José Saramago

>> terça-feira, 29 de junho de 2010

Morreu José Saramago. Oiço dizer “ah, mas recebeu o Nobel”. “Recebeu o Nobel, e quem recebe o Nobel é o melhor do mundo”. “Por ele a língua portuguesa chegou a todo o mundo”, “até o Bispo tal já diz que foi uma figura impar da cultura portuguesa”. Ainda não ouvi ninguém dizer: “Que bem que ele escrevia”, “O que eu gostei do livro de Saramago”. “Que prosa a de Saramago”. “Escrevia maravilhosamente bem”. Também é curioso que não haja críticos literários que analisem a sua obra, pelo seu valor literário, esquecendo o Nobel. E alguém que explique a razão de uma escrita sem pontuação e nos explique a nós, simples mortais, o porquê dessa forma.

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“Pensalhar”

>> terça-feira, 22 de junho de 2010

Foi Mia Couto quem criou a palavra. Diz ele que, pare ele, a melhor forma de passar uma viagem de avião, é a pensar. E a esse pensar chama ele ‘pensalhar’. Há pouco publicou um livro com alguns desses pensamentos, dessas pensalheiras. Estou profundamente agradecida a Mia Couto por esta sua criação. Adopto-a com entusiasmo. O meu computador não conhece a palavra, protesta. Não faço caso. Há muito que eu procuro a palavra que exprimisse uma das formas daquilo que eu gosto de fazer: pensar. Distinguindo porém entre diferentes formas de pensar. A uma delas, vaga, solta, saltitante, sem objectivo, era-me até agora difícil de definir. Foi-me perguntado mais do que uma vez, o que estava eu para ali a fazer, quieta, calada, olhando em frente. Não me sentia bem? Tentava explicar que estava bem, que estava só a pensar. Apressava-me a acrescentar, que não era em coisa profunda, era só a pensar. Ainda não tinha a palavra certa. Agora já posso responder: “estou a pensalhar”. Pensalhar pode ser assim: “Que azul tão escuro tem hoje o mar. Até mete medo. Um dia vem por aí a dentro e engole-nos. Se calhar vai ser pelo mar que o mundo um dia será tragado. Não o mundo. A terra. E a lua? Também desaparece? Ou será ela que nos faz desaparecer? Quando será a lua cheia? Há pessoas, que se sentem deprimidas em dias de lua cheia. Disparate. Ou talvez não. Depressão não é brincadeira. Dizem.” E por aí fora, mais ou menos assim.
Eu gosto de pensalhar. Gosto de estar calada, quieta, alinhando em mente impressões, ideias, palavras. Agora sei o que isso é. É uma pensalheira. Obrigada, Mia Couto.

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O homem de letras

>> segunda-feira, 14 de junho de 2010

Há agora na vida pública uma figura literária profissional, à qual eu, até há pouco, não sabia dar nome. Agora sei. É um “homem de letras”. É a tradução literal do francês “homme de lettres”. Não sei se em França a definição ainda se usa, em português parece-me que não se usa e nunca usou. Eu é que apliquei a expressão espontaneamente a alguém que ouvi numa entrevista, e decidi falar disso aqui.
O homem de letras é um especialista em matéria de letras. Não é o engenheiro, que concebe e constrói os motores, é o homem que sabe qual ele é, e como ele é, e aonde ele se fabrica. Conhece tudo em matéria de motores, mas não é o peso pesado da engenharia. O homem de letras não é o peso pesado da literatura. Não é o engenheiro. É o técnico. Conhece os livros e os seus autores, critica e analisa livros, por vezes publica as suas críticas em livro, mas não é um escritor. Conhece os editores, e vai ao lançamento de livros que eles publicam. Fala fluentemente sobre qualquer desses aspectos da vida literária, feiras de livros, leilões de livros de qualidade, poetas que são políticos e vice versa, etc. No grande público, é tido por intelectual.
Nos fins do século XIX, o homem de letras surge nos romances franceses como elo de ligação entre as grandes senhoras com aspirações literárias e o mundo dos livros. O “homme de lettres" não era ele próprio aquilo que se entendia por escritor. O escritor labutava no seu triste sótão, e – com raras excepções – não tinha ambições mundanas. O homem de letras substituía-o com vantagem. Vestia bem, tinha boas maneiras, Dava à reunião mundana um agradável, ligeiro, toque de intelectualidade, e como em geral tinha espírito, divertia. Era o conviva ideal.
Já não há salões, nem grandes senhoras cultivando homens de letras. A definição desapareceu, e, no entanto, acabando de ouvir uma entrevista na TV, eu disse para comigo: “É boa. Este homem – ou seja o entrevistado – é aquilo a que no passado se entendia por homem de letras”. E o que é que eu vira e ouvira?
Vira um homem novo, nem bonito nem feio. Gordote. Tinha as mãos em cima da mesa. De onde não se ergueram. Nem para um gesto que fosse. Só os beiços se moviam, quando, num evidente esforço, respondia ao seu entrevistador. O qual, jovem, e talvez pouco experiente, parecendo transido de respeito e admiração, fazia perguntas anódinas, às quais Pedro Mexia - era ele o convidado - respondia a dormir.
Pedro Mexia confessou que, sim, que era um pouco misantropo. Desabusado da humanidade, da qual já nada de bom se pode esperar. Ficámos também a saber que Pedro Mexia acaba de traduzir uma peça inglesa, com muito humor inglês, que o autor da peça permitiu que ele tomasse algumas liberdades na tradução, para adaptar o texto aos conhecimentos do espectador português. Assim, por exemplo, substituiu “cricket” por “tennis”. Pedro Mexia não aprecia o Papa, escreveu até um artigo de severa crítica quando da sua eleição. Apreciou no entanto ter sido convidado para a reunião da elite cultural com Bento XVI. O qual, não sendo comparável ao seu antecessor, tem algum peso intelectual. Pedro Mexia foi autor de um blogue, que tivera um grande “feed-back” – o entrevistador mostrou a sua respeitosa admiração – e publicara o conteúdo do blogue em livro. Acha que os livros devem ser escritos por escritores, e não por inspiração de um qualquer, e é severo quanto ao mau português que se escreve. Faz lançamentos de livros, tem um programa na rádio. E, “although last, not least”, Pedro Mexia é benfiquista. No grande dia do título, foi para o marquês de Pombal vestido a rigor clubista de boné e cascol e outros atavios. Nem um sorriso, nem um gesto acompanharam essa declaração. Restou-nos a nós, ouvintes, imaginar a contribuição daquela esfíngica figura festejando os heróis encarnados.
Subtraindo o amor clubista, e algumas diferenças condicionadas pelo tempo, creio que não foi asneira minha, quando, em mente, apelidei Pedro Mexia de “homme de lettres” do século XXI.

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A ‘velha’na literatura

>> terça-feira, 1 de junho de 2010

Toca o telefone. Desejam que me pronuncie sobre determinado produto. Respondo que já ultrapassei a idade de dar opiniões. “E não há aí alguém de 68 anos?” perguntam-me. “Não tenho a certeza, mas vou ver”. Desliguei, rindo. Pergunto-me se terei falado com um idiota ou com alguém com graça, com sentido de humor. Espero que fosse o último.
Gostaria de saber em que dados se terão baseado as agências de publicidade para concluírem que, passados os 68 anos, os velhos não têm capacidade de opiniar sobre papel higiénico ou detergente?
A história fala dos conselhos dos velhos, cuja opinião era a ultima palavra. Nos mosteiros femininos medievais, a abadessa convocava o conselho das anciãs quando havia assunto difícil a resolver.
Na literatura, que afinal procura recriar a realidade, a mulher velha pode ser má, mas raras vezes é estúpida. O tipo da ‘velha’ é aliás um dos tipos da literatura. Ou seja, literariamente, a mulher velha interessa. Ela encontra-se em contos e romances. E quase sempre como figura activa. Nos contos, é mais vezes bruxa má do que bondosa avó. Inclinada, apoiada no seu pau, arguta, capaz de prever o futuro, de adivinhar intenções. Assustadora. Foi assim que os contistas do passado viram a mulher velha.
Quando os irmãos Grimm percorreram a Alemanha à procura de velhos contos, era de preferência a mulheres idosas que se dirigiam. Sabiam que elas recordavam. Que tinham em alto grau essa faculdade.
A literatura, grande e pequena, tem construído histórias sobre a mulher velha que recorda.
Muito recentemente ouvi o Dr. Henrique Monteiro, director do Expresso, ser entrevistado sobre um seu romance, creio que o primeiro, intitulado ‘Toda uma vida’, no qual o autor faz reviver a história do século passado através da vida e das recordações de uma mulher velha.
Eu fiz o mesmo, e também no meu primeiro romance, se bem que o segundo a ser editado. Servi-me da figura de uma velha senhora para reconstruir o passado. O passado de uma família.
Já não era uma jovem quando escrevi ‘ A Morte de uma senhora’. Henrique Monteiro não é um jovem. Penso que a mulher velha não é personagem para autores jovens.
Creio que é preciso uma certa maturidade para poder – e querer – criar uma obra sobre a pessoa de uma mulher velha. Ou mesmo para a incluir entre as figuras secundárias dos seus livros.
Mas não faltou quem delas tratasse. Quem as achasse ‘interessantes’. Recordo, nos livros alemães do romantismo as avós bondosas e acolhedoras, não me esqueço da avelha camponesa russa que esperava a passagem dos comboios que levavam os prisioneiros para a Sibéria, para os confortar com a sua bênção. Das velhas francesas lembro-me de camponesas, duras, rancorosas, implacáveis.
O romance policial não se esqueceu delas. Surgem em muitas das investigações do inspector Maigret. Vê-mo-lo mais de uma vez confrontado com a astúcia e a força de uma velha mulher.
Astúcia e força são também as faculdades que Agatha Christie atribuie à sua Miss Marple. Velha, frágil, mas forte. E que recorda. Que resolve os problemas com o uso da sua memória e conhecimento dos homens.
A longevidade da mulher distingue-a do homem. Este desaparece, ela vai ficando. Velha, frágil, mas forte. Teimando em viver, reconfortante e incómoda, como aquela velha Bibiana do ‘Tempo e o Vento’ baloiçando-se na sua cadeira, observando os novos repetir as asneiras dos seus predecessores.

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Libri.librorum pretende ser um blogue de leitura e de escrita, de leitores e escritores. Um blogue de temas literários, não de crítica literaria. De uma leitora e escritora

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