar da posse de muitos livros era - em tempos idos - considerado uma das manifestações da soberba e, como tal, era pecado! Verdade. Lê-se no “TRATADO DA CONFIÇOM”*, aquele livrinho impresso em Chaves em 1489, que - até prova em contrário (que fatalmente virá) - é considerado o primeiro livro impresso em Portugal em português.
Os "Tratados de Confissão" eram manuais onde os confessores encontravam as necessárias informações sobre o que era pecado e quais as penitências a aplicar aos fautosos. Ora ao passar os olhos pelo parágrafo que se refere à soberba, constatei que entre as manifestações pecaminosas da soberba está classificado o pecado de nos gabarmos dos nossos livros. Recomendava-se ao confessor que indagasse do seu confessado, se ele, se gabara de "ler e cantar bem", ou de "ter muitos livros e bons". Assim mesmo. Nada de gabarolice.
O mesmo – com outros propósitos - recomendava um inglês do século XVIII a seu filho.
Philip Dormer Stanhope, Lord Chesterfield, vivia na preocupação de incutir ao filho as boas maneiras, e de o precaver contra as pequenas manias que pudessem estragar a impressão favorável que desejava que o jovem Filipe Stanhope produzisse na primeira sociedade. A 22 de Fevereiro de 1748 escreve ao filho :
"Se queres evitar, por um lado a acusação de pedantismo, e, por outro, a suspeita de ignorância, evita a ostentação intelectual. Fala a fala da companhia em que te encontras, fala-a com simplicidade e não a salpiques com qualquer outra. Nunca queiras parecer mais sábio ou mais erudito que a gente com quem te encontras. Usa a tua erudição como o teu relógio, numa algibeira interior."**
*Tratado de Confissom. Fac-simile....Portugalie Monumenta Typographica. Imprensa Nacional. Casa da Moeda. Lisboa 1973
** Lord Chesterfield Letters to his son and others. London. J.M Dent&Sons Ltd


Observações à margem
Também já aconselhei livros e sugeri leituras. É verdade, já o fiz. Mas desisti. Aprendi a não o fazer, quando percebi que, quando a minha filha declarava - e ainda hoje o faz - , “não sei o que hei-de ler”, olhando-me com uma pergunta nos olhos, que a ultima coisa que ela na verdade queria - e quer - era uma sugestão sobre que livro ler. A pergunta estava-se ela fazendo a si mesma, e a resposta encontraria ela. Não aconselho livros, portanto. E não espero conselhos em matéria de leitura. Pior. Não aceito, com a gratidão que todo o conselho bem intencionado merece, que me aconselhem livros. Basta alguém me dizer: “Já leu o livro tal do autor tal? É óptimo, deve lê-lo” para eu estar imediatamente decidida a não ler o livro tal do senhor tal. Por melhor que seja. Pelo menos nos tempos mais próximos. Espírito de contradição? Pura e simples teomosia? Falta de humildade? Terei também eu de me confessar de soberba? Receio que sim. Mea culpa.

Das cartas à minha filha
Lisboa, 15.XI.1997
“........Como já lhe disse pelo telefone, o velho Chiado está ressuscitando, as pessoas estão a voltar. Quando de lá saí pelas 11 e meia não havia um lugar. O público das lojas: não elegante, mas "solid". A "esplanada" do Fernando Pessoa com todas as mesas ocupadas, porque estava um dia lindo, já se vê, mas porque é agradável estar ali. Ou deve ser, nunca lá me sentei. A Bertrand muito concorrida, os vendedores claramente com instruções de "aconselhar" o comprador. A um senhor que saía com um livro sobre as Cruzadas, um dos vendedores veio à porta dizer-lhe que havia também um livro sobre as Cruzadas vistas pelos árabes. O que até nem era despropositado, mas talvez um pouco excesso de zelo, porque o comprador já estava à porta. A outro ouvi "aconselhar" uma jovem leitora. Ela queria um livro - barato - de poesia francesa, e ele informou-a que tinham ali, nos Livres de Poche, as Flores do Mal e ....o Pére Goriot !!! São coisinhas destas que me fazem ganhar o dia”.

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