Corresponder no séc. XIX

>> segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

As cartas reveladas neste livro, de uma mãe e suas filhas, datam do século XIX, quando se tornou corrente a troca de cartas entre particulares. Não que as pessoas anteriormente não se escrevessem, mas o transporte do correio era caro e moroso, e tinha uma agravante: era o destinatário quem pagava parte ou a totalidade do porte. Só assim havia garantia que a carta seria entregue. É evidente que isso obstava a que se escrevessem muitas cartas à mesma pessoa. É igualmente evidente que não se obrigava alguém a pagar porte por ninharias. Uma carta era coisa séria, só se escrevia sobre matéria de interesse. Isto mudou no século XIX com a máquina a vapor, construíram-se linhas de caminho-de-ferro, os comboios ligaram as cidades da Europa, houve mais espaço para mercadoria, portanto também para correio. Os governos descobriram uma fonte de receita, tomaram conta do transporte de correio, era a eles que o autor da carta pagava, e, a partir de 1842 havia em Portugal o primeiro selo certificando esse pagamento. Cada um podia escrever sem pensar que estava a sobrecarregar um outro, podia escrever coisas importantes e baboseiras. Dado que as cartas chegavam rapidamente ao seu destino, havia resposta pronta, descobriu-se o prazer de conversar por carta. Nascera a comunicação social. A coisa teve durante bastante tempo ar de novidade, e ainda nos anos cinquenta do século XIX o conde da Ponte recomendava às filhas que guardassem as cartas, que um dia haveriam de gostar de as reler. Elas obedeceram, e é assim que se explica, que, à sua morte com 86 anos, a minha avó Theresa Saldanha da Gama, a filha mais velha dos condes da Ponte, deixasse um baú contendo centena de cartas. O facto de serem antigas, não faz as cartas automaticamente interessantes ou divertidas. Podem ser, e muitas vezes são, maçadoras e sem o mínimo interesse. Quando decidi catalogar aquela correspondência verifiquei isso mesmo, havia cartas com algum valor histórico, outras, interessantes, mas sem valor individual, e a maioria valendo unicamente naquele contexto. Notei, no entanto, que havia umas cartas que sobressaíam naquele conjunto, pelo conteúdo e pela forma, eram aquelas que Theresa recebera de sua mãe, a condessa da Ponte, e de suas irmãs. A essas cartas decidi copiar, sabendo que, uma vez entradas no arquivo, ao qual estavam destinadas, elas iriam desaparecer dos olhos do mundo. Tinha uma vaga ideia de publicação, partilhada por um dos meus tios. Foi sempre coisa vaga, e nada que passasse do meio estritamente familiar. Curiosamente, foram as comemorações da implantação da Republica que me fizeram considerar de novo uma publicação, e já não num âmbito restrito, familiar, mas em edição pública. É que notei naquela ocasião, que se falava dos reis passados, de alguns dos seus ministros e colaboradores mais chegados dos reis, mas que nada se dizia – e penso que se escrevia, mas eu já não estava em condições de o verificar – que nada se dizia daquela estreita fatia da sociedade, a qual, mesmo em monarquias constitucionais, é sempre parte delas. Não digo já a nobreza no seu todo, mas aquela mais chegada à corte, a que, em França se chamava ‘noblesse de cour’, ‘nobreza da corte’, aquela que está mais perto dela, ocupando lugares por vezes hereditários. Falta de interesse, pensei, mas não é fácil ter interesse pelo que se desconhece em absoluto. Fora dessa tira da sociedade que tinham saído figuras públicas e já históricas, como os duques da Terceira, de Saldanha, como duque de Palmela. Eram conhecidos na sua vida pública, mas nada se sabia da sua vida privada. Havia, é verdade, as Memórias do marquês de Fronteira, as do conde Mafra, e uma ou outra colecção de cartas oficiais, poucas de cartas particulares. E sem estas não se conhece uma sociedade como aquela. Note-se que havia então uma outra ‘boa’ sociedade. Em uma das cartas de Maria Teresa Sousa Botelho ela conta à amiga que se estava a ensaiar um Requiem de Bomtempo, que nela participavam este e aquele, e, acrescenta “algumas senhoras da outra sociedade, mas não sei os nomes”. É desta ‘outra’ sociedade, da alta burguesia, de magistrados, da pequena nobreza que sairá muita da gente que se vai conhecer nos reinados dos reis D. Carlos e D. Manuel. Até aí, aquilo a que se chamava ‘sociedade’, era a que está neste livro. As autoras destas cartas pertenciam intimamente a essa sociedade, era a ocasião de as dar a conhecer e às suas cartas. ~~*~~

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