Livros de viagens. De descobrimento

>> segunda-feira, 11 de maio de 2009



A costa de Madagascar
O comandante Humberto Leitão abriu o jornal da tarde, folheou-o, e deu com um artigo intitulado “Como Paulo Roiz da Costa foi à ilha de São Lourenço” da autoria de Theresa Schedel de Castello Branco. Confessar-me-ia mais tarde que ia caindo da cadeira.
É que ele estava preparando um trabalho sobre a exploração pelos portugueses da costa de Madagáscar, acompanhado de comentários seus sobre a parte náutica da empresa. Havia três relatos desse feito, mas faltava o mais importante, o texto do roteiro redigido por Paulo Rodrigues da Costa, o capitão em cujas mãos estivera a missão. “Tinha-se por certo, que Paulo Roiz tinha apresentado ao vice-rei circunstanciado relato da viagem que fizera. Dele, porém, não havia notícias”, escreve o comandante na introdução à sua obra.** Agora esbarrava com um artigo sobre Paulo Roiz da Costa.
A explicação era fácil. Quando da organização do arquivo de família, eu dera com um caderno escolar em que o jovem Francisco de Mello Torres tinha copiado um relato do descobrimento das costas da ilha de São Lourenço. Pareceu-me que o achado merecia ser comunicado, e escrevi o artigo que o comandante Humberto Leitão veio a ler com tanta emoção. Ele entrou em contacto comigo e de imediato se lhe confiou o códice que continha o texto para o incluir no seu trabalho.
O texto que eu descobrira não era o do roteiro definitivo. Tratava-se de apontamentos, uma espécie de diário, da exploração da costa. Era baseado nestes seus apontamentos que Paulo Roiz se propunha escrever o roteiro definitivo. Desse não há notícia. O diário, chamemos-lhe assim, está copiado, como se disse, num caderno de cosmografia de Francisco de Melo. Ora este estudava no colégio de Santo Antão da Companhia de Jesus, e considerando que na referida expedição tinham participado três padres jesuítas, é mais que certo que no seu Colégio se conservavam não só os relatos dos referidos padres, como algum texto de Paulo Roiz.
Não seria de espantar que um jovem entusiasta daquelas matérias - como Francisco de Melo comprovadamente era¬ - tivesse copiado o referido relato de motu próprio, para si. Mas o facto de o texto se encontrar nas primeiras páginas do seu caderno de cosmografia, leva-me a pensar que Francisco de Melo copiou os apontamentos de Paulo Roiz como parte do seu estudo de cosmografia. Os estudos de matemática e de cosmografia estavam em primeiríssimo lugar no colégio de Santo Antão, e é sabido que os jesuítas tinham métodos de ensino muito práticos. Pelo que não me parece impossível, que um professor tivesse ordenado aos seus alunos a cópia daqueles apontamentos, para os usarem talvez como uma espécie de livro de estudo ou como fonte de exercícios para a cadeira de cosmografia.
Aquilo não era texto que eu soubesse analizar. Mas merecia ser conhecido, e daí o referido artigo, de que em seguido transcrevo uma parte.
Em 1612 enviaram-se para a Índia duas caravelas para avisar da passagem para essas bandas de doze grandes naus holandesas. Uma das caravelas dirigiu-se a Malaca a outra a Goa. Esta ultima era comandada por Paulo Roiz da Costa, conhecido por um dos mais seguros capitães da carreira da Índia, com mais de trinta anos de serviço no mar. No regresso ao Reino devia Paulo Roiz explorar a costa entre o Cabo da Boa Esperança e o Cabo Negro. Porém o vice-rei, então Ruy Lourenço de Távora, resolve descurar essas ordens, Transformou a caravela de Paulo Roiz, em “arte redonda”, e fez dela uma linda naveta que pensava levar consigo para Portugal. Entretanto chega a Índia novo vice rei, D. Jerónimo de Sousa, e este, vendo a naveta já aparelhada, resolve aproveitar-se dela para uma missão que muitas vezes havia sido considerada, que era a exploração da costa da ilha de Madagáscar, ou de São Lourenço, como então também se dizia, verificando-se juntamente se não haveria na ilha, como muitos supunham, gente portuguesa das naus perdidas naquelas paragens, Paulo Roiz da Costa vinha-lhe a propósito para essa empresa. Desculpou-se o capitão com a sua idade, retorquiu o vice-rei “que ele quisesse quer não havia de ir à dita empresa”, que a ele havia escolhido por cima de muitos fidalgos e cavaleiros que se lhe haviam oferecido, e, diz Paulo Roiz, “vendo esta decisão tão formal, me ofereci”. Aviada a caravela, a 26 de Janeiro de 1613, levantaram âncora e partiram de Goa. Fora marinheiros lascares, iam na nau 32 homens e entre eles dois padres jesuítas, o P. Pêro Freire e o P. Lucas da Silva. Em Moçambique embarcariam ainda o P. Luís Mariano, também da Companhia de Jesus, “grande matemático, que serviria para fazer a descrição da ilha e toda a costa dela”, como se lê no Regimento. Este – o documento que continha as instruções para a viagem - abriu-se, como era dado, quando a nau estava já em mar alto, e foi lido diante de toda a tripulação. O seu teor era, na substância, que o capitão fosse dar a volta à ilha de São Lourenço “sondando e arrumando os rios, baías, baixos, ilhéus com um roteiro mui claro, com os nomes das terras, rios, portos, enseadas, ilhéus, areias, e que qualidade eram os ventos mais comuns e de quando era na Ilha o inverno e o verão. Averiguaria mais com toda a cautela se “pode haver comodidade e entrada com os naturais daquela Ilha para receberem a santa Fé católica”, e em toda a parte por onde passassem procurariam saber de gente portuguesa perdida. Se encontrasse alguma da caravela de Manuel Sousa Coutinho, cunhado do vice-rei e que há pouco se perdera no regresso ao reino “trazei-a a toda e tratai os bem. E vinde-me pedir as alvíssaras, que boas vos hei-de dar.”
Encarregava-se também o capitão de tomar nota do viver dos nativos e da fauna e da flora da Ilha para disso dar conta ao conde de Salinas, “que é curioso dessas coisas”.* E com isso, recomendando ao cuidado do capitão os padres que levava e encarecendo a harmonia entre todos os companheiros de viagem, os encomendava a Deus e os despedia. Não havia que lhe lembrar, escreveria Paulo Roiz, os cuidados a ter com a tripulação, “como todos comíamos de uma panela, desde o capitão até ao gurumete, sempre houve grande união.”**
Previa-se a duração de dois anos para a viagem. Em dia de Ramos de 1613 a nau de Paulo Roiz largou de Moçambique para a sua viagem de reconhecimento. O capitão demorara lá doze dias para apetrechar a “manchua”, uma embarcação a remos de tipo oriental, destinada a entrar terra dentro, ali onde a nau não podia entrar sem prévia exploração. Fizera-se-lhe uma meia tolda e encurvara-se para a fortificar. Na nau seguia já o padre Luís Mariano, e cinco interpretes, “línguas”, entre eles um árabe de nobre raça, grande amigo dos portugueses, conhecedor da ilha. e de nome Facabulay. Quinze dias depois de partir de Moçambique chegaram à ilha da Mazalagem Grande, residência do rei Samamo, e o único dos muitos chefes de tribo daquelas paragens de quem se sabia que tinha tido contacto com portugueses.
Paulo Roiz levava consigo uma carta de tratado que já havia sido concertada para ser finalmente assinada pelo rei. Deitando ancora diante da ilha, deram uma salva de cumprimento “como é nosso costume quando chegamos aos portos donde queremos saber”. Logo o rei lhe mandou uma embarcação e depois da conversa entre os línguas, no terceiro dia, deu-se o encontro com toda a cortesia de parte a parte. Esperava o rei ao capitão e ao seu séquito debaixo de uma grande ramada, onde havia sobre “fermosa areia” umas esteiras finas e sobre elas estavam “três cadeirinhas, uma da China dourada e outras duas lacradas feitas em Goa”. Soube-se depois que eram lastro deitado ao mar do encalhe da nau de Brás Telles. De portugueses perdidos não sabia o rei nada.
Meteram água, fizeram lenha e alguns reparos necessários, e partiram. Era uma viagem de descobrimento pacífica, de estudo. Navegava-se quase só de dia, a caravela navegando o mais perto de terra que podia, indo a manchua à frente sondando o fundo. Diante de enseadas pairavam, entrava a manchua a ver se havia ancoradouro seguro para a caravela, água, lenha. E tudo o capitão anotava, escreve ele: “para um roteiro que farei da Ilha”.

“Aos 15 de Maio depois de estar servido de tudo o necessário, fui sondar o baixo, deixando a barquinha por baliza, e, com dois quartos de água cheia, me virei com a viração de sudoeste, caminho do noroeste, que assim diz a barra, indo eu na embarcação, diante da caravela, sondando sempre com o prumo na mão por fundo de três braças escassas, que na praia mar devem ser largas no banco, e saindo fora surgi em 7 braças, esperando o terrenho de noite para navegar com ele, o que fiz aos 16 do mês com vento su-sueste, que é o terrenho por se a costa aqui lançar lés-noreste oés-sudoeste, e assim fui até à noite em que andaria 7 léguas donde tinha partido, mas. como são já muitos de Maio, entendo que são já entrados os ponentes, que estes me deram hoje tão furiosos no quarto de prima, que me foi necessário surgir com duas âncoras com as amarras pela ponta em fundo de 8 braças, bom, de areia, e com isto cassou muito a caravela com o grande mar que metia e grande vento com que estive até a quarta da alva, com que me levei por não poder sofrer o mar com o vento sul de oés-sudoeste, .......” ( pg. 90,1)

Teve de regressar ao ponto de partida.

“Aos 27 (de Maio) saí do reino de Cassane com o vento leste, terrenho, na volta de sudoeste, correndo a costa de que vou fazendo larga descrição. Nesse dia foi o vento até oeste, correndo pelo norte. Governando ao sudoeste por fundo de doze braças de vasa solta que está por todo o mais desta costa. Surgi à noite em dez braças, uma légua da terra, indo-se o vento de noite a lés-sueste. Levei-me ante-manhã com grandes vigias, e amanhecendo vi uma ilha pela proa e, largando a manchua com gente, a mandei fosse por uma banda dela, e eu fui com a caravela pela outra, com os prumos na mão, ao longo da qual fui distância de meia légua, sempre por fundo de doze braços de boa areia miúda e cascalho e areia farinhenta.....” (pg.99)

“Vi hoje (30 de Maio) um feijão (ave de tamanho de um pombo) dos que achamos por altura das ilhas de Tristão da Cunha até o Cabo, o que é maravilha: nem pode ser senão que veio de lá com alguma nau por não haver estes pássaros em outras paragens”

“Aos 31 (de Maio) tomei o Sol e fiquei em 18 graus e um quarto. Diminuiu-me a nau três léguas para o norte com as voltas que fizemos esta noite muito curtas, e por arribarem em popa ao virar, por não fazer mal à manchua, que levava por popa. Como amanheceu, que aguentou o Sol o dia e acalmou o vento sul e foi-se a viração de sudoeste e, ao tomar do Sol, tornei a tomar um baixo, digo tornei a ver um baixo, que me demorava ao sul, onde rebentavam seis mares de comprido, que deve ser certo meia légua para se ver ao longe, e como o vento me era escasso para o cavalgar por barlavento, surgi em fundo de 25 braços, areia preta .E com duas horas de Sol, caçando-me a âncora, com a grande vaga que vinha de sudoeste, suposto que o vento era pouco ou era oeste, fiz-me à vela na volta do sueste por me apartar do baixo, e, como digo, me demorava ao sul, e assim toda a noite fui com a manchua com o prumo na mão e lua muito formosa, indo sempre por fundo de vinte até vinte cinco braças. Em o quarto de prima rendido, houvemos vista do baixo a barlavento como um tiro de uma peça, e assim fui na volta da terra, que era do sueste e quarta do sul, até que acalmando o vento, surgi em fundo bom de areia com uma âncora até amanhecer...” (pg.103)
“Cumpriram tudo isto com a maior pontualidade que puderam, continuando e suando na empresa até 17 de Setembro de 1614”, navegando “por costas e lugares tão pouco sabidos, de surgir, tomando todas as velas quase quatrocentas vezes; de tornar atrás pela braveza dos tempos contrários dez ou doze.” **
Isto escreve o P. Luís Mariano na segunda parte do livro, num relato que esse sim, com a sua descrição da terra e gentes, é o verdadeiro livro da viagem..
O comandante Humberto Leitão completou o diario de Paulo Roiz com a elucidação das expressões de marinharia.


*Tratava-se de Diego da Silva e Mendonça, conde de Salinas, então vedor da Fazenda em Portugal e seu vice rei em 1615
** Humberto Leitão Os dois descobrimentos da ilha de São Lourenço mandados fazer pelo vice –rei D. Jerónimo de Azevedo nos anos de 1613 a 1616

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