Por ca chamam-se policiais

>> segunda-feira, 29 de junho de 2009



Nos tempos em que os meninos brincavam, um dos jogos preferidos era “brincar” aos policias e ladrões. Dividia-se o grupo de meninos em policias e ladrões, os ladrões escondiam-se, e os policias faziam o possível por os encontrar. Quem mais ladrões apanhava, era o melhor policia. Às vezes um dos ladrões escondia-se tão bem, que ninguém o encontrava. Os policias esqueciam-se dele, até que ele, farto de esperar, saia do esconderijo e se declarava vencedor, coisa com o que ninguém se importava.
Brincava-se ao que existia na via real. De um lado os ladroes e outros criminosos, do outro, aqueles que tinham a missão de os apanhar. A coisa era tão natural, que não valia a pena escrever sobre ela. Até que um dia, um senhor chamado Conan Doyle inventou um homem chamado Sherlock Holmes. Uma criatura irritantíssima, mas genial, que, quase sem sair da sua casa em 221B Baker Street, com a sua inteligência e poder de dedução, resolvia aquilo que a policia não conseguia resolver. Nascera o detective amador. A polícia só surgia no momento em que havia que prender o criminoso. Então não havia remédio se não chamar a autoridade, chamava-se a polícia, mas os solucionadores dos crimes passaram a ser os detectives amadores.
Proliferaram os sucessores de Sherlock Holmes: Lord Peter Whimsey, Ngaio March, Ellery Queen, Hercule Poirot, Miss Marple, tantos outros. Por cá os livros em que esses heróis actuavam e actuam, chamam-se livros policiais, em Inglaterra chamam-lhe ‘detective stories’, em França ‘policiers’, ou ‘polars’, na América ‘criminals’, na Alemanha ‘Krimis’.
Havia nos primeiros tempos do policial um sub género, em que o primeiro lugar cabia ao criminoso, que não era muito criminoso, era um ladrão muito hábil, ou uma quadrilha de ladrões. O especialista do género era Edgar Wallace, com os suas organizações de criminosos e um matador profissional, que quase sempre era albino. Será que Dan Brown leu Edgar Wallace? Em França houve um Maurice Leblanc, criador de Arsène Lupin. Um ladrão bonito, elegante, simpático, incapaz de ferir, quanto mais matar, e a quem as marquesas e condessas praticamente ofereciam os diademas e os colares de brilhantes. Parece que ainda tem culto em França, ultimamente à míngua de heróis.
Com os anos o tipo do romance policial mudou, a policia voltou a ter o seu lugar no combate aos criminosos, e os métodos de investigação criminal já não se baseiam em deduções intuitivas e mais ou menos lógicas de amadores. Já não são os crimes em torno da xícara de chá, que Miss Marple ou Hercule Poirot, perante o espanto dos polícias, resolviam com inteligência e conhecimento da natureza humana. Agora querem-se coisas mais concretas, e estamos bem servidos. Nos ‘criminals’ americanos não nos poupam nada da investigação: o momento em que a esquadra é notificada, o exame do local do crime e do,, ou dos cadáveres, a morgue e a autópsia e por aí fora, todo o desenrolar prático e até burocrático do processo. E nós leitores ali estamos, atentos e interessados seguindo o policia detective.

Vasco Pulido Valente escreveu um dia, que o policial tem de ser em inglês, que só numa ‘detective story’ achamos perfeitamente natural que se descubra um morto no terceiro ‘green’ de um campo de golfe, coisa que nunca aceitaríamos em um qualquer ‘green’ de campo de golfe português. Não deixa de ter razão. E quem aceitaria em romance policial português que uma senhora bem nascida matasse sucessivamente quatro ou cinco dos seus parentes por causa duma herança? Não que não haja portugueses bem nascidos, que tenham, ou tenham tido, essa mesma vontade, mas por cá a coisa não convencia. Nos livros de Agatha Christie a coisa é corrente, e se não convence, entretêm. Nos ‘criminals’ americanos, também se mata em série, mas aí as mortes não são motivadas por heranças. Nos Estados Unidos trata-se de ‘serial killers’, que matam por gostar de matar. Parece que há quase tantos assassinos em série na América como assassinos à cata de herança em Inglaterra. Pelo menos em ficção.
Evelyn Waugh dizia que uma das melhores coisas dos policiais era que se podiam reler as vezes que desse jeito, já que no mesmo momento que se acabavam de ler, se esquecia quem fizera o què. Assim será, mas para mim o melhor do policial não é o descobrir quem fez o quê. É claro que isso interessa, mas para meu gosto o melhor do livro é o que conduz a essa conclusão. É todo o caminho de raciocínio, de detecção lógica, que leva a encontrar quem fez o quê, e porque o fez. E quanto mais lógica, mais inteligente for a dedução, mais o livro nos prende.
Mas para que este não seja esquecido, como de facto acontece com a maioria dos policiais, é preciso que a história, além do seu interesse intrínseco como caso de polícia ou de detective, seja uma história bem contada. E aí ninguém bate Simenon e os casos do comissário Maigret.
Maigret é um policia a quem a sua profissão coloca diante de casos que qualquer policia do mundo pode ter alguma vez enfrentado ou vir a enfrentar. Nada de fantasioso em Maigret. É um homem simples, consciencioso, bom garfo e bom copo. Nos livros de Maigret acontecem crimes, que são resolvidos de forma profissional por um comissário de policia chamado Jules Maigret. Mas têm qualquer coisa mais. Não são unicamente policiais, ou criminals, ou detective stories, ou polars, ou o que lhes queiram chamar, são óptimas histórias.

O que dizem os outros
“O encanto de ouvir contar uma história é tão natural à natureza humana como o encanto de ver danças e mímicas, de onde nasceu o drama” escreve Somerset Maugham no seu livro ‘The Partial View’. “Que esse encanto existe intacto, provam-no os livros de detectives. São lidos pelas pessoas mais intelectuais, com condescendência, já se vê, mas lêem-nos. E porquê, se não porque a ficção psicológica, pedagógica, analítica, a única que as suas mentes aprovam, não lhes satisfaz aquele desejo inato.”

Observações à margem
Penso que não há escritor que não tenha alguma vez pensado em escrever um romance policial. Já satisfiz esse gosto, não com um livro, mas incluindo em um dos meus livros – um romance histórico - o caso de um crime, e da sua solução. Tratava-se da morte de uma monja ocorrida no dia da eleição de nova abadessa do mosteiro. Era um crime “necessário” para o desenrolar da acção, já que para que fosse eleita aquela monja que de facto –historicamente – foi eleita, era preciso que houvesse uma razão premente para isso, e essa existiria, se deixassem de existir as duas candidatas, que em ficção teriam mais razões para serem eleitas. O que sucederia com a morte de uma e o crime da outra.
Achei graça engendrar o caso e desenvolver o processo de dedução. Apresentei os factos da seguinte maneira: toda a comunidade estava reunida quando se deu pela falta de uma das monjas, justamente uma das candidatas ao cargo. Foram-na procurar, estava caída ao fundo do escada de pedra que conduzia ao claustro. Tropeçara ela e caíra, ou fora empurrada? Por alguém que tinha interesse em que ela não se candidatasse, ou por outra qualquer, por outra possível razão? Todas as monjas usavam o mesmo traje, como se podia saber que fora a ela e não a outra que se empurrara? Uma das monjas - o ‘detective’ da história - chegou à conclusão, que a haver crime só podia ter sido cometido pela monja que tivesse sido a ultima a entrar na sala do capítulo. Qual delas fora, e porque é que só podia ser ela?
Não sei se isso sucede normalmente nos policiais, mas no meu caso, constatei com espanto que, para poder narrar o processo crime e solução do crime, e poder concluir com a solução que se impunha, o raciocínio, teve de partir do fim para o início. A coisa não foi nada fácil.
Depois dessa modesta experiência só posso dizer, que o meu respeito pelos autores de policiais aumentou.

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Zola no supermercado*

>> quarta-feira, 24 de junho de 2009



Depois de tanto comboio, os meus leitores - poucos, mas bons, como um deles teve a amabilidade de afirmar - devem estar fartos da via férrea. Além disso, o ultimo post foi comprido demais, e os ditos poucos, mas pacientes, leitores merecem que não se lhes impinja nova litania de 1600 palavras. Pensei que era boa altura para fazer uma pausa, tanto mais que estava numa fase em que não sabia bem o que havia de escrever. Não sei se a isso se chama ‘writers block’, se falta de ideias. E com essa explicação e um pedido de desculpa me teria hoje ficado, se não fosse terem-me dito ontem no supermercado, que os guardanapos de papel, que costumavam estar junto de rolos de papel, tinham passado para a secção de papelaria. Na outra ponta da loja, portanto.
“Devem ter lido ‘Au Bonheur des Dames’, estes senhores”, pensei. Porque foi nesse livro de Zola que li pela primeira vez desse processo de promover as compras, que é fazer com que o comprador se veja obrigado a passear pela loja ou armazém. Com um fim muito especial em vista: fazer com que a cliente - era na cliente feminina que se pensava - fosse obrigada a passar diante de secções pelas quais de outra maneira não passaria, e isso a tentasse a fazer compras que não teria em mente fazer. Também me lembro do livro quando oiço falar de mulheres que têm o vício da compra, porque Zola criou em Madame Marty e sua filha Valentine os protótipos da compradora compulsiva. E também penso no ‘Bonheur des Dames’ quando se fala do arruinar dos pequenos comerciantes pelas grandes superfícies, porque é disso que o livro fundamentalmente trata.**
Cheguei à conclusão que o leitor a tendência a associar ideias a livros lidos. Porque tem um mundo próprio cheio de figuras e de situações que leu em livros. E assim, nascido prosaicamente no supermercado, encontrei o meu post para hoje.

Observações à margem:
Qual não é o leitor que não gosta de encontrar, escrita por outro, uma frase quase igual àquela que ele uma vez escreveu, ou dito com outras palavras um mesmo sentimento?
Eu tenho uma nesga de terra, metade jardim, metade horta, que criei a partir de um amontoado de lixo, e se o consegui devo-o a um artista que se ignora, um homem reformado que percebe da terra e gosta dela, que se chama António Rodrigues, e de quem muitas vezes digo que vale o seu peso em oiro. Madame de Sévigné tinha um jardim perto de Paris e um homem que trabalhava nele, que se chamava mestre Paulo, e que valia, segundo ela, "son poids d'or" “o seu peso em oiro”.
Madame de Sévigné, tal como eu, seguia com interesse as obras que lhe faziam em casa. Creio que é uma característica especificamente feminina. Artista que me venha desentupir um cano, arranjar uma torneira, colocar uma ficha de electricidade, tem em mim uma atenta companheira. Há tempos tive o senhor Francisco, um habilidoso cá do bairro, a arranjar um autoclismo. Dos antigos, que estão nas alturas. Já se vê que assisti ao trabalho, que passei as ferramentas e comentei interessada o andar da obra. Congratulei-me em carta para a minha filha pelo facto de existir um senhor Francisco empoleirado no escadote, a arranjar um autoclismo. Leio, a respeito de obras que lhe estavam a fazer no telhado da sua casa de campo, que madame de Sévigné - tal como eu segui as habilidades do senhor Francisco - seguia a obra que lhe estavam a fazer no telhado e o comentava com a filha:
"Tenho dez carpinteiros no ar, que me estão a levantar a ‘charpente’, que correm sobre as solivas, que parecem a todo o momento que vão cair, que me fazem mal ao pescoço de tanto os ajudar de baixo.”

E mais uma observação:
Quando um leitor se encontra com um não leitor, os dois quase com certeza não vão falar de livros. Quando dois não leitores se encontram, então é que, com toda a certeza, não se fala de livros. Mas quando dois ou mais leitores se encontram, a conversa, mais tarde ou mais cedo, irá dar a livro ou livros.
Depois do almoço. Presentes: a minha filha, duas sobrinhas e eu. Fala-se de jovens autoras da moda. Críticas ferozes de conhecedoras.
Por vezes a conversa caie sobre livros da infância. Peço a uma das sobrinhas que recite as primeiras linhas das "Meninas Exemplares" da condessa de Ségur - sei que ela as sabe de cor - fá-lo de imediato, e perfeitamente. A outra recorda como chorava sobre a morte de Beth nas Quatro Raparigas. Todas se riem do entusiasmo pelos livros de Max du Veuzit, o ‘máximo do vazio'.
E por aí fora. Sem grande nexo, sem pretensão a intelectualidade, por prazer. Porque todas nós, as novas e a velha, somos leitoras, e todos os leitores têm as suas particulares lembranças de leituras e as suas associações de ideias a livros lidos.
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*Esta artigo estava preparado para segunda-feira, dia 22, e não foi publicado devido a um problema entretanto resolvido.
**Au Bonheur des Dames é um dos 17 volumes dos “les Rougon-Macquart”, a história de uma família francesa através das mudanças sociais do século XIX. ....., o romance conduz o leitor ao mundo dos grandes armazéns, uma das inovações do Segundo Império. (Wikipedia)
Consta que Zola se inspirou para Octave Mouret, o herói do seu livro, na personagem de Auguste Hériot, um dos fundadores dos ‘Grands Magasins du Louvre’. (Wikipedia)

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O comboio na literatura

>> segunda-feira, 15 de junho de 2009

Leitura puxa leitura. Impossível conviver durante uma semana com uma viagem de comboio sem pensar no que foi o comboio na nossa vida, e - principalmente – sem querer saber como se tratou o comboio em literatura.
Quem não se lembra de ter ouvido dizer, ou de ter dito, pelo menos uma vez, o “poucaterra, poucaterra”* à passagem do comboio? Quem não sentiu alguma vez um arrepio ao ouvir na noite o apito do comboio? E entre aqueles que somos leitores, qual de nós não se lembra de história, de livro, em que o comboio figura? A começar pelos livros de criança: a primeira viagem de comboio, as recomendações dos pais instalando os filhos no compartimento. E os Western? A chegada à pequena estação do destino, os assaltos ao comboio, a construção das ‘linhas de ferro´. Ainda releio com gosto ‘Desert Rails’ de L-P. Holmes, que recria um caso verdadeiro: a atribulada construção de uma pequena via férrea no estado de Nevada. E os policiais? Agatha Christie e o ‘4.50 from Paddington’, e o ‘Murder on the Orient Express’, e outros. Nos livros de Simenon, o comissário Maigret começa uma investigação com uma noite mal dormida pela agitação de um companheiro de compartimento, segue um suspeito no comboio, espera na ‘Gare du Nord’ a anunciada chegada de um homem procurado pela policia internacional. As grandes estações de caminho de ferro, com as suas impressionantes coberturas de ferro e vidro, passaram a ser um pano de fundo de muitas histórias. As de Paris figuram em muitos das investigações de Maigret. E na grande literatura? Ana Karenine reflectindo sobre a sua vida ao ritmo do rolar do comboio e por fim, procurando nele a sua via de saída. Em ‘La Bête Humaine’, Zola evoca o mundo do caminho de ferro e a história é vivida ao longo da linha Paris-Le Havre. E na literatura de guerra? Quem conhece a história da Europa Central dos últimos séculos, conhece o papel do comboio nessa literatura. Leu em histórias, memórias e romances das despedidas dos soldados nas estações, dos últimos adeus, leu da construção e reparação das vias de comboio pelos soldados especializados. Na literatura russa o comboio é uma constante, e na recente, quem não leu dos comboios levando os prisioneiros políticos e de guerra, à mistura com os criminosos, para os campos do ‘Gulag’?
Não fiquei espantada com a imensa bibliografia que existe sobre o comboio. Não me espantou também que houvesse inúmeras obras sobre a construção dos comboios, sobre a difícil implantação das estações de caminho de ferro nas cidades, e sobre todos os outros aspectos práticos da questão. Sabia também que era grande o número de obras literárias em que o comboio é o elemento de fundo, algumas eram conhecidas minhas. O que me espantou foi o grande e espalhado interesse pelo tema “o comboio na literatura”. Pensamos sempre que somos nós os únicos a ter deterrminada ideia.
Em artigo, no qual trata do impacto do comboio na moderna imaginação literária, o italiano Remo Ceserani, ele próprio autor de um livro sobre o tema, cita autores alemães, ingleses e franceses que se ocuparam do mesmo tema. Al Barton, um autor americano, resumiu o caso num seu artigo:
“O comboio tocava a toda a gente, por ser a “de facto” maneira de viajar. Nas duas guerras mundiais o comboio teve papel vital, transportando com característica eficiência bens, alimentos, cpmbustivel, armas, soldados e civis. ..............
Resumindo, o comboio era abundante fonte de caracteres, de aventura, de romance, de malandrice e de heroísmo – o material de que se constroem as histórias....................”**
E para ainda meter a minha colherada: havia evidentemente a omni presença do comboio, era o meio de transporte por excelência, tanto servia a recôndita aldeia, como atravessava os continentes. E depois havia na viagem de comboio um misto de intimidade, de aventura e de nostalgia, que não se encontrava em nenhum outro transporte. Os pequenos compartimentos de seis pessoas, três de cada lado, sentadas face a face, convidavam à convivialidade. Havia poesia nas pequenas estações de província e nas grandes estações com as suas gigantescas coberturas de vidro e aço, havia poesia nos nomes dos comboios das grandes linhas: Orient Express, Transiberiano, Simplon Express, Transcontinental. Será heresia, dizer que a viagem de comboio tinha mais de viagem do que tem hoje a viagem de avião? Parece-me que não.

O que eles disseram:
Em criança no comboio
“Quando em criança viajávamos – e desde muito pequenas que fomos sozinhas de comboio em visitas à família - íamos muito cedo para a estação para apanharmos um bom lugar. A nossa mãe sabia muito bem que ficávamos de trombas – agora dir-se-ia frustradas – se não tivéssemos cada uma o seu lugar à janela, e que haveria briga certa se houvesse só um. Eram precisos dois lugares à janela e para isso tínhamos de estar no cais antes da chegada do comboio------
Depois havia as recomendações: - comer o nosso lanche, mas não começar logo que o comboio se pusesse em andamento, não abrir as portas e de maneira nenhuma olhar pela janela em direcção da marcha do comboio, não aceitar nada de um estranho, não se deixar interrogar por ninguém, não trancar por dentro a porta do WC, melhor ficar uma de fora a tomar conta. Tudo isto dito no cais e repetido pela janela aberta do compartimento”
Heilwig v. der Mehden Schoen ist es auch anderswo

-- “De resto os seus companheiros de compartimento inspiravam confiança e não pareciam ladrões nem assassinos. Ao lado do homem que respirava com tanto barulho, estava sentada uma mulher que fazia um xale de croché. Num canto junto da janela e ao lado de Emílio um senhor de chapéu de coco lia o jornal”
Erich Kaestner Emílio e os detectives

No compartimento
--“Hasta aqui he ido solo em el departamento. En Paredes suben tres monjas, tres hermanas de la Caridad. Una es jóven, palida, escrufulosa. Otra, de mediana idad, con tes y perfil anglosaxones. La tercera a quien ambas atienden, es vieja….. Debe ser esta monja una alta autoridad en su Orden, Por lo que habla, una visitadora, que va de hospital en hospital, inspecionando los pequeños destacamentos de este exercito tan noble……..
Logo pergunta:
--Que dia es hoy?
--Dieciseis de Julio, le contestan
Y da un hondo suspiro, mira la lejania y dice:
--Pues esta mañana, a las cinco, han hecho cuarenta y nove años que sali de mi casa para ir al convento. Qué mañana!”
José OEREGA Y GASSET El Espectador

A Estação
-- “…em poucos minutos o comboio passava a desgraça da suburbia de Londres. Na carruagem, todos de alerta, esperavam o momento de escapar. Finalmente lá estavam sob o grande arco da estação, na tremenda sombra da cidade”
D.H.LAWRENCW Women in Love

-- “ Apesar da monumental cobertura de vidro, os cais da ‘Gare du Nord’ eram varridos pelas borrascas. Vidros caídos do teto tinham-se partido sobre os carris. A electricidade funcionava mal. A gente apertava-se nos agasalhos. Diante dum guichet os viajantes lia-se um aviso pouco tranquilizador: “Tempestade no canal da Mancha”
………..
“A luz amarela do comboio surgiu ao longe. Depois foi o barulho, os gritos dos ‘porteurs’, o laborioso andar dos viajantes em direcção à saída”
Georges SIMENON Pierre-le-Letton

--“ – Ambos em pé, às janelas, esperámos com alvoroço a pequenina estação de Tormes, termo ditoso das nossas provações. Ela apareceu enfim, clara e simples, à beira do rio, entre rochas, com os seus vistosos girassóis enchendo um jardinzinho breve, as duas altas figueiras assombreando o pátio, e por trás a serra coberta de velho e denso arvoredo.. Logo na plataforma avistei com gosto a imensa barriga, as bochechas menineiras do chefe da estação, o louro Pimenta…”
EÇA DE QUEIROZ A Cidade e as Serras

O maquinista
“Jacques ............ não perdia a linha de vista, debruçando-se a todo o momento fora do vidro de protecção para melhor ver. Rudemente sacudido pela trepidação, sem mesmo ter consciência disso, tinha a mão direita sobre o manípulo da mudança de velocidades como um piloto a roda do leme. Manobrava-o com um movimento insensível e contínuo, moderando e acelerando o andamento, e com a mão esquerda não deixava de puxar o cordão do apito, porque a saída de Paris é difícil e cheia de emboscadas. Apitava às passagens de nível, aos túneis, às grandes curvas. Ao cair da noite, avistando ao longe um sinal vermelho, pediu longamente a via livre e passou como um trovão.....”.
Émile ZOLA La Bête Humaine

Guerra
16 de Julho 1870
“De repente veio a notícia que estava declarada a guerra entre a França e a Prússia…. Muita gente nas ruas, debatendo, aconselhando-se, os comboios que chegavam tomados de assalto pelos que ansiavam por ir ocupar os seus postos”
Ottilie WILDERMUTH Leben

O Quartel General do Grão Duque Nicolas na frente da Prússia Oriental
“No interior, a disposição da carruagem havia sido modificada. Entraram num escritório que ia de uma janela à outra, com o chão coberto de um tapete oriental, uma mesa de trabalho, uma pele de urso na parede, uma panóplia de armas (uma oferta), alguns icons e um retrato do soberano.”

Vorotyntsev trouxera notícias da frente, e em particular de um grave erro cometido
“A carruagem do grâo duque devia se ter erguido sobre si mesma perante tal relato, todo o comboio imobilizado devia ter entrado em transe! Mas não. Nada mudou, e um resto de chá no fundo do copo não se agitou.”
Alexander SOLJENITZYNE La Roue Rouge Acte Premier. 1914

Outros passageiros, outras viagens
“O Stolypin era uma vulgar carruagem com oito compartimentos, cinco deles para os prisioneiros, três para os guardas”.
“…, os passageiros do Stolypin distinguiam-se dos outros passageiros do comboio pelo facto de ignorarem para onde era a sua viagem e onde ela terminava…………
No verão ouviam o alto-falante: --O comboio Moscovo Ufa parte dentro de três minutos…..passageiros para Tachkent por favor para o cais número três.
Os conhecedores dos dados geográficos do Arquipélago esclareciam os companheiros: --Workuta ou Petchova não são, para lá vai-se por Jaroslaw, os campos de Kirow e Gorki também não. ……..
--O comboio para Novosibirsk parte dentro de cinco minutos. Era o nosso. Mas que queria isso dizer? Nada, por enquanto. Tanto podíamos ir para os campos do Wolga Central, como para os do Ural. Para as minas de cobre de Dacheskasgan, como para Taichet………Toda a Sibéria esperava por nós. E a Kolyma pertencia-nos. E Norilsk também.”
Alexander Soljénitsyne Der Archipel Gulag

O apitar do comboio
“A cada estação
a cada centena de dormentes
saía um poema na forma de canção
Para o doce deleite dos presentes
E lá na frente
o maquinista Marcelino
jogava lenha na fornalha”

APITA COMBOIO. 4ª parte da viagem do trem encantado de Marcelino, chegada à Costa da Caparica em Portugal
O blogue de Dirceu Marcelino

*”Penso que "poucaterra poucaterra" é uma onomatopeia, em que é imitado o som produzido pelo rodado do combóio à passagem dos intervalos entre os rails” Paulo Achmann.
** Al Barton "Fiction: The Truth Be Told."

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Livros de Viagem. Através dos Estados Unidos no ‘Great Pacific Railroad’. Fim

>> segunda-feira, 8 de junho de 2009




“A vista de S. Francisco é feiíssima”. É essa a primeira impressão de Maria Theresa, mas depois emenda: “não percebo como, parece feio, quando não é nada. Infelizmente chegámos aqui ao meio dia por virmos atrasados imensíssimo, de modo que não pudemos ouvir missa. ............ Os ‘carros americanos’ aqui são como os de Chicago, postos em movimento como os do elevador da Glória. É muito ratão ver andar uma quantidade de carros, sem se verem puxados por animais; em geral vão dois ou três carros juntos, uns, fechados como os nossos, outros, abertos. Estes últimos têm um corredor ao meio e ao comprido onde está o homem que faz parar e andar o ‘americano’, e dos dois lados há uma linha de bancos em que se está com as pernas para a rua; percebeu a minha explicação? Metemo-nos ontem num dos abertos, e passámos por uma grande parte da cidade. ........Do ‘americano’ passámos para um caminho de ferro, que tem carros abertos e nos levou em vinte minutos à ‘Ocean Beach’ ou ‘Cliff House’.* que me fez lembrar Gibalta*pela situação. ......Em ‘Cliff House’ estava ‘le pouvoir du monde’ a ver o Boyton e as focas, que era o que nós íamos ver. Há dúzias delas, encarrapitadas nos rochedos, fazendo uma tal quantidade de movimentos com a cabeça para diante e para trás que fazem efeito de estarem a fazer cortesias. É muito engraçado.
4 de Maio 1886. Viagem à China em 3 horas. Posso dizer que estive no Império Celeste, pois quem vai ao bairro dos chineses vê a China em pequeno. ...... Fomos com o cônsul português; entrámos numa botica chinesa, conhecida do cônsul; é linda, as portas todas douradas e tudo limpíssimo. Nos tetos estão suspensas lanternas douradas por eles, ao balcão estava então o farmacêutico fazendo os seus remédios. Neste bairro não se vê senão chineses. Sabe quantos há em S. Francisco? Uns 40.000, mas vivem num espaço em que viveriam brancos em número duas ou três vezes menor, pois nós passámos por uma casa, que lhes serve de hotel, e onde estão 1000 pessoas, me parece, e onde caberiam talvez pouco mais de 100 brancos. Mas a razão é que eles em cada quarto fazem duas ou três ordens de andares e aí vivem encarrapitados uns por cima dos outros como sardinha em pilha.”
Os dois turistas tomaran chá à moda chinesa e com um chinês, que andara com eles desde a botica. “Que delícia de chá verde!” Maria Theresa fizera a operação dificílima de deitar o chá para a xícara muito bem e sem se escaldar. “apanhei um elogio do chinês, que não o fez ao papá, que se escaldou e entornou chá. .........”
No dia 4 de Maio foram ao Golden Gate Park, no dia 5 deram um passeio de carruagem com o cônsul português e a mulher, “ao todo 20 léguas, o passeio foi lindo, mas assaz cansado”.
No dia 6, os viajantes vêem fundir oiro e chumbo “A prata já tinham fundido mais cedo, mas vi-a depois em barras enormes e em tal quantidade espalhadas pelo quarto como se fossem batatas ou laranjas ou outra qualquer coisa de pouco valor. Não sei explicar como se faz, o que sei é que se deita em fornalhas em brasa e depois põe-se dentro dumas formas. O oiro depois de consolidado é uma beleza...... Tenho um bocadinho de pedra com algum oiro entremeado, que me deu um dos homens”.
No dia 7 de Maio pai e filha iniciam a viagem de regresso, vão pela linha do Sul e ainda não sabem se irão ao México. Em El Paso é que se há-de decidir.
“El Paso é uma cidade pequena que separa a fronteira americana do México. Daí partem os comboios para a cidade de México. Se o preço dos bilhetes for ao nosso alcance, iremos ver aquele país tão famoso. .......... O país é lindo, vinhas por toda a parte, sem lhe faltar uma cepa, algumas são da grossura duma árvore. Esta manhã passámos por uma verdadeira mata de cactos, principiam por aparecer pequenos, depois um pouco maiores, e pouco a pouco vêm aumentando até haver milhares do tamanho duma árvore; depois vão diminuindo até desaparecerem de todo. Chamam-se ‘Jucca’ e dão uma fruta parecida com banana. Jantámos em Los Angeles, que é bastante grande.”
Ao atravessarem o Arizona pai e filha escrevem cartas que esperam deitar no correio num local chamado "Lisboa" por onde irão passar,
Afinal a tal Lisboa compunha-se “dum barrote espetado no chão com um letreiro em que se lê ‘Lisbon’ a distância a S. Francisco tanto, a el Paso tanto etc. ....pode ser que para o futuro venha a ser um importante centro de povoação e venha a competir com a sua velha homóloga, comenta João Ferrão em carta à sua mulher, e acrescenta:
“Não foi perdido o tempo que estive em S. Francisco. Trouxe de lá informações que podem ser úteis ao nosso país...............Não se passarão muitos anos que a Europa encontre nos vinhos da Califórnia um rival tão poderoso e temível como o têm sido os trigos do Illinois e do Indiana. Na Europa julga-se que são imbebíveis esses vinhos, pois posso por experiência dizer que já os há óptimos.............”
Decidiram-se pela ida ao México “Não me permitem os meus velhos instintos de vagabundagem perder uma ocasião que talvez nunca mais me apareça. Depois de alguma hesitação pusemo-nos outra vez a caminho, aproveitando a facilidade que dão os bilhetes americanos de se parar onde se quer e todo o tempo que se quer, e não perdendo por isso os que tínhamos tomado em S. Francisco para S. Luís. As distâncias aqui são tão grandes, são tão económicas e tão cómodas as viagens, que não nos pareceu nada acrescentar mais 4000 quilómetros aos 10000 da viagem de S. Francisco............”.
Como à sua mulher decerto nada interessaria tanto como o que se referisse à filha, ele repete o que já dissera: não havia melhor companheira de viagem. “Não sabe o que é cansaço, dorme as suas 8 horas a fio e as três comidas fortes que aqui são usadas não são demais para ela”.... “o humor é sempre óptimo, nunca vi génio mais igual, com menos exigências. Quando pode, não perde, já se vê, ocasião para as orações......É impossível, repito, ser melhor e mais fina, e quando digo isto o elogio é principalmente para ti, a quem decerto os nossos filhos devem necessariamente o que são, porque a minha vida atribulada pouco ou nada me tem deixado ocupar da educação deles”.
A 20 de Maio, pai e filha estão de regresso aos Estado Unidos.
“21 de Maio 1886. Texas. Tinha tenção de escrever ontem, mas tivemos um dia tão aventuroso que não tive mesmo ânimo nenhum para pegar no lápis; mais adiante contarei o que nos aconteceu. Partimos de México (tem-me custado a decidir a dizer de México em lugar do México, mas é assim que deve ser. Falando-se do país, é que se diz do México, mas lembra-me sempre a D. Maria a dizer: “fui a palácio”) no domingo, 16, à noite, e pela mesma linha. Pelo facto de ter chuviscado um pouco, o que não acontecera no norte do México há perto de três anos, pareceu-nos o país um poucochinho mais bonito. Chegámos a El Paso na manhã de quarta-feira; de dia voltámos ao México, a El Paso del Norte, para comprarmos umas garrafas de vinho feito lá, e que o papá desejava provar. Entrámos na igreja que estava aberta e onde estavam fazendo o Mês de Maria. A igreja é pequena mas antiquíssima, o teto é de madeira escura bem trabalhada, o que são também as grades do coro, mas infelizmente pintaram-as de branco. Estava bastante gente para uma povoação tão pequena. Que tristeza, quando se pensa que na nossa terra não há uma igreja aberta de dia nem mesmo ao domingo, e que se resume o culto a uma missa de 10 minutos.
Fomos para o ‘sleeping car’ às 2 e meia da manhã........Até ontem ao meio dia não vimos senão descampado, horrendo, seco como um carapau; a essa hora teve-se aviso que estava um comboio de mercadorias descarrilado na frente; duas horas ou três era o mais que imaginávamos ter que esperar, mas faça ideia que não nos mexemos senão às 10 da noite ou mais mesmo.
Durante o dia o calor foi atroz, a seca igualmente, e a fome e sede não pequenas; felizmente tínhamos já almoçado antes, porque não comemos depois senão um pouco de presunto e pão que havia no mesmo comboio. O jantar ficou no tinteiro, pois onde devíamos chegar às 4 para jantar, chegámos à meia noite, e esta manhã almocámos às 8 onde devíamos ter chegado às 7 da manhã. Para mais ajuda, já não havia água para a máquina, de modo que também tivemos de estar à espera que viesse água de longe, e a de beber também estava esgotada. O papá foi a única pessoa que pensou em pôr água dentro duma botija pequena que levávamos, para de vez em quando beber um nico d'água e eu outro. Enfim, depois de termos esperado por tudo quanto há, que passassem dois comboios, que se arranjasse a linha etc, pusemo-nos em marcha, mas em resultado disto chegamos a S. Luís no domingo de manhã em vez de chegar hoje à tarde, sábado. ...........
22 de Maio. Arkansas. Ó maman, que beleza que tem hoje sido o dia todo e parte do de ontem! O que a maman gostaria de ver a floresta que nós principiámos a atravessar ontem ao meio dia e na qual ainda estamos! (quatro da tarde) É uma floresta virgem, a coisa mais bonita que se possa imaginar, composta de árvores altíssimas e grossíssimas, juntas umas às outras dum verde variadíssimo; várias vezes temos passado por cima de uns rios lindos com as bordas cheias de verdura da mesma mata. Não há consolação quando se pensa que daqui a uns anos talvez já não exista uma árvore, pois já estão cortando imensas para poderem cultivar a terra.
Jantámos ontem pessimamente, mas não admira muito porque não éramos esperados e comprámos ceia onde devíamos ter almoçado de manhã, e hoje almoçamos na estação em que devíamos ter ceado ontem”.
*Gibalta. Alto entre Caxias e Boa Viagem, onde a família Mascarenhas tinha uma casa.

Pedido de informação:
Alguém me sabe dizer se o “pouca terra, pouca terra”, que se dizia às crianças ao ver passar o comboio, é um simples dito popular, ou se é tirado de texto literário?

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Livros de Viagem. Através dos Estados Unidos no ‘Great Pacific Railroad’. Contªº

>> sexta-feira, 5 de junho de 2009



Continuação

“Pelas duas começou-se a avistar uma cadeia de montanhas altíssimas cobertas de neve de alto a baixo e brilhando tanto com os raios de sol, que a vista não era inferior, diz o papá, a alguns dos Alpes. Mas pelas 4 horas chegou a recompensa do desapontamento da manhã e da tarde anterior: que beleza, que grandioso, que esplêndido, que encanto e todas as mais expressões lisonjeiras que queiram! Fomos para a plataforma e, como sempre, os primeiros. É impossível descrever. Imaginem montanhas que parecem chegar ao céu, cobertas de neve, deixando de vez em quando aparecer a cabeça dos pinheiros. Depois, rochedos suspensos por artes breliques breloques com uns feitios muito ratões. Uma das coisas mais curiosas naqueles desfiladeiros estreitíssimos é numa montanha muito alta haver um buraco muito fundo desde cima até abaixo, e, dos dois lados, tem dois muros de pedra que parecem ter sido feitos de propósito. Chamam a este buraco: ‘Devil slide’. A beleza que é, depois de sair dum dos túneis, ver, ou as serras por cima da cabeça, se pode dizer, e deixando apenas espaço para se passar, ou então, as torrentes de água saindo dumas grutas e passando para o outro lado por baixo da linha. Não se imagina. Depois de sairmos do último túnel, e o mais célebre, ‘Weber Canon’, entra-se num vale verdíssimo com montes brancos dos lados, e no fim vê-se Ogden, uma cidade dos mormons.
Ogden é muito pequena, mas bonita pela sua situação aos pés dos montes. Vimos aí um homem completamente vestido de branco e com uma espécie de turbante na cabeça que decerto era um dos santos porque temos ideia que alguns deles andam vestidos dessa cor inocente. Também em Ogden vimos um chinês de rabicho caído; era enorme, grossíssimo e atado nas pontas que chegavam a baixo dos joelhos com uma fita preta. Em New York tenho visto bastantes, mas todos trazem o seu querido rabichão enrolado à roda da cabeça.
Saímos d'Ogden com uma hora de atraso por estarmos à espera dum comboio que vinha atrasado, de maneira que não pudemos chegar de dia a Salt Lake. Agora, para ganhar o tempo, estamos andando num tal galope que não posso quase escrever. Como nós descemos as rampas das montanhas rochenses (!) quanto a máquina podia, mas nem por isso deixámos de ver o bonito espectáculo de ontem à tarde.
Esquecia-me dizer que vimos também em Ogden um índio e uma índia. Que figuras! E hoje na estação onde almoçámos vimos imensos: são encarnadíssimos e parecendo muito fortes, uns trazem chapéus de palha com uma grande pena espetada, outros chapéus parecendo tampos de cestos cobertos de paninho encarnado; todos os que vi andam vestidos como toda a gente, só com a diferença de ser esfarrapado e sujíssimo. Alguns têm umas mantas de cores vistosas por cima do fato. Uma mulher tinha uma criança metida numa ‘hotte’ de madeira; não foi possível consentir em ver a criança, apesar de se lhe dar por umas poucas de vezes dinheiro (era o que ela queria); a pobre criaturinha estava metida dentro da tal caixa de madeira de feitio de ‘hotte’ tão amarrada e enrolada que não se podia de todo perceber onde ela tinha a cabeça, mas depois de voltar para dentro vi-a deitar a cabeça fora dos trapicalhos; já era bastante grande. Entramos logo na Sierra Nevada. O tempo lindo.
S. Francisco 3 de Maio 1886
Jantámos antes de ontem em Humboldt, um oásis no meio do deserto. Humboldt tem talvez uma dúzia de casas ou menos mas o ‘restaurant’ é grande e a comida óptima, a água é abundantíssima, de modo que aquele lugar está coberto de erva e árvores; quem dirá que é a mesma terra árida que vimos desde manhã que produz toda aquela verdura, a água faz esse milagre. Passámos ao pé do lago Humboldt, estreito, mas muito comprido e duma cor linda. Ao pé do lago estavam imensos índios, uma mulher andava com um filho às costas e duas pequenas estavam brincando com duas bonecas de trapos metidas numas ‘hottes’ pequenas, mas de palha. O papá estava com vontade de comprar este brinquedo índio, mas afinal não o fez. À noite entrámos na Sierra Nevada; como vínhamos com perto de 3 horas de atraso, passámos às 3 horas e meia da manhã pelos pontos bonitos. O papá, que não dormiu nada nessa noite, levantou-se às 2 e meia, mas os ‘socastes’ (corredores de madeira que fazem em pontos onde há perigo de avalanche) sucedem-se uns aos outros com tão pouco intervalo que nada se pode distinguir. Às 4 foi-me o papá chamar, como eu lhe tinha pedido, porque já havia luz, e a vista já principiava a ser bonita. Descemos de escantilhão aquelas serras cobertas de árvores e de flores, que têm precipícios enormes. Sabe como é feita a linha sua conhecida? Como não puderam fazer o caminho na serra por causa da dureza da rocha, fixaram-no por fora: uns paus enterrados no chão e que na altura da linha foram encaixados na rocha por homens suspensos por cordas sustentam os rails*. A vista desse ponto tão seguro é tudo quanto há de mais bonito.
Depois de passar as serras altas, entra-se na Califórnia que é um verdadeiro parque, por toda a parte se vêem vinhas, pomares, casas de madeira muito engraçadas, com trepadeiras de cima até a baixo e jardins à roda com imensas árvores; enfim, é lindo este país, o papá acha parecido com o nosso Minho. Às 9 almoçámos no Sacramento, que pouco se vê do comboio; pouco depois vê-se o Pacífico e depois a baía, que forma como uns poucos de lagos estreitando e alargando umas poucas de vezes. É muito bonita. Em Oakland, uma cidade diante de S. Francisco passámos para um ‘ferry boat’ .

* Este ‘cabo’ era uma parede rochosa de 2.700 pés de altura, que subia a pique do ‘American River’ e que praticamente não oferecia um único ponto de apoio. Mas os chineses teceram grandes cestos de vime, marcaram-nos com sinais coloridos para afastar os espíritos, e ao apito anunciando o nascer do sol, marchavam silenciosamente para o topo do abismo. Nos paus de bambu de transporte de carga, levavam em uma das pontas os seus cestos e na outra ponta barris com chá. Eram baixados centenas de pés ao longo do penhasco nos seus cestos, cortavam lascas da rocha, formando as pequenas cavidades onde inseriam pólvora negra, depois trepavam lestamente pelas cordas acima até ao topo, puxando os seus cestos atrás de si. (traduzº de transcontinental_rr.ppt ) Continua na Segunda-feira, 8

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Livros de Viagem. Através dos Estados Unidos no ‘Great Pacific Railroad’. Contªº

>> quarta-feira, 3 de junho de 2009




“Ontem, 27, chegámos a Chicago às 8 e meia da manhã. Antes de entrar na cidade costeia-se durante meia hora talvez o lago Michigan, que parece o Oceano pelo tamanho. Fomos deixar as bagagens à estação onde devíamos embarcar à noite, e depois de almoçarmos pusemo-nos a percorrer a cidade sem parar um instante. Parece incrível que em meia dúzia de anos se possa fazer uma tão bela cidade como Chicago é hoje. O pavimento das ruas é um horror como o de New York, mas há edifícios soberbos, entre outros o da Câmara é esplêndido. Metemo-nos no americano, fomos a Lincoln Park, que é o melhor da cidade e dizem mesmo da América; está situado sobre o Michigan, é muito grande e bem traçado, as árvores já têm bastantes folhas e o gazon dos canteiros está agora verdíssimo. Em suma, achámos este parque superior ao Central-Park de New York. Vimos por fora o edifício onde estão as máquinas e o túnel que traz água do fundo do lago (para ser mais pura) para Chicago. Não entrámos dentro por ignorarmos o que se pagava, mas também, não se vendo o túnel, não valia a pena ir ver as máquinas, o que vimos por fora menos mal. Foi só para dizermos que tínhamos visto os ‘water works’ de Chicago. Depois fomos à catedral, que é bonita, mas não tem nada de especial. Queríamos ir ver uma igreja que dizem muito bonita, mas por causa dum engano de americano achámo-nos bem longe dela, e já era tão noite que não tivemos pernas que nos levassem lá, todo o dia não tínhamos parado. Jantámos na estação e, às 9 e meia, fomos para o ‘sleeping car’ esperar que o comboio partisse às 10 e meia. Depois de estar deitada ainda vi uma cidade bastante grande, que atravessámos pelo meio sem o menor cumprimento. Aqui consideram o vapor como um cavalo qualquer.
Almoçámos hoje, 28, no comboio e temos passado o dia nas famosas ‘prairies’ do centro da América que dizem tão feias; não temos achado isso, não são tão planas como se diz, e o campo é tão verde e a terra parece tão rica que faz gosto ver. O papá tem estado encantado com a fertilidade e riqueza do solo. Além disso ainda há muitas florestas com pequenos rios cortando-os a cada minuto. São mais de cinco horas da tarde e ainda não acabámos de passar estes campos. Só vendo, se faz ideia do tamanho deste país, que os americanos chamam o mundo, pois quando perguntam a alguém de que estado é, perguntam: "de que parte do mundo é você?"
Chegamos a Counsil-bluff sobre o Missouri à noite. Estamos lá uma hora e depois seguimos para diante. Infelizmente os pontos mais bonitos e mais altos das Montanhas Rochosas e Sierra Nevada passamo-os de noite. A maman lembra-se de ver num livro do papá uma vista da Sierra Nevada, em que o caminho de ferro passa quase em cima do monte a 4000 m de altura e dá uma volta curva e que a maman não quis continuar a ver? Pois passamos por aí de noite. Mas como o papá quer ver esses pontos altos, à volta voltamos pela mesma linha para os ver então de dia e depois vamos mais pelo sul para ver as ‘Mamouth Caves’. (Nota: 2 de Junho New York. Afinal vimos tudo de dia à ida)
Os bilhetes de ida para S. Francisco custaram 28 dollars em vez de 160, mas soubemos que tinham subido a 72, de modo que à volta não tomamos bilhetes directamente para New York, mas só até Washington, me parece que é, e depois compramos então ‘excursion tickets’ que são muito mais baratos. Não podemos ir ao Niágara de passagem para S. Francisco como imaginávamos, mas é fácil ir depois mais tarde de New York. Pode-se ir e voltar em dois dias.
Quinta feira, 29, à tarde.
Chegámos ontem a Counsil-bluffs às 6 e meia e vou contar um episódio curioso e engraçadíssimo. Na hora que ali estivemos havia muitas coisas a fazer: cear, compra de bilhetes para o ‘sleeping-car’, e troca dos caminhos de ferro, e despachar as nossas bagagens que o tinham sido só até ali. Nesta terra, em qualquer estação que parece insignificante, há tanto movimento como em Lisboa. Não digo mais para não se “escandalizarem”. Milhares de malas havia ontem no quarto das bagagens, e apesar de estar tudo muito bem organizado sempre leva tempo. Como o papá se demorou na compra dos bilhetes, já tínhamos dito o número das nossas coisas quando o papá chegou, e por mais que dissesse, que estava vendo as malas, e que partia daqui a minutos não havia meio de o atenderem. Mas, por felicidade, ao pé do papá estava uma senhora a quem tinha acontecido o mesmo, e a quem serviram logo assim como todas as outras. O papá, vendo isto, corre chamar-me para ver se conseguia o que se queria. Foi ‘l'affaire d'un instant’. Rimos depois imenso desta aventura; aqui são polidíssimos com as sanhoras. Daqui em diante ponho-me à frente quando houver qualquer dificuldade, mas também teve graça o homem das malas não querer ouvir as respostas que o papá fazia às perguntas dele, mas esperar que eu respondesse.
Atravessámos o Missouri - que nesse ponto é larguíssimo - numa ponte que parece de papelão. Esta manhã almoçámos bastante bem numa estação e jantámos às 7 e meia em Sidney. Continua a prairie, mas menos bonita por ser completamente plana, o que faz parecer um mar. Assim mesmo é bastante povoada, nunca se deixa de ver ao pé ou ao longe casinhotas de imigrantes e o gado é abundantíssimo, mas assaz feio. Decerto sabe que nestas regiões há uma quantidade de cães bravos muito curiosos a que chamam ‘prairie dogs’, temos visto imensos. Fazem uns montinhos como as formigas (são do tamanho dum esquilo) e aí se metem nos buracos que estão feitos no meio dos montes. São cinzentos e parecem focas; quase todos estão em cima das suas ‘tanières’ sobre as patas detrás, é engraçadíssimo. Em cada buraco há uma coruja e dizem também uma serpente que vive com eles; é ratão. O papá, lendo o que eu escrevi até agora, deu-lhe vontade de rir eu dizer, que não é nada ir de New York ao Niágara, e diz que a maman decerto vai dizer que eu estou uma americana; não estou, nem nunca o virei a ser, esteja certa, mas na verdade o modo de viajar é tão cómodo que dois dias de caminho de ferro nada cansam. Já estamos aqui há quase cinco dias e não sentimos o menor incómodo, a comida, ou dentro, ou na estação, é boa geralmente, as camas são óptimas, e de dia está-se o mais confortável possível: uns lêem, outros trabalham e conversam, outros põem almofadas nos canapés, que de noite se transformam em camas, e fazem o seu sono, alguns escrevem - o que eu estou fazendo agora - sobre uma mesa que se arma no intervalo dos canapés. Para distrair vem a cada instante um homensinho vender laranjas, bananas, barretes de viagem para homens, jornais, revistas etc. Não há nada que o infeliz não ofereça ao viajante, mas só jornais tem vendido, de resto só vendeu um livro a uma senhora e um guia e duas bananas a nós. Também não admira muito que não faça bom negócio, faça ideia que três laranjas custam 25 cents, isto é 225 reis, e tudo mais em proporção. Desde Chicago tem vindo connosco uma senhora americana com quem temos conversado; vai para Salt Lake City, o que nos fez imaginar que ela era uma das noivas do Brigham Young*, mas depois, pela conversa e pelo bilhete, vimos que não. Tivemos ontem durante o jantar uma trovoada bem boa, mas fora isso temos tido um tempo lindo e o céu parece de Lisboa. São quase 4 horas, estamos a avistar as Montanhas Rochosas, vou-me pôr a ver. “
1 de Maio 1886
É sem igual o desapontamento que tivémos com a primeira parte das montanhas que, como disse, principiámos a ver antes d'ontem. Como já há dois dias estávamos subindo, os primeiros montes não faziam efeito algum, nem uma árvore ou uma ervinha era visível. Só pelas 8 horas da noite principiámos a ver os montes cobertos de neve e a juntarem-se uns aos outros. Fomos para a plataforma e durante meia hora talvez, foi linda a vista; passámos por uma ponte chamada Dale Creek Bridge**, que não tem a largura senão a necessária para por os rails e rodeada dos dois lados de precipícios enormes cobertos de neve e de pinheiros, assim como alguns montes pequenos ao pé. Depois começaram os montes a desaparecer, e achámo-nos de novo na planície apesar de estarmos a uma elevação imensa acima do nível do mar. Toda a manhã de ontem foi feia, a aridez dos montes não pode ser maior, mas têm uns feitios os mais curiosos possível, tanto os montes como os rochedos. Uns parecem ruínas de castelos, outros colunas, esfinges, leões deitados e mil outros feitios muito estrambólicos.
* Brigham Young era o presidente da igreja de “Latter Day Saint’s” da seita Mórmon. Os mormons praticavam poligamia, e a Brigham Young são atribuídas 55 mulheres, tendo 57 filhos de 16 delas.
**A ponte tinha 200 m de comprimento e 38m de altura no seu ponto mais alto. Originalmente construida em Madeira, foi depois substituida por uma estrutura de ferro. Era a passagem mais perigosa em toda a linha. (Wikipeda)

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Livros de Viagem. Atraves dos Estados Unidos no 'Great Pacific Railroad'

>> segunda-feira, 1 de junho de 2009




Em meados do século XIX inicia-se a era da viagem do comboio. A novidade era naturalmente comentada em cartas e conversas, mas havia viagens que mereciam um pouco mais, e, quando em 1886, uma rapariga portuguesa da minha família foi com o pai aos Estados Unidos, e o acompanhou numa viagem no ‘Great Pacific Railroad’, que os levou de Nova-York à costa do Pacífico, o caso foi digno de ser recordado em diário.
A par das cartas que ela então escrevia e deitava no correio em todos os pontos em que isso era fazível, Maria Theresa, a rapariga em questão, - bem à moda do tempo - ia redigindo o seu ‘diário de viagem’, que depois passará a limpo e enviará à mãe.
Consultei o site do “Central Pacific Railroad Photographic History Museum”. para saber o que se tinha escrito sobre aquele famoso comboio. Há inúmeros livros sobre a construção da via férrea, as suas enormes dificuldades, os problemas de engenharia de construção, e de mão de obra, mas não são muitos os testemunhos dos primeiros viajantes, e pouquíssimos os de mulheres. Menciona-se um pequeno caderno, o diário de bordo, chamemos-lhe assim, de Gretchen Schaeffer, uma rapariga alemã de 21 anos, que ia procurar trabalho na Califórnia. Vai fazendo curtos apontamentos diários sobre as distâncias percorridas, sobre paisagem e passageiros, explica como de duas cadeiras se fazia uma cama. Pouco mais.
O outro testemunho da viagem, esse impresso, é um artigo publicado na revista Scribners Monthly em Maio de 1873, no qual a autora, Susan Coolidge, que já fizera a viajem, aconselha as mulheres que a planeiem sobre a melhor época de viagem, o vestuário a levar etc: ”O melhor tempo para aquelas que desejem ver a Califórnia na sua verde perfeição, coberta do seu maravilhoso manto de flores selvagens, é o fim de Março ou princípio de Abril, quando é de prever que já não há perigo de haver neve no Pacific Railroad”. *
Quando a custos, o preço do bilhete de ida e volta a São Francisco era um pouco menos de trezentos dollares, havendo que contar com a despesa das refeições durante sete a oito dias. Também havia que pensar na bagagem, o uso de grandes malas não era aconselhável, porque cada passageiro só tinha direito a cinquenta quilos, cada quilo a mais era pago. A bagagem grande seguia em wagon especial, recomendava-se portanto uma pequena mala com os artigos de toilette para uso diário. Deviam-se escolher botas velhas e cómodas. O pó era o grande inimigo do conforto. A autora vira senhoras que cobriam a cabeça com uma toca que apertavam com um elástico para protegerem o cabelo, “um processo admirável, que eu aconselho”.
“Espanta às vezes, escreve ela, que aos viajantes que a fizeram se oiça falar tão pouco do inevitável cansaço de tão longa viagem. Mas o facto é que o cansaço é muito menor do que seria de esperar. Em parte devido ao grande conforto dos Pallmans” e também devido á agradável locomoção dos comboios. “É notável a falta de solavancos, de choques ao arrancar e ao parar dos comboios”.
De resto, esqueciam-se os desconfortos, o calor e o pó, e as pequenas irritações, enquanto a novidade, as lindas vistas o largo horizonte ficavam para sempre. Em resumo, a autora recomendava vivamente a viagem.
O diário de Maria Theresa parece-me mais completo que qualquer destes textos. Hesitei em publicá-lo aqui. A quem interessaria? Mas essa duvida existe em relação a todos os posts. Tenho estado a escrever sobre livros de viagem, e o que é este diário senão um desses livros? Como o diário é demasiado comprido para ser publicado de uma só vez, distribuirei o texto por cinco ou seis posts: o de hoje, seguido de um post na quarta-feira, dia 3, outro na sexta, dia 5, e o último, ou penúltimo, na segunda-feira 8 de Junho.
*Susan Coolidge A few hints on the Califórnia Journey Scribner’s Monthly May 1873

Algumas notas:
A construção do Pacific Railroad iniciou-se em 1863 e estava dividida em dois troços. Um dos troços partia de Sacramento na Califórnia., trabalhando-se nele em direcção a leste, o outro, dirigindo-se para oeste ao encontro do primeiro, partia de Omaha no Estado de Nebraska. A junção dos dois troços deu-se em Maio de 1869, em ‘Promontory Point’ no Utah e o comboio começou de imediato a funcionar.

Maria Theresa, a autora do diário que em seguida transcrevo, tinha dezanove anos, era a filha mais velha de João Ferrão de Castello Branco e de D. Theresa Saldanha da Gama (Ponte). O tratamento de “papá e maman”, que ela dá a pai e mãe, assim como o frequente uso de outros francesismos, eram então hábito comum nas famílias portuguesas mais educadas.
Pai e filha partiram de Lisboa a 7 de Março de 1886, e estão em Nova York a 22 do mês. De todos os pontos Maria Thereza manda notícias à mãe: a 9 de Março, de Paris, a 12 de Março, de Liverpool, onde irão embarcar e - uma última vez da Europa - quando já estão instalados no navio ‘Servia’, da Cunard Lines. A 22 estão em Nova York, instalados no HOTEL ESPANOL e HISPANO AMERICANO na 14th Street, "near 5th Avenue", escreve Maria Theresa na sua primeira carta, na segunda emenda “afinal não é perto da quinta é perto da sexta avenida, é "near 6th Avenue".
O pai estava nomeado para um posto consular, e enquanto não começava a exercer as suas funções decide empreender a viagem à Califórnia no famoso novo comboio. Isto apesar de ser um homem doente, e que o sabia, como se lê da carta que escreverá a sua mulher durante a viagem: “Ando estafado e mal em todo o sentido, poucas esperanças tenho de melhorar, mas gosto entretanto de ir vendo e conhecendo o que há por este mundo e comsola-me a ideia de não morrer sem ter diminuido o número das belezas que ainda me eram desconhecidas.”

DIÁRIO DA VIAGEM

29 de Abril (1886) à tarde
Já temos três dias de viagem, mas só hoje posso principiar a descrevê-la. Saímos de New York no domingo de Páscoa à meia noite num ‘ferry boat’ que nos levou à estação de caminho de ferro, que fica do outro lado do porto. Não nos foi possível arranjar ‘sleeping car’ nessa noite. Não havia senão os ‘berths’ de cama, o que não quisemos por ser incómodo trepar para lá estando qualquer vizinho já deitado em baixo. Não tivemos outro remédio senão sujeitar-nos a passar a noite nas carruagens simples. Como sabe, não há diferença de classes na América, só para os emigrantes há carruagens à parte. O papá nessa noite não pregou olho, está bem entendido, o que não me sucedeu a mim. Passámos por New Jersey, a que se pode chamar um bairro de New York, e por Filadélfia, mas nada se podia distinguir,
Na segunda feira, 26, almoçámos em Baltimore, onde mudámos de comboio e arranjámos ‘sleeping car’. A cidade é bastante grande e bonita pela sua situação sobre um rio cujo nome ignoro. O caminho deste Baltimore até Cumberland, uma cidade pequena onde lanchámos, é bonito. É uma série não interrompida de casas de madeira de apetite, de campos verdes e de matas cortadas por imensos riosinhos lindos. Pelo meio dia começou a vista a ser realmente encantadora Durante duas ou três horas fomos seguindo as imensas voltas (e dando-as com tanta rapidês que mesmo o papá achou uma brutalidade) do rio Potomac; a cada passo se vêem ilhas pequenas cheias de verdura e dos lados do rio são montanhas cobertas de árvores com verdes em todos os tons e, como para diminuir a monotonia do verde, de espaço a espaço estão espalhados uns arbustos com uma flor encarnada bem bonita. Que mal que estou explicando isto, mas também não é fácil. Um dos pontos mais bonitos é a ‘Harper's Ferry’ (uma ponte) por onde passámos e onde se junta o rio Potomac com outro. Pelas 2 da tarde entrámos nos Alleghenys, a beleza dos quais não me parece possível que possa ser descrita de modo a poder dar uma leve ideia dela a quem não viu, e então descritas por mim, faça ideia! Puseram-se duas locomotivas por se subir muito. Por que precipícios que nós passámos, minha querida maman, há uns três pontos em que apenas há o espaço para a linha, e quando se põe a cabeça de fora, e se vê a terra a faltar, parece que se está suspensa por cima do abismo. Aos pés vê-se sempre água a correr por meio do arvoredo, de que estão cobertos também os montes dum feitio variadíssimo. Estivemos todo o dia embasbacados para a beleza da vista e também muito encanitados, porque um alemão e a mulher não fizeram todo o tempo senão dormir. Nos intervalos do dormir faziam uma partidinha e depois ó-ó outra vez, e a mulher espetava a gâmbia muito bem espetadinha, o que nos fez rir a mim e ao papá o que não se crê.
Não fazíamos ideia da beleza das Alleghenys, não são inferiores aos Pirenéus decerto. Depois há um intervalo menos bonito, onde já estão cortando muitas árvores para se poder cultivar o terreno; vem depois uma parte bem bonita onde se passa por uma quantidade de pontes sobre rios, dando uma tal quantidade de voltinhas que tornam a viagem encantadora. À noite jantámos no ‘dining car’ e durante uma hora imaginámo-nos no ‘Servia’! Como nos montes diminuem um pouco a rapidez, para ‘retrappaer le temps perdu’, põem-se numa tal pressa, num caminho que é um zig zag contínuo, que o balanço foi tal que enjoámos. A tristeza e melancolia em que passámos essa hora não se imagina, de modo que não pudemos gozar do cómodo de jantar aqui mesmo. Como disse, tínhamos ‘sleeping car’. As camas não podem ser melhores, são exactamente tão largas e tão compridas como as que se têm em casa e felizmente o papá dormiu perfeitamente. (Continua)

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