Livros de viagem. De turismo

>> segunda-feira, 25 de maio de 2009


Turismo no Egipto no século XIX
O fenómeno ‘viagem no século XIX’ não deixa de espantar. A impressão que se tem, é que nesses anos toda a Europa saiu de casa para ‘ ir ver’. Sobretudo, é preciso que se diga, para ir conhecer e estudar: “havia muito simplesmente uma reverência pela ciência”. A viagem podia ser unicamente uma curiosidade declarada, e podia ser uma verdadeira expedição com fins científicos de geografia, zoologia, botânica, arqueologia. escreve Wilfred Thesiger*.
Mas começava também a surgir o viajante que viajava para seu próprio entretenimento, para ver por ver, nascia o turista, e com ele a viagem organizada. Na Alemanha, Karl Baedecker publica em 1828 o seu primeiro guia de viagem, e, mais tarde, em Inglaterra, Thomas Cook organiza viagens de grupo. Leva 350 pessoas em excursão à Escócia, e em 1867 organiza a sua primeira viagem ao estrangeiro, levando um grupo de ingleses a Calais, a tempo de poderem visitar a Exposição de Paris caso quisessem. Nos anos seguintes leva grupos à Suíça, à Itália, ao Egipto, e até aos Estados Unidos. Tem mesmo um sistema de viagem individual, nos quais o viajante ia independentemente, com a agência pagando- por um determinado período a alimentação e a acomodação.
O turista do século XIX incluía escritores e pintores, gente culta, que se achava na obrigação de anotar o que via e de o comunicar ao seu semelhante. Enquanto os geógrafos mediam as serras e os rios, os zoólogos estudavam peixes, aves e mamíferos, e os botânicos classificavam as plantas, escritores e poetas descreviam as “impressões” que paisagens e monumentos lhes tinham causado, e mais tarde aproveitavam as suas impressões na criação literária. Um dos países mais visitados por esse tipo de viajantes era o Egipto, em particular por franceses, os quais, com a decifração dos hieróglifos conseguida por Champalion, se achavam em relação à terra dos faraós numa situação privilegiada, de bom pai triunfante.
Tenho dessa época ‘Le Fayoum, Le Sinai et Petra’ de Paul Lenoir**, e em português, naturalmente ‘O Egipto’ de Eça de Queiroz.
Lenoir, pintor, viajou ao Egipto em 1872 com um grupo de colegas, estudantes de Belas Artes, em excursão organizada pelo pintor Jean Léon Gérome. Iam ver e estudar as paisagens e os monumentos como objectos da sua arte.
Eça fizera a viagem em Novembro de 1869, para assistir à inauguração do Canal de Suez, projectada para o dia 17 desse mês. Ia em companhia de um amigo, o conde de Resende. Eça tinha 23 anos, o amigo 25. Dois lisboetas elegantes que queriam ver como era aquilo do Egipto e das pirâmides.
O livro de Eça de Queiroz transmite bem o que era a viagem de um turista diletante do tempo, e parece-me que só isso desculpa que o filho tenha publicado aquelas impressões, que seu pai deixara na gaveta. É que mesmo um grande escritor não se inicia logo com uma obra de qualidade, e “O Egipto”, sobretudo na sua primeira parte, é um acabado exemplo disso. Sucedem-se os lugares comuns, os superlativos, as analogias. Os poetas e os deuses são constantemente chamados para ilustrar as imagens, nada e ninguém é como é. Pessoas, objectos, monumento são sempre como outra coisa qualquer.

“Ontem dobrámos o cabo de S. Vicente sob um luar digno de Shakespeare. O mar infindável, sereno, sem trevas, belamente escuro, tremia sob o grande raio luminoso da lua, como os antigos animais sob a carícia dos profetas. À direita do vapor, negro de perfil, seguia-se o Cabo, de linhas precisas e nítidas, e a decoração admirável da noite assentava silenciosamente em redor. O solo final da ‘Áfricana’, com a sua lenta desolação aflita, seria grandiosamente belo no meio desta imensa paisagem severa cheia das coisas infinitas!”

Passam Gibraltar, estão no Mediterrâneo, “ao fundo, sobre a negra terra de África, erguia-se o Atlas, tão belo, tão forte, tão vivo com nos velhos tempos mitológicos, quando ele sustentava nos ombros gigantescos o céu com todo o seu povo de deuses.”

“De resto a viagem era adorável. O mar parecia uma seda levemente franzida..”

“Iam a bordo algumas individualidades curiosas: um oficial da Índia ..... A sensação nele era rápida e explosiva: um verdadeiro bárbaro. De resto, um ‘gentleman’.”

Pararam em Malta, visionaram o seu passado sob os seus cavaleiros guerreiros.
“Umas horas depois, toda aquela visão da história e do romantismo tinha desaparecido no meio da noite, e nós continuávamos no mar nocturno a nossa viagem para Leste.

“De manhã avistámos uma terra baixa, negra, ao nível do mar. Era o Egipto. Aproximámo-nos da entrada terrível.”

“Eu, entretanto, pensava que ia pisar o solo de Alexandria. Estávamos talvez na mesma água em que outrora tinham fundeado as galeras de velas de púrpura, que voltavam de Actium!”

“Assim tu nos apareceste, o negro Egipto, romântica terra dos Califas!”

Numa carruagem forrada de chita “entre o monte das nossas bagagens” os viajantes seguiram para o hotel. Ficaram dois dias em Alexandria: “tínhamos curiosidades clássicas a examinar”. Foi uma decepção: “deixámos Alexandria alegremente. Aquela monótona cidade, cheia de ‘boulevards’ e de casinos, no sítio onde o solo ainda está quente dos passos dos Ptolomeus e das sandálias de Cleópatra, pesara-nos como a página dum livro comercial intercalado no arabesco fantástico d’As Mil e Uma Noites!”
O livro prossegue neste estilo.
No Cairo os viajantes instalam-se no Shepheard’s, o melhor hotel do Cairo.
“São sete horas da noite. O gás ilumina o largo corredor lajeado; os aparelhos cintilam; os ‘drogmans’ circulam. Um árabe percorre os corredores batendo uma larga placa de metal, como para anunciar um velho rito. Aquele som velado, doce e penetrante, espalha-se num eco esbatido pelas largas salas. É o jantar.
A imensa sala adornada de colunas está cheia de luz.............aqui é o nosso mundo europeu, civilizado, sábio, filosófico, egoísta e rico......”

A partir daqui, talvez cansado de tantos superlativos, ou porque o que via era tão esmagador, que não precisava de hiperbólicos, Eça baixa de tom, e temos descrições mais simples, mais naturais. Admira as casas árabes “feéricas, de ‘moucharabièhs’ maravilhosos, cheios de arabescos, rendilhadas, bordadas, riscadas de listras vermelhas..”. Os dois amigos adoptam o burro como meio de transporte, como fará mais tarde o grupo de Paul Lenoir. São turistas uns e outros, com anos de distância vêem e admiram as mesmas coisas.

As descrições de Lenoir não têm pretensões literárias. Descreve o que viu e o que sentiu com palavras simples. O seu grupo está hospedado em casa de um cozinheiro francês, e a única queixa do grupo era de menus demasiado abundantes. Era comida demais para quem queria estar leve, pronto para a aventura. Não que a coisa da comida não os interessasse. O grupo tinha o seu cozinheiro, e Lenoir descreve com entusiasmo a fabulosa marmita sueca que acompanhava a caravana: uma panela solidamente encastoada numa caixa de madeira completamente forrada lã e hermeticamente fechada. Punham-se no tacho todos os ingredientes para um ‘pot-au-feu’ e uma hora antes de partir juntava-se-lhe o que bastava de água a ferver. Fechavam-se tacho e caixa, e o cozido fazia-se por si próprio. Fosse a marmita de carro, a cavalo, a burro, ou a dromedário. Quando, tendo partido de manhã cedo, “chegávamos estenuados e esfomeados ao nosso destino. era um pot-au-feu’ fumegante que nos estndia os braços”.
Mas isso seria depois, ainda estão no Cairo, percorrem as sua ruas, vão aos bazares, entram nas mesquitas. Tal como Eça usam burro como transporte.

“A burro, meus senhores, ‘a burro’! E como num sonho japonês, estávamos todos ‘a burro’ antes mesmo de saber porque”.

“O burro é não só o primeiro amigo que se faz no Cairo, é também o melhor par de sapatos: as botas só se usam ao colocá-las ao pé da cama..............vivemos ‘a burro’ na nossa expedição ao Feyoum, assim como vivemos ‘a dromedário’ nos nossos dois meses de deserto a Sinai e a Petra”.

“O Mouski ..... Esta rua imensa, ou antes esta verdadeira avenida coberta, resume de forma completa e admirável toda a circulação das ruas orientais no que elas têm de mais vivo e mais pitoresco: inumeráveis boutiques cheias das mercadorias mais extraordinárias pela sua variedade e profusão.”
Admiram como Eça as “admiráveis esculturas em madeira que, sob a forma de ‘moucharabièhs’, servem de janelas e de ventilação às habitações”
E, uma vez o primeiro entusiasmo passado, analisam o que vêem: “Aquilo que um sábio académico (Ampère) designou muito justamente como febre da chegada ao Cairo, já a tínhamos experimentado, começávamos agora a analisar um pouco mais esse primeiro espanto.”
Em caravana, com tendas e material de cozinha e de dormida vão ao deserto, a Gizeh, a Sakhara.
“toda a cidade, invadida pelas areias está por descobrir, mas as incríveis dificuldades que se encontram quando se querem fazer pesquisas nesta areia movediça vão infelizmente retardar a descoberta dos tesouros e das maravilhas que aí estão certamente enterradas. Viam-se inúmeras ossadas, que a deslocação do solo tinham posto à vista, não tínhamos mais que nos baixar para colher restos humanos calcinados pelo tempo. Uma infinidade de múmias mutiladas cobriam a areia ....... eu tirei de um crânio de mulher, escondido sob montões de bandelettes e de cabeleiras, dois dentes admiráveis de brancura, que mereciam ter pertencido a uma serva de filha de faraó. O meu amigo G. ofereceu-se dois crânios, e eu tive a sorte de encontrar um daqueles pequenos amuletos em terra esmaltada ... uma mulher com cabeça de leão. Esta profusão de despojos à mão de semear e á superfície da areia faz pensar no que certamente se descobriria por baixo, se o trabalho das pesquisas não fosse tão dispendioso e tão difícil.”

Os futuros pintores regressaram ao Cairo, para dali atravessarem o Sinai e irem a Petra.
A viagem de Eça de Queiroz e do conde de Resende foi menos aventurosa. Assistiram à inauguração do Canal de Suez e regressarem a Portugal.
Não é a literatura de viagem da minha preferência, mas creio que os dois livros testemunham bem o que era a viagem turística do século XIX.

*em John Kaey Travel in Dangerous Ages Robinson. Londres
** Paul Lenoir Le Fayoum, le Sinai et Petra. Expedition dans le Moyen Égypte et l’Arabie Pétrée sous la direction de J.L. Gérome
Henri Plon, Imprimeur-Éditeur Paris

0 comentários:

Sobre este blogue

Libri.librorum pretende ser um blogue de leitura e de escrita, de leitores e escritores. Um blogue de temas literários, não de crítica literaria. De uma leitora e escritora

Lorem Ipsum

  © Blogger template Digi-digi by Ourblogtemplates.com 2008

Back to TOP