Pequenas escritoras

>> segunda-feira, 8 de dezembro de 2008


15. Pequenas escritoras
Anna Pelizarri tem oito anos, mora em casa diante da minha, e, quando soube que tinha uma vizinha que escrevia, pediu para a conhecer. Quer ser escritora, já escreve estórias, e não está muito segura “quanto a parágrafos”. Conversámos sobre parágrafos e outras coisas que - como escritoras - interessam a ambas. Anna lê muito. Lê naturalmente livros para a sua idade. As estórias de Anna são estórias de criança inspiradas em livros para crianças. É entusiasta da escrita, em uma das suas estórias, “O Universo de Matilde”, ela interrompe a narrativa para escrever: “ADORO ESTA HISTÓRIA!!!!!” Estou convencida que Anna virá a realizar o seu sonho, e ser uma escritora a sério, e muito produtiva.
Anna, escrevendo as suas histórias aos oito anos, lembrou-me Daisy Ashford.
Daisy tinha nove quando escreveu uma estória que intitulou “The Young Visiters” (sic). Daisy confessaria um dia, que, em criança, lia todos os livros que lhe caíam nas mãos. E não só livros de criança. Salta à vista que ela se inspirou em romances para adultos. The Young Visiters é uma história de adultos vistos por uma criança, uma estória que é apreciada, direi mesmo que, só apreciada, por adultos.
Daisy tinha tudo para vir a ser escritora a sério, e no entanto não escreveu mais que The Young Visiters e uma outra estória. Só que o seu livro ficou. As acções dos adultos vistas pelos olhos de Daisy, são de um cómico irresistível. “The Young Visiters” é uma pequena obra prima de humor involuntário.
Terry Rose, neta de Daisy, escreve sobre a avó, que ela nunca pensara ser escritora ”para ela e as irmãs escrever estórias era um entretimento. A sua ‘carreira’ como escritora começou aos 4 anos, quando ditou ao pai “The Life of Father McSwiney” e terminou aos 14 anos com “The Hangman's Daughter”. “The Young Visiters” foi escrito em 1890 quando ela tinha nove anos.”
O livro foi descoberto quando Daisy e as irmãs procediam a uma limpeza da casa depois da morte da mãe. “Encontraram um masso de cadernos e, entre eles, um com The Young Visiters. Acharam a estória tão divertida, que a mandaram a uma amiga doente para a distrair. Esta por sua vez mandou-a a Frank Swinnerton, autor de livros de ficção e leitor para a editora Chatto and Windus. Que decidiu publicar a obrinha.”
JM Barrie, autor de livros para crianças, (entre eles Peter Pan) escreveu o prefácio, “e um público pasmado, não conseguindo acreditar, que uma criança de nove anos tivesse escrito aquilo, assumiu que Barrie é que era o autor. O que resultou em enorme publicididade para o livro. Foi um bestseller, e Daisy, sempre timida e modesta, viu-se obrigada a aparecer e falar sobre o seu livro para provar que o autor era ela e não Barrie.”* Até aqui Terry Rose
*Traduzido de um comentário em Amazon.co.uk para uma edição do livro em 1988.

O livro foi publicado tal como Daisy o escreveu, sem emendar erros de gramática ou de ortografia. A primeira edição do livro é de Maio de 1919, o meu exemplar, encontrado em dia feliz num alfarrabista, data de Agosto desse ano, e é de uma 13ªedição.
Tentarei dar uma ideia do “Young Visiters” .

O protagonista do romance é um Mr. Salteena, que “era um senhor de idade”. Tinha 42 anos. Com ele vivia “uma rapariga bastante nova, chamada Ethel Montecue”. Tinha 17 anos. Um dia Mr. Salteena recebe pelo correio o convite de um senhor chamado Bernard Clark para passar uns dias em sua casa. Que venha e traga também uma rapariga bonita. Juntamente com esse convite vem um embrulho com um chapéu alto para Mr. Salteena usar durante a visita. Mr Salteena fica muito contente com o convite, e escreve de imediato a aceitar: “subiu as escadas muito depressa nas suas gordas pernas, preparou o mata-borrão, fungou duas vezes com força, e isto foi o que escreveu:
Meu caro Bernard, irei com certeza na segunda-feira. Levo Ethel Monticue, geralmente chamada Miss M. É muito activa e bonita. Espero divirtir-me. Gosto muito de cavar no jardim, e sou parcial a senhoras, quando são simpáticas, julgo que é da minha natureza. Não sou bem um gentleman, mas quase não se nota, e de resto não há nada a fazer”.
No dia da partida Mr. Salteena dispensa o ovo ao pequeno almoço, “no caso de enjoar durante a viagem”. No comboio que os leva a casa de Bernard Clark, Mr. Salteena e Ethel debatem a forma de se portarem numa casa como a de Clark. São recebidos por um imponente butler, que os conduz à presença do dono da casa, gentleman muito bem parecido, “um pouco inclinado no meio” que cora ao olhar para Ethel.
Passados uns dias, com pequenos problemas causados pelos caprichos de Ethel, Mr Salteena parte para Londres, para que um amigo de Bernard Clark, o conde de Clinsham, lhe dê lições de como ser mais gentleman.
“Quando Mr. Salteena chegou a Londres começou a passear nas principais ruas e a pensar que alegre que tudo era. Presentement avistou um restaurant (sic) com um homem muito grande à porta. Entrou corajosamente. Era um local sumptuoso todo feito em oiro com bastantes espelhos.” Muitas bonitas senhoras e homens já estavam “degustando comida suculenta e ricos vinhos e whisky” e Mr Salteen tomou um pouco de whisky para ganhar coragem. Depois da refeição, Mr Salteena saiu e um amável policio indicou-lhe onde era o Palacio de Cristal. Chegando finalmente a esse “admirável edifício” Mr. Salteena encontra o conde, que o recebe muito amavelmente:
“--Olá--disse essa amável criatura.
--Olá--respondeu o nosso herói, inclinando-se profundamente,e deixando cair o seu chapéu alto.
--Estou-me dirgindo ao conde de Clincham?-
--Está-o na verdade--respondeu o conde com um sorriso agradável-- e a quem me estou dirigindo, eh?—
O nosso herói inclinou-se de novo
--Alfredo Salteena--disse em voz grave.
--Muito bem-- disse o bom do conde, --em que lhe posso ser útil?”
Mr Salteena explicou que “na verdade não era ninguém de importância, e que não era bem um gentleman, como se costumava dizer”
--Ah, bom, tome um pouco de whisky--disse lord Clinsham, e encheu um copo que tinha a seu lado. Mr Salteena engorgitou-o gratamente.
--Bem, meu bom homem—disse o bondoso conde-- o que eu digo, é que não podemos ser todos do sangue real.”
A conversa prosseguiu, o conde quis saber se Mr. Salteena tinha muito dinheiro, e estava preparado a gastá-lo.
“--Oh, sim, respondeu Mr. Salteena --tenho muito no banco, e tenho 10 libras em oiro aqui no bolso.
--Óptimo, disse o conde.”
É que aquilo ali era dispendioso, explicou, “eram as paragens da aristocracia, e aguentavam-se graças a homens que não queriam ser só
–Se é que me faço entender?
--Oh, perfeitamente --respondeu Mr. Salteena
Pessoalmente, ele até gostava de pessoas que eram só somente, disse sua senhoria, o conde, mas o treino ali era caro, e se Mr Salteena não podia pagar, nada feito.
Mr Salteena poz logo ali dez libras em cima da mesa, que o conde pôs na algibeira,
--Antes que eu o tenha despachado, precisará de 42 libras--disse o conde --mas pode pagar aqui e ali, conforme convenha.
--Oh, obrigada--disse Mr. Salteena
--De nada--disse o conde --e agora vamos a isso.”
Explicou a Mr. Salteena que seria instalado ali mesmo, “num apartamento designado por andar de baixo”, e que, de vez em quando, se “misturaria com ele para um pouco de gramática”, que talvez o levasse a caçar, “e que também tinha ali quantidade de senhoras”, e dava festas a que ele poderia às vezes assistir.
“Os olhos de Mr. Salteena brilharam de excitação
--Vou gostar--gritou
O conde tossio com força.”
Também era preciso que Mr. Salteena escolhesse uma profissão, disse sua senhoria, o conde,
“--Já que a sua instrução depende conforme.
--Poderei eu ser qualquer coisa no palácio de Buckingham?--disse Mr Salteena com olhos a brilhar.
--Bem, não sei bem-- disse o nobre conde--talvez que possa galopar junto da carruagem real, se quer exprimentar.”
Seguem-se mais informações sobre os passos que Mr. Salteena teria de seguir para ser menos e o capítulo termina pouco depois.
“E aqui vou acabar o meu capítulo”, declara Daisy.
Quando o conde de Clinsham entendeu que Mr. Salteena já estava apresentável, levou-o a uma recepção ao palácio de Buckingham.
Antes de entrarem nos salões do palacio, “o conde torceu o bigode, e muito calmamente bateu na perna com a sua luva branca. Mr. Salteena suava profusamente e ajeitou os suspensórios, para estar seguro.”
As portas dos salões abriram-se de para em par, os criados anunciaram em voz alta o nome do conde de Clinsham e do seu amigo.
“O sumptuoso espaço estava cheio de homens de nobre natureza, e de senhoras de todos os tons, com longas caudas e jóias às dúzias. Havia duques por toda a parte, e uma boa porção de príncipes e de arqui-duques, porque era na verdade uma muito sumptuosa recepção.”
O conde e Mr. Salteena conseguiram furar através dos duques e príncipes até chegarem a uma plataforma drapeada de veludo branco. “E aí numa cadeira de ouro estava sentado o príncipe de Gales com um lindo casaco de arminho e uma pequena, mas custosa, coroa na cabeça.”
Houve os cumprimentos da praxe, o príncipe conversou com o conde, e a dada altura declarou que lhe apetecia um calmo copo de champagne.
“--Venha também Clinsham, e traga o seu amigo. Estão a chegar os dipomatas, e eu não estou muito in the mood para conversa profunda, Já assinei doze documentos, por isso já fiz o meu dever.”
Foram para uma pequena sala, onde o príncipe bateu com os dedos numa mesa e logo apareceu um criado a quem ele ordenou que trouxesse champagne
“--E alguns gelados—acrescentou.”
As coisas apareceram “como por mágica”, e o príncipe pegou numa caixa de charutos que passou à volta.
“--Fica-se cansado da vida de corte—observou.
--Ah, sim—concordou o conde.
--Incomoda-me--disse o príncipe, lambendo o seu gelado de morango. --Eu só quero paz e sossego e um pouco de divertimento de vez em quando, e aqui estou preso a esta vida –disse, tirando a coroa da cabeça,-- isto de ser real tem muitos dolorosos inconvenientes
--Na verdade, disse o conde.”
E por aí fora, até que Daisy acha que já é tempo de mudar de assunto
“E agora vamos deixar o nosso herói gozando do seu glimpse de vida na alta roda, e voltar para Ethel Montecue”. escreve.
Ethel ficara em casa de Bernard Clark, e, como era de prever, este declara-lhe o seu amor. A proposta de casamento é especialmente comovente. Ethel desmaia de felicidade quando ouve “as místicas palavras”. Bernard fica muito aflito, e , “pousando a delicada carga na margem do rio, foi encher um copo com o fragrante fluido para a deitar na pálida testa da sua bem amada”
Mr Salteena, sofre de terríveis ciumes quando é informado do noivado de Ethel, mas virá a consolar-se casando com uma criada da casa real, “uma simpática rapariga de 18 anos chamada Bessie Topp, com uma cara redonda e corada e olhos bastante pretuberantes”. De resto realiza a ambição ”que a sua alma implorava”: um emprego em Buckingham Palace. E todos os dias podia ser visto “galopando loucamente atrás da real carruagem, elegantemente vestido de veludo verde”.
Daisy não deixa os seus leitores em dúvida sobre o destino dos seus heróis. Informa-nos que Ethel e Bernard passaram a lua de mel no Egipto. Ethel enjoou um pouco no barco, mas Bernard enfrentou a tempestade em “estilo masculino”, Ethel recuperou quando chegaram ao Egipto “e aqui os deixamos por umas alegres seis semanas de felicidade enquanto regressamos a Inglaterra.”
Os recém casados voltaram da lua de mel com “um filho e herdeiro, um engraçado e gordo rapazinho chamado Ignatius Bernard”, e pelos anos fora nascem-lhes muitos mais flhos.
Mr Salteena também teve uma grande família, dez raparigas e dez rapazes, pelo que a sua casa era bastante barulhenta. A mulher era às vezes um bocado massadora, sobretudo quando o marido sonhava alto com Ethel, e se lamentava de não ter casado com ela. “Mas, enfim, ele era um homem piedoso e consolava-se com a oração-”
Quanto ao nobre conde de Clincham, casara com uma senhora que não era tão bonita como Ethel, mas tinha bonitos pés e bastante dinheiro. Tiveram duas filhas, uma chamava-se Helena, a outra chamava-se “Marie, porque parecia um pouco francesa”. O conde “depressa se cansou das suas doentias filhas, e a sua mulher tinha feroz feitio, e assim ele pensou em divorciá-la e experimentar outra vez, mas depois de várias tentativas, desistiu da ideia, e oferecê-o como mortificação.”
Chegara-se ao fim.
“Por isso agora, meus leitores, vamos nos despedir dos catacteres neste livro.”

4 comentários:

Teresa 12 de dezembro de 2008 às 18:54  

Olá Teresa. Claro que me lembro de si!!! Estou muito feliz por me ter encontrado, pois há muito que não tinha notícias suas! Tenho também um espaço só meu. Vou adicionar este seu libri.librorum; agora já não ficaremos distantes.Tem ainda o meu endereço? perdi o seu....

Beijinhos
Teresa Sá Couto

João Pedro Ferrão 12 de dezembro de 2008 às 20:07  

Mas que belo blogue. Vai passar a ser uma visita diária. :)

Theresa Castello Branco 13 de dezembro de 2008 às 09:32  

Teresa Sá Couto

Bom dia, Teresa. Também estou contente com este reencontro, e quem me havia de dizer que seria por Blogue. Foi aventura em que me arrisquei a medo e ainda tenho problemas técnicos. Os literários ultrapassei. Escrevo o que me dá na real gana, com conta e medida, evidentemente, e devirto-me. Mas, sobretudo, obriga-me a pensar. Cada artigo é um exercício, um pouco de estudo, um pouco de imaginação. Faz-me bem, e aos que me lerem não fará mal. Perdi o seu endereço. O meu é tcbl@blogspot.com O próximo artigo será sobre a "primeira frase". Um abraço Theresa C´B´

Theresa Castello Branco 13 de dezembro de 2008 às 09:44  

João Pedro Ferrão. Bom dia, João Pedro. Obrigada pela apreciação. Cá o espero, mas todos os dias, não. É loja que só abre à segunda-feira. Theresa CºBº

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Libri.librorum pretende ser um blogue de leitura e de escrita, de leitores e escritores. Um blogue de temas literários, não de crítica literaria. De uma leitora e escritora

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