Livros de Viagem. Atraves dos Estados Unidos no 'Great Pacific Railroad'

>> segunda-feira, 1 de junho de 2009




Em meados do século XIX inicia-se a era da viagem do comboio. A novidade era naturalmente comentada em cartas e conversas, mas havia viagens que mereciam um pouco mais, e, quando em 1886, uma rapariga portuguesa da minha família foi com o pai aos Estados Unidos, e o acompanhou numa viagem no ‘Great Pacific Railroad’, que os levou de Nova-York à costa do Pacífico, o caso foi digno de ser recordado em diário.
A par das cartas que ela então escrevia e deitava no correio em todos os pontos em que isso era fazível, Maria Theresa, a rapariga em questão, - bem à moda do tempo - ia redigindo o seu ‘diário de viagem’, que depois passará a limpo e enviará à mãe.
Consultei o site do “Central Pacific Railroad Photographic History Museum”. para saber o que se tinha escrito sobre aquele famoso comboio. Há inúmeros livros sobre a construção da via férrea, as suas enormes dificuldades, os problemas de engenharia de construção, e de mão de obra, mas não são muitos os testemunhos dos primeiros viajantes, e pouquíssimos os de mulheres. Menciona-se um pequeno caderno, o diário de bordo, chamemos-lhe assim, de Gretchen Schaeffer, uma rapariga alemã de 21 anos, que ia procurar trabalho na Califórnia. Vai fazendo curtos apontamentos diários sobre as distâncias percorridas, sobre paisagem e passageiros, explica como de duas cadeiras se fazia uma cama. Pouco mais.
O outro testemunho da viagem, esse impresso, é um artigo publicado na revista Scribners Monthly em Maio de 1873, no qual a autora, Susan Coolidge, que já fizera a viajem, aconselha as mulheres que a planeiem sobre a melhor época de viagem, o vestuário a levar etc: ”O melhor tempo para aquelas que desejem ver a Califórnia na sua verde perfeição, coberta do seu maravilhoso manto de flores selvagens, é o fim de Março ou princípio de Abril, quando é de prever que já não há perigo de haver neve no Pacific Railroad”. *
Quando a custos, o preço do bilhete de ida e volta a São Francisco era um pouco menos de trezentos dollares, havendo que contar com a despesa das refeições durante sete a oito dias. Também havia que pensar na bagagem, o uso de grandes malas não era aconselhável, porque cada passageiro só tinha direito a cinquenta quilos, cada quilo a mais era pago. A bagagem grande seguia em wagon especial, recomendava-se portanto uma pequena mala com os artigos de toilette para uso diário. Deviam-se escolher botas velhas e cómodas. O pó era o grande inimigo do conforto. A autora vira senhoras que cobriam a cabeça com uma toca que apertavam com um elástico para protegerem o cabelo, “um processo admirável, que eu aconselho”.
“Espanta às vezes, escreve ela, que aos viajantes que a fizeram se oiça falar tão pouco do inevitável cansaço de tão longa viagem. Mas o facto é que o cansaço é muito menor do que seria de esperar. Em parte devido ao grande conforto dos Pallmans” e também devido á agradável locomoção dos comboios. “É notável a falta de solavancos, de choques ao arrancar e ao parar dos comboios”.
De resto, esqueciam-se os desconfortos, o calor e o pó, e as pequenas irritações, enquanto a novidade, as lindas vistas o largo horizonte ficavam para sempre. Em resumo, a autora recomendava vivamente a viagem.
O diário de Maria Theresa parece-me mais completo que qualquer destes textos. Hesitei em publicá-lo aqui. A quem interessaria? Mas essa duvida existe em relação a todos os posts. Tenho estado a escrever sobre livros de viagem, e o que é este diário senão um desses livros? Como o diário é demasiado comprido para ser publicado de uma só vez, distribuirei o texto por cinco ou seis posts: o de hoje, seguido de um post na quarta-feira, dia 3, outro na sexta, dia 5, e o último, ou penúltimo, na segunda-feira 8 de Junho.
*Susan Coolidge A few hints on the Califórnia Journey Scribner’s Monthly May 1873

Algumas notas:
A construção do Pacific Railroad iniciou-se em 1863 e estava dividida em dois troços. Um dos troços partia de Sacramento na Califórnia., trabalhando-se nele em direcção a leste, o outro, dirigindo-se para oeste ao encontro do primeiro, partia de Omaha no Estado de Nebraska. A junção dos dois troços deu-se em Maio de 1869, em ‘Promontory Point’ no Utah e o comboio começou de imediato a funcionar.

Maria Theresa, a autora do diário que em seguida transcrevo, tinha dezanove anos, era a filha mais velha de João Ferrão de Castello Branco e de D. Theresa Saldanha da Gama (Ponte). O tratamento de “papá e maman”, que ela dá a pai e mãe, assim como o frequente uso de outros francesismos, eram então hábito comum nas famílias portuguesas mais educadas.
Pai e filha partiram de Lisboa a 7 de Março de 1886, e estão em Nova York a 22 do mês. De todos os pontos Maria Thereza manda notícias à mãe: a 9 de Março, de Paris, a 12 de Março, de Liverpool, onde irão embarcar e - uma última vez da Europa - quando já estão instalados no navio ‘Servia’, da Cunard Lines. A 22 estão em Nova York, instalados no HOTEL ESPANOL e HISPANO AMERICANO na 14th Street, "near 5th Avenue", escreve Maria Theresa na sua primeira carta, na segunda emenda “afinal não é perto da quinta é perto da sexta avenida, é "near 6th Avenue".
O pai estava nomeado para um posto consular, e enquanto não começava a exercer as suas funções decide empreender a viagem à Califórnia no famoso novo comboio. Isto apesar de ser um homem doente, e que o sabia, como se lê da carta que escreverá a sua mulher durante a viagem: “Ando estafado e mal em todo o sentido, poucas esperanças tenho de melhorar, mas gosto entretanto de ir vendo e conhecendo o que há por este mundo e comsola-me a ideia de não morrer sem ter diminuido o número das belezas que ainda me eram desconhecidas.”

DIÁRIO DA VIAGEM

29 de Abril (1886) à tarde
Já temos três dias de viagem, mas só hoje posso principiar a descrevê-la. Saímos de New York no domingo de Páscoa à meia noite num ‘ferry boat’ que nos levou à estação de caminho de ferro, que fica do outro lado do porto. Não nos foi possível arranjar ‘sleeping car’ nessa noite. Não havia senão os ‘berths’ de cama, o que não quisemos por ser incómodo trepar para lá estando qualquer vizinho já deitado em baixo. Não tivemos outro remédio senão sujeitar-nos a passar a noite nas carruagens simples. Como sabe, não há diferença de classes na América, só para os emigrantes há carruagens à parte. O papá nessa noite não pregou olho, está bem entendido, o que não me sucedeu a mim. Passámos por New Jersey, a que se pode chamar um bairro de New York, e por Filadélfia, mas nada se podia distinguir,
Na segunda feira, 26, almoçámos em Baltimore, onde mudámos de comboio e arranjámos ‘sleeping car’. A cidade é bastante grande e bonita pela sua situação sobre um rio cujo nome ignoro. O caminho deste Baltimore até Cumberland, uma cidade pequena onde lanchámos, é bonito. É uma série não interrompida de casas de madeira de apetite, de campos verdes e de matas cortadas por imensos riosinhos lindos. Pelo meio dia começou a vista a ser realmente encantadora Durante duas ou três horas fomos seguindo as imensas voltas (e dando-as com tanta rapidês que mesmo o papá achou uma brutalidade) do rio Potomac; a cada passo se vêem ilhas pequenas cheias de verdura e dos lados do rio são montanhas cobertas de árvores com verdes em todos os tons e, como para diminuir a monotonia do verde, de espaço a espaço estão espalhados uns arbustos com uma flor encarnada bem bonita. Que mal que estou explicando isto, mas também não é fácil. Um dos pontos mais bonitos é a ‘Harper's Ferry’ (uma ponte) por onde passámos e onde se junta o rio Potomac com outro. Pelas 2 da tarde entrámos nos Alleghenys, a beleza dos quais não me parece possível que possa ser descrita de modo a poder dar uma leve ideia dela a quem não viu, e então descritas por mim, faça ideia! Puseram-se duas locomotivas por se subir muito. Por que precipícios que nós passámos, minha querida maman, há uns três pontos em que apenas há o espaço para a linha, e quando se põe a cabeça de fora, e se vê a terra a faltar, parece que se está suspensa por cima do abismo. Aos pés vê-se sempre água a correr por meio do arvoredo, de que estão cobertos também os montes dum feitio variadíssimo. Estivemos todo o dia embasbacados para a beleza da vista e também muito encanitados, porque um alemão e a mulher não fizeram todo o tempo senão dormir. Nos intervalos do dormir faziam uma partidinha e depois ó-ó outra vez, e a mulher espetava a gâmbia muito bem espetadinha, o que nos fez rir a mim e ao papá o que não se crê.
Não fazíamos ideia da beleza das Alleghenys, não são inferiores aos Pirenéus decerto. Depois há um intervalo menos bonito, onde já estão cortando muitas árvores para se poder cultivar o terreno; vem depois uma parte bem bonita onde se passa por uma quantidade de pontes sobre rios, dando uma tal quantidade de voltinhas que tornam a viagem encantadora. À noite jantámos no ‘dining car’ e durante uma hora imaginámo-nos no ‘Servia’! Como nos montes diminuem um pouco a rapidez, para ‘retrappaer le temps perdu’, põem-se numa tal pressa, num caminho que é um zig zag contínuo, que o balanço foi tal que enjoámos. A tristeza e melancolia em que passámos essa hora não se imagina, de modo que não pudemos gozar do cómodo de jantar aqui mesmo. Como disse, tínhamos ‘sleeping car’. As camas não podem ser melhores, são exactamente tão largas e tão compridas como as que se têm em casa e felizmente o papá dormiu perfeitamente. (Continua)

5 comentários:

Daniel Abrunheiro 1 de junho de 2009 às 13:24  

Esta série viajante é uma delícia, T.

theresa S. de Castello Branco 1 de junho de 2009 às 15:49  

Ainda bem que está a gostar, e sabe que mais? Eu também me estou divertindo com ela. Há coisas que se aprendem ao querer transmiti-las a outros, e eu estou aprendendo coisas novas com cada post. O diário que segue, já tão meu conhecido, tomou uma nova feição agora que o vou revelar a outros. Fiquei muito contente com o seu comentário aprovador. Theresa

Daniel Abrunheiro 1 de junho de 2009 às 19:20  

E eu não falho aqui uma segunda-feira. E que tal passar a, pelo menos, bissemanal? Fica o desafio.

theresa Schedel de Castello Branco 1 de junho de 2009 às 23:17  

O diário, como deve ter lido, vou publicar pela semana fora, quarta, sexta e de novo na segunda-feira. Mas é uma excepção. Sei que não tenho capacidade para artigo bissemanal. Sou demasiado lenta e além disso, muito exigente para comigo. Logo que planeei este blogue, decidi publicar um artigo semanal por saber que não dou para mais. E também, confesso, porque tenho um outro projecto na manga. Que provavelmente não realizarei, mas para o qual quero reservar tempo. Até Quarta feira no Great Pacific Railroad. Theresa

Daniel Abrunheiro 2 de junho de 2009 às 09:49  

Cá estaremos, então e decerto. Obrigado.

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