Por ca chamam-se policiais
>> segunda-feira, 29 de junho de 2009
Nos tempos em que os meninos brincavam, um dos jogos preferidos era “brincar” aos policias e ladrões. Dividia-se o grupo de meninos em policias e ladrões, os ladrões escondiam-se, e os policias faziam o possível por os encontrar. Quem mais ladrões apanhava, era o melhor policia. Às vezes um dos ladrões escondia-se tão bem, que ninguém o encontrava. Os policias esqueciam-se dele, até que ele, farto de esperar, saia do esconderijo e se declarava vencedor, coisa com o que ninguém se importava.
Brincava-se ao que existia na via real. De um lado os ladroes e outros criminosos, do outro, aqueles que tinham a missão de os apanhar. A coisa era tão natural, que não valia a pena escrever sobre ela. Até que um dia, um senhor chamado Conan Doyle inventou um homem chamado Sherlock Holmes. Uma criatura irritantíssima, mas genial, que, quase sem sair da sua casa em 221B Baker Street, com a sua inteligência e poder de dedução, resolvia aquilo que a policia não conseguia resolver. Nascera o detective amador. A polícia só surgia no momento em que havia que prender o criminoso. Então não havia remédio se não chamar a autoridade, chamava-se a polícia, mas os solucionadores dos crimes passaram a ser os detectives amadores.
Proliferaram os sucessores de Sherlock Holmes: Lord Peter Whimsey, Ngaio March, Ellery Queen, Hercule Poirot, Miss Marple, tantos outros. Por cá os livros em que esses heróis actuavam e actuam, chamam-se livros policiais, em Inglaterra chamam-lhe ‘detective stories’, em França ‘policiers’, ou ‘polars’, na América ‘criminals’, na Alemanha ‘Krimis’.
Havia nos primeiros tempos do policial um sub género, em que o primeiro lugar cabia ao criminoso, que não era muito criminoso, era um ladrão muito hábil, ou uma quadrilha de ladrões. O especialista do género era Edgar Wallace, com os suas organizações de criminosos e um matador profissional, que quase sempre era albino. Será que Dan Brown leu Edgar Wallace? Em França houve um Maurice Leblanc, criador de Arsène Lupin. Um ladrão bonito, elegante, simpático, incapaz de ferir, quanto mais matar, e a quem as marquesas e condessas praticamente ofereciam os diademas e os colares de brilhantes. Parece que ainda tem culto em França, ultimamente à míngua de heróis.
Com os anos o tipo do romance policial mudou, a policia voltou a ter o seu lugar no combate aos criminosos, e os métodos de investigação criminal já não se baseiam em deduções intuitivas e mais ou menos lógicas de amadores. Já não são os crimes em torno da xícara de chá, que Miss Marple ou Hercule Poirot, perante o espanto dos polícias, resolviam com inteligência e conhecimento da natureza humana. Agora querem-se coisas mais concretas, e estamos bem servidos. Nos ‘criminals’ americanos não nos poupam nada da investigação: o momento em que a esquadra é notificada, o exame do local do crime e do,, ou dos cadáveres, a morgue e a autópsia e por aí fora, todo o desenrolar prático e até burocrático do processo. E nós leitores ali estamos, atentos e interessados seguindo o policia detective.
Vasco Pulido Valente escreveu um dia, que o policial tem de ser em inglês, que só numa ‘detective story’ achamos perfeitamente natural que se descubra um morto no terceiro ‘green’ de um campo de golfe, coisa que nunca aceitaríamos em um qualquer ‘green’ de campo de golfe português. Não deixa de ter razão. E quem aceitaria em romance policial português que uma senhora bem nascida matasse sucessivamente quatro ou cinco dos seus parentes por causa duma herança? Não que não haja portugueses bem nascidos, que tenham, ou tenham tido, essa mesma vontade, mas por cá a coisa não convencia. Nos livros de Agatha Christie a coisa é corrente, e se não convence, entretêm. Nos ‘criminals’ americanos, também se mata em série, mas aí as mortes não são motivadas por heranças. Nos Estados Unidos trata-se de ‘serial killers’, que matam por gostar de matar. Parece que há quase tantos assassinos em série na América como assassinos à cata de herança em Inglaterra. Pelo menos em ficção.
Evelyn Waugh dizia que uma das melhores coisas dos policiais era que se podiam reler as vezes que desse jeito, já que no mesmo momento que se acabavam de ler, se esquecia quem fizera o què. Assim será, mas para mim o melhor do policial não é o descobrir quem fez o quê. É claro que isso interessa, mas para meu gosto o melhor do livro é o que conduz a essa conclusão. É todo o caminho de raciocínio, de detecção lógica, que leva a encontrar quem fez o quê, e porque o fez. E quanto mais lógica, mais inteligente for a dedução, mais o livro nos prende.
Mas para que este não seja esquecido, como de facto acontece com a maioria dos policiais, é preciso que a história, além do seu interesse intrínseco como caso de polícia ou de detective, seja uma história bem contada. E aí ninguém bate Simenon e os casos do comissário Maigret.
Maigret é um policia a quem a sua profissão coloca diante de casos que qualquer policia do mundo pode ter alguma vez enfrentado ou vir a enfrentar. Nada de fantasioso em Maigret. É um homem simples, consciencioso, bom garfo e bom copo. Nos livros de Maigret acontecem crimes, que são resolvidos de forma profissional por um comissário de policia chamado Jules Maigret. Mas têm qualquer coisa mais. Não são unicamente policiais, ou criminals, ou detective stories, ou polars, ou o que lhes queiram chamar, são óptimas histórias.
O que dizem os outros
“O encanto de ouvir contar uma história é tão natural à natureza humana como o encanto de ver danças e mímicas, de onde nasceu o drama” escreve Somerset Maugham no seu livro ‘The Partial View’. “Que esse encanto existe intacto, provam-no os livros de detectives. São lidos pelas pessoas mais intelectuais, com condescendência, já se vê, mas lêem-nos. E porquê, se não porque a ficção psicológica, pedagógica, analítica, a única que as suas mentes aprovam, não lhes satisfaz aquele desejo inato.”
Observações à margem
Penso que não há escritor que não tenha alguma vez pensado em escrever um romance policial. Já satisfiz esse gosto, não com um livro, mas incluindo em um dos meus livros – um romance histórico - o caso de um crime, e da sua solução. Tratava-se da morte de uma monja ocorrida no dia da eleição de nova abadessa do mosteiro. Era um crime “necessário” para o desenrolar da acção, já que para que fosse eleita aquela monja que de facto –historicamente – foi eleita, era preciso que houvesse uma razão premente para isso, e essa existiria, se deixassem de existir as duas candidatas, que em ficção teriam mais razões para serem eleitas. O que sucederia com a morte de uma e o crime da outra.
Achei graça engendrar o caso e desenvolver o processo de dedução. Apresentei os factos da seguinte maneira: toda a comunidade estava reunida quando se deu pela falta de uma das monjas, justamente uma das candidatas ao cargo. Foram-na procurar, estava caída ao fundo do escada de pedra que conduzia ao claustro. Tropeçara ela e caíra, ou fora empurrada? Por alguém que tinha interesse em que ela não se candidatasse, ou por outra qualquer, por outra possível razão? Todas as monjas usavam o mesmo traje, como se podia saber que fora a ela e não a outra que se empurrara? Uma das monjas - o ‘detective’ da história - chegou à conclusão, que a haver crime só podia ter sido cometido pela monja que tivesse sido a ultima a entrar na sala do capítulo. Qual delas fora, e porque é que só podia ser ela?
Não sei se isso sucede normalmente nos policiais, mas no meu caso, constatei com espanto que, para poder narrar o processo crime e solução do crime, e poder concluir com a solução que se impunha, o raciocínio, teve de partir do fim para o início. A coisa não foi nada fácil.
Depois dessa modesta experiência só posso dizer, que o meu respeito pelos autores de policiais aumentou.