VIDA QUOTIDIANA DAS MONJAS NO MOSTEIRO MEDIEVAL - CAPº XVII O CASO DE D. FILIPA D'EÇA - PARTE 4 - O CASO DE D. FILIPA EM ROMA

>> quarta-feira, 25 de maio de 2016



Parece coisa tão ínfima para um rei, e no entanto assim foi. D. João III teve em Roma quatro homens de grande nível ocupados em demonstrar que num solitário mosteiro em Portugal uma mulher que fora eleita sua abadessa, não o devia ser. Mas as diligências pouco adiantavam. Baltasar de Faria, que desde 1543 era ‘enviado’ de Portugal em Roma, o homem quem obtivera do Papa Paulo III a Bula que estabelecera em Portugal o Santo Ofício da Inquisição, fora agora encarregado do caso de D.Filipa. Estava encontrando inesperadas dificuldades. A 25 de Março de 1546, oito anos depois do fatídico dia da eleição de dona Filipa, e depois ca recente confirmação dessa eleição pelo Papa, o Rei recebe carta de Faria narrando detalhadamente aquilo que e passava naquilo que designa por ‘caso de Lorvão’.    


D. João III
    
O Papa consentira que o caso fosse reexaminado, escreve Faria. Dera ordens ao seu Núncio em Lisboa para que se informasse pessoalmente do caso. Que ouvisse testemunhas, e que o referisse para Roma para que se resolvesse finalmente o Negócio. Havia três anos, que ele andava naquilo, escreve Faria, todos os dias insistindo com o Papa, até que este concedera agora este re-exame. Muito contrariado, porém, ‘com grandíssima dificuldade’. El-rei conhecia a natureza do Papa, já sabia que ele era ‘humbrioso’(sic). 


Papa Paolo III  E os sobrinhos
Ottavao e Alessssandro Farnese
(Tiziano)
                              O Papa era influenciado pelos que trabalhavam a favor de dona Filipa, escrevia Faria, e que lhe diziam que el-rei favorecia ‘don’Ana por alguns respeitos’. Ele provara que isso não era verdade, e conseguira que a nova solução se mantivesse em segredo até partir a carta para o Núncio. ‘Os de dona Filipa’ continuavam contudo a insistir junto do Papa, ‘todos os dias dão gritos ao Papa’. Era necessário que em Portugal se conseguissem prova convincentes ‘com a qual espero que Sua Santidade se quietará e dará fim a esta lide, que há sido a mais renhida de quantas há na Rota’. O cardeal Santa Frol trabalhara muito bem naquele assunto, acrescentava Faria, seria bom que o rei lho agradecesse.6
Dois anos depois tudo estava na mesma. Eram precisos mais esforços da parte de Lisboa, escrevia Faria a 15 de Junho de 1548. Seria bom que o el-Rei ou a Rainha escrevessem aos cardeais Farnese e Santa Frol, dando-lhes conta que dona Filipa não queria a concórdia na forma que Sua Santidade ordenara.7 Um mês depois, nova paragem no negócio. O Papa insistia em que tinha de se fazer justiça, e justiça era, na opinião da Rota, julgar a favor de dona Filipa.8 ‘Poucos dias há que avizei Vossa Alteza como tendo Sua Santidade dado comissão para que se procedesse na causa de Lorvão a instância da parte adversa’, escreve Baltasar de Faria a 8 de Julho de 1548. Ele acudira logo, fazendo revocar o que a parte adversa adiantara. Mas Sua Santidade, ‘ou movido por más informações, ou por lhe parecer que nisso mostrava seu valor, ou por qualquer outro respeito’, ordenara que o juiz da causa procedesse, dizendo que, ao agir assim, obedecia aos desejos de D. João III. Ironia, que arrasava Faria: ‘De modo que debaixo deste nome se quis justificar, e não bastou fazer-se nisso tudo aquilo que se pode imaginar para o desviar deste propósito, porque não ficou nada por fazer de minha parte, metendo nisso cardeais servidores de Vossa Alteza, acreminando-lhes (sic) o caso como era necessário, e tudo o mais que me pareceu a propósito’. O embaixador de Portugal, D.João de Meneses, também trabalhava no ‘negócio’, tanto junto do Papa, como junto dos cardeais Farnese e Santa Frol, ‘mas nenhuma coisa aproveitou, o Papa escusando-se sempre que justiça havia de haver seu lugar’. O embaixador explicava-se sobre o decorrer da causa, e o que ele fizera para adiantar. Já escrevera a Sua Alteza sobre o que se passava no negócio de Lorvão, agora podia informar que, tendo o Papa regressado de Frescata, ele lhe pedira audiência, e se queixara da pouca atenção que se haviam dado aos desejos e às razões de el-rei D. João III. Não era possível que Sua Santidade não soubesse ‘o que, entre turcos e mouros, era tão notório’, que eram o zelo e o cuidado do rei de Portugal na reformação dos mosteiros do Reino. Fizera-o em todos os mosteiros, e o mesmo queria fazer em Lorvão. Ora, se Sua Santidade acreditava que assim era, porque é que admitia ouvir naquela causa a dois ‘fugidos da Inquisição?’. A isso, e ao mais que ele dissera ao Papa, a resposta de Sua Santidade fora, ‘que não podia deixar de mandar à Rota que fizesse o que fosse justiça’. Ao que ele retorquira, que era isso mesmo que o seu Rei queria. Se ele não o quisesse por justiça, não estaria há tantos anos tratando daquela causa em Roma. Ele lembrara também ao Papa os escândalos que se poderiam seguir, se dona Filipa fosse abadessa Ao que o Papa respondera, que a Rota vira todos os pontos de uma parte e da outra, e julgara o caso da forma que lhe parecia ser justiça. O mais que podia fazer, era fechar os olhos, se D. João ‘como senhor e Rei da terra, que vê claramente os escândalos e inconvenientes dessa mulher ser abadessa’ não o consentisse, e fizesse o que lhe parecesse mais ‘serviço de Deus’.
O embaixador contestara, replicando ‘mil coisas’, até que Sua Santidade, ‘desejando achar uma tábua a que se acolhesse’, lhe dissera que, possivelmente, não estava bem informado, mas que o que lhe parecia era que aquilo não devia tocar muito ao rei, a não ser por querer favorecer a dona Ana Coutinho. ‘Isto, indigna-se o embaixador, quando Baltazar de Faria gastara os bofes com gritos e lamentos, e dito e feito naquele caso tudo quanto podia. Era de perder a cabeça. E não havia ‘causa mais publica na Rota nem nela coisa mais referida’.9
Finalmente Baltazar de Faria julga ver luz no horizonte. A 4 de Setembro de 1549 o enviado informa D. João III, que o caso de Lorvão se resolvera. Só até certo ponto, era verdade. ‘Depois de muito trabalho, e fadiga, que seria para nunca acabar haver-se de dar contas’, o negócio de Lorvão resolvera-se da seguinte maneira: Decidira-se, que o caso era afinal um caso de direito à posse dos bens do mosteiro, e, como a esses, dona Filipa de facto não tinha direito, dona Ana podia ficar no mosteiro. Era um compromisso, e muito duvidoso. ‘Ainda não havia a certeza da solução ser aceite por parte de dona Filipa’. E ela já agira. ‘Da parte de dona Filipa, como disto tiveram notícia, vendo desbaratado seu desenho, fizeram grandes clamores a Sua Santidade e todavia o vão informando com advogados consistoriais, ajudando-se de todo o favôr que podem’.
O caso de facto ainda se arrastaria, e não foi nunca resolvido declaradamente a favor de D. João III. Não pode haver duvida que D.Filipa teve poderosos apoios em Roma, mas quem foram? Não encontrei resposta. Baltasar Faria fala em ‘os de dona Filipa,’  o embaixador do rei dizia que ela tinha o apoio de ‘fugidos da Inquisição.’ O que é possível, considerando que era preciso dinheiro para ganhar apoios influentes em Roma, e a própria D. Filipa não o tinha de certeza. E não podia ter os conhecimentos necessários para a partir do mosteiro de Celas contactar gente influente em Roma. Consta que ela teve um conselheiro activo no abade Pedro de São Paulo de Almavisa, pequeno mosteiro de monges cistercienses perto de Coimbra. E talvez esteja nessa ajuda do abade de Almaviza a D. Filipa a explicação para que D. João III tivesse pedido a Júlio III, sucessor de Paulo III, que os bens de S. Paulo de Almaziva fossem transferidos para o instituição de ensino em Coimbra. O novo Papa acedeu e no ano de 1555, o mosteiro de onde o abade Pedro aconselhara D. Filipa d’Eça, era anexado ao Colégio do Espírito Santo em Coimbra.
             Quanto ao fundo da questão do rei contra D. Filipa d’Eça, tem decerto explicação na falsa ideia que D. João III fazia da vida monástica. Em uma das suas cartas dirigidas ao Papa o embaixador de Portugal escreve, que não era possível, que Sua Santidade não soubesse, ‘o que, entre turcos e mouros, era tão notório’, que eram ‘o zelo e o cuidado’ do rei de Portugal na reformação dos mosteiros do Reino. Fizera-o em todos os mosteiros, e o mesmo queria fazer em Lorvão. Ora, se Sua Santidade acreditava que assim era, porque é que admitia ouvir naquela causa a dois ‘fugidos da Inquisição?’.
É que Paulo III, educado no Humanismo, era menos inquisidor que D. João III. Ele teria compreendido que o rei favorecesse Dona Ana Coutinho por consideração pessoal - mesmo amorosa - mas não via razão para afastar D. Filipa pelo facto de ela, como as suas duas antecessoras, não favorecerem excessivos rigores no seu mosteiro.
Dona Filipa não veio a ocupar o lugar de abadessa em Lorvão, mas as coisas apaziguaram com o abadessado de dona Catarina de Albuquerque, que governaria até à sua morte. Foi a última abadessa perpétua em Lorvão. No ‘Livro das Preladas’ lê-se que, no ano de 1605, tendo morrido a abadessa dona Catharina de Albuquerque, e o Dom abade de Alcobaça, ‘estando presente no dito mosteiro à grade da igreja dele, para efeito de eleger nova prelada’, ele perguntara à madre prioresa e convento, se ‘eram contentes’ de elegerem prelada trienal, ou se queriam que esta fosse perpétua como até então tinha sido. Prioresa e convento tinham respondido, ‘de voto comum e sem discrepância alguma’, que queriam que as preladas, que dali em diante se elegessem, fossem trienais, e que dessa forma se começasse logo naquela eleição. E declararam mais, que renunciavam a ‘qualquer direito e accão, se algumas tinham, na eleição das abadessas perpétuas, por entenderem em suas consciências ser assim mais serviço de Deus e proveito espiritual e temporal do mosteiro.’ E assim sucedeu. Uma nova era começou no mosteiro de Santa Maria de Lorvão.

Nota: Na próxima semana não haverá publicação, retomaremos daqui 15 dias


6 T.T.  G25 de Março de 1546, oito anos depois do fatídico dia da eleição de dona Filipa, o Rei recebe carta de avetas da Torre do Tombo II, 5.45
7 T.T. Gavetas da Torre do Tombo II,5-60)

8 T.T. Gavetas da Torre do Tombo II,5-30
9 T.T. Gavetas da Torre do Tombo II,5-50

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VIDA QUOTIDIANA DAS MONJAS NO MOSTEIRO MEDIEVAL - CAPº XVII O CASO DE D. FILIPA D'EÇA - PARTE 3 - REVOLTAS

>> quarta-feira, 18 de maio de 2016

Aquela empresa podia ser dada por concluída, mas no mosteiro reinava um clima de revolta. A abadessa imposta pelo rei não conseguira conquistar a obediência das monjas, acabando por se retirar de novo para Arouca. -lhe uma sua sobrinha, dona Ana Coutinho, também monja de Arouca.
Era de novo uma escolha de D. João III ou do Cardeal-Infante, que, ambos eram regularmente informados do que se passava em Lorvão Em Dezembro de 1542 há de novo revolta contra a abadessa. Uma das mais insubordinadas era uma monja chamada Leonor Telles. A abadessa queria despachá-la para outro mosteiro, D. Leonor resistia, declarava que não saía de Lorvão.

Mosteiro de Arouca

Avisado, o rei tomou o caso a sério. Escreveu para Coimbra ao Juiz de fora Bartolomeu Fernandes. Que este, caso a dita dona Leonor se negasse a sair do dito mosteiro a bem, e a abadessa o requeresse, fosse a Lorvão e tratasse pessoalmente da ‘modança da dita dona Leanor’. O juiz devia agir com muita diligência e com toda temperança, de maneira que a coisa se fizesse ‘com menos escândalo e alvoroço’ possível.
O juiz obedeceu, foi a Lorvão, é recebido por dona Ana Coutinho, e combina com esta a forma e o dia da transferência da insubmissa dona Leonor. A coisa resolveu-se aparentemente a bem, quando juiz, no dia combinado, se apresentou no mosteiro para tratar da transferência, foi-lhe dito que dona Leonor, perante a ameaça de ser levada dali à força, se não saísse às boas, se decidira a partir, e já se fora. Juiz e Abadessa congratulavam-se com o feliz desfecho do incidente, quando, estando o juiz ainda falando com dona Ana no parlatório, apareceu uma religiosa, dizendo ao Juiz, que as freiras ‘das partes de dona Filipa d’Eça’ lhe queriam falar. E logo ali viera ‘uma soma de mulheres freiras’, escreve o tabelião que acompanhara o Juiz. Eram umas vinte ou trinta, segundo ele, as quais, todas juntas, ‘se vieram onde a dita dona Ana Coutinho abadessa estava, e todas juntamente alevantaram grande grita (sic), e fizeram grande alvoroço, todas contra a dita abadessa. Gritavam, batiam as palmas, e diziam que lhe levantavam a obediência, e não haviam de ir ao coro, nem obedecer a seus mandados. O juiz dizia-lhes que se calassem, falando muito alto, porque estavam na casa da grade, e separados por duas grades. Uma de ferro, outra de pau’, especifica o notário. O Juiz dizia às religiosas, da parte de el-rei, que se calassem, e que não fizessem mal á abadessa, sua prelada. Dona Leonor Telles já saíra dali por mandado de Sua Alteza.’  ‘Elas não se calavam. Continuavam a falar ‘muitas indignidades, e rijo, contra a abadessa’. A ele, tabelião, e aos outros oficiais que ali presentes, queria parecer, que as monjas se teriam ‘enviado’ a abadessa e a teriam maltratado, se não fosse o juiz as ameaçar com ‘grandes vozes’ que procederia contra elas, caso não se calassem e se recolhessem. O que finalmente tinham feito. Recolhendo-se ‘indignadas e com muita fúria’.3
Fora do mosteiro, as coisas não tinham estado paradas. Tanto dona Filipa d’Eça - a ‘Eleita’ - como dona Ana Coutinho - a ‘Intrusa’ - tinham apresentado os seus casos em Roma. E quem diz Dona Ana Coutinho, diz D. João III. Não é fácil entender, quem dos dois contendores, D. João III ou D. Filipa, agiu primeiro. Se o rei levara a causa a Roma para justificar a sua acção, expulsando do mosteiro uma abadessa canonicamente eleita, ou se agira em Roma por saber que D. Filipa levara lá o seu caso, e estava a ser muito bem até As forças não eram iguais. O rei tinha em Roma o seu embaixador, e aquilo que então se chamava um ‘enviado’, o homem conhecedor das minúcias da corte papal, e activo nos negócios diplomáticos. Dois conceituados cardeais, Farnese e Santa Frol, trabalhavam por Portugal, ou melhor, eram gratificados para trabalhar por Portugal. De parte de dona Filipa, refugiada no mosteiro de Celas em Coimbra, pouco era se esperar. Não se apresentavam, e menos, se defendiam causas em Roma sem meios financeiros, e sem apoios superiores. Ora, mesmo eu dispusesse deles, D. Filipa não podia agir sem ser aconselhada por quem estivesse dentro dos tramites daquelas questões. Consta que D. Filipa teve esse conselheiro na pessoa do abade do pequeno mosteiro de frades cistercienses em São Paulo de Salavisa, pero de Coimbra.
Fosse como fosse, o facto é que, em Dezembro de 1543, cinco anos após ser eleita abadessa de Lorvão e de lá ter sido expulsa a eleição de D. Filipa d’Eça era superiormente reconhecida, e confirmada por sentença papal.
D. João é notificado, e escreve de imediato a D. Filipa. A missiva do Rei é datada de Almeirim, ‘primeiro dia do mês de Dezembro de 1543, e diz:4.

‘Eu são informado que vós tendes havido da Rota executarias com vossas três sentenças sobre a posse e finitos da abadia de Lorvão, pelo que vos encomendamos muito que, vindo-vos as ditas executórias, não useis delas sem me primeiro as enviardes mostrar para eu as ver e prover nisso como for justiça.’ E não queria que ela continuasse a viver em Celas, comunicando com Lorvão ‘dando vexação’ às monjas do mosteiro. Esperava que ela tivesse esse seu desejo em conta, e se afastasse dali para mais de 15 léguas. Ele receberia disso prazer e serviço e o agradeceria muito. Dona Filipa respondeu, que recebera entretanto as sentenças dadas na Rota papal a seu favor. Era de crer, escrevia ela, que em Roma não julgariam a seu favor, sendo ela tão desfavorecido no reino como era, se a razão não estivesse de seu lado, ‘se me não sobejava na justiça pano para mangas’. Agora, que recebera as sentenças, podia falar sem receio, declarava, que não tencionava ceder no que era seu direito reconhecido pelas sentenças papais. Assinava: “De Vossa Alteza, abadessa de Lorvão dona filipa D’Eça ”A notícia da sentença favorável a dona Filipa soubera-se naturalmente em Lorvão, e as suas adeptas rejubilaram. Esperavam ver a sentença cumprida, e a abadessa por elas eleita, de novo no seu cargo. Como nada sucedesse, escreveram ao rei. A carta é de 3 de Fevereiro de 1544. Estranhavam, dizem aquelas religiosas, que, tendo elas escrito tantas vezes e com tanta verdade, a Sua Alteza, nunca tivessem tido resposta, e que Sua Alteza as deixasse à mercê das maldades de dona Ana. As anciãs, e a maior parte do convento e religiosas do convento, que tinham elegido a Filipa d’Eça por abadessa do seu mosteiro, informavam Sua Alteza, que viera um breve do Santo Padre, ordenando o secreto das rendas do dito mosteiro, para que dona Ana Coutinho não lhes pudesse tocar. E que o Juiz encarregado do dito sequestro, lhes dissera dele o necessário. Isso não sucedera. Não era a primeira vez que escreviam a Sua Alteza, contando como eram vexadas e desonradas. Agora pediam que el-rei, por pessoa insuspeita, mandasse tirar inquirição daquilo que dona Ana Coutinho lhes fazia. ‘Não era mulher para pessoa sofrer’. Se elas se queixavam, era porque as coisas eram mais do que se podia dizer. Elas eram mulheres fracas e enfermas, e não sabiam por quanto tempo poderiam resistir aos males e injustiças de que eram alvo. Havia doze ou treze monjas no cárcere ‘Deus haja misericórdia de nossas almas’.

Cárcere Monástico

Pediam de novo a Sua Alteza, que interviesse, para que não houvesse naquela casa ‘tantas exorbitâncias (sic), pois é Rei Cristianíssimo de que esperamos Justiça’. Esperavam que Sua Alteza não fizesse com aquela carta o que fizera com as outras, que elas lhe tinham escrito. Que lhes desse ouvidos, e não acreditasse falsas informações delas. "Oiça-nos, pois lhe pedimos justiça e mercê e por verdade nos assinamos aqui todas”. Seguem-se as assinaturas de quarenta e quatro religiosas. D. João continuou a ignorar pedidos, ou não recebeu as cartas que lhe eram dirigidas. As cartas escritas do mosteiro eram decerto na sua maioria apreendidas. Pois apesar da vigilância que decerto existia, uma carta dirigida pela mesma ocasião a dona Filipa lhe chegou às suas mãos, e foi por ela enviada a D. João. A carta, dirigida ‘À muito ilustre e magnífica Senhora, a senhora Dona Filipa d’Eça, abadessa de Lorvão minha senhora’ , é assinada por dona Violante de Castro. Dona Violante agradece a carta de dona Filipa, que lhe chegara às mãos. Fora consolação ver letra de Sua Senhoria em tempo em que tinham tanta necessidade dela, quando andavam todas ‘tão atribuladas e cheias de paixão’ com as coisas que dona Ana Coutinho lhes fazia. Não se poderia sofrer aquilo por muito tempo, ‘porque de duas há-de ser uma: ou morrermos todas juntas, ou fazermos mil desatinos como este que agora fez dona Ursula de Sotto Maior, filha de dom Nuno e dona Isabel sua mulher, que se vira tão desesperada com má vida e muita perseguição suas, e vitupérios e desprezos que lhe fez.’ Muitas vezes lhe ouviram dizer, que, ou se havia de matar, ou fugir. Na última Quinta-feira de Fevereiro, deram por falta dela. Não lhes parecia que pudesse ter fugido, por ela ser muito nova, e não conhecer ali ninguém. Além de que era muito virtuosa. Viriam a saber, que a desesperação dela fora tão grande, que lhe fez parecer que poderia fugir, e ir ter a casa de sua mãe. Procurara fugir por um telhado, mas, estando nele, enfraquecera de tal maneira, que descera de novo, e se fora esconder no sótão da casa de lavor. E ali ficara quatro dias e quatro noites, sem comer e sem beber, ‘com desejo e determinação de se deixar morrer assim desesperada antes que se tornar ao poder desta mulher’. Ao quinto dia do seu desaparecimento foi sentida de uma religiosa, que a fez sair do buraco onde estava. Parecendo já mais coisa do outro mundo do que daquele, escreve dona Violante. “Nós, quando a vimos, não se podemos dizer o prazer que tivemos e as muitas lágrimas que com ela chorámos’ A Intrusa - dona Ana Coutinho - não a quisera ver, e no dia seguinte ‘se foi a Cabido e a mandou levar lá, e, depois de a vituperar e desonrar, e assim a todo o convento,’ mandara-lhe tirar o hábito e véu preto, e fizera- lhe vestir uma mantilha de burel, que a cobria até aos pés, e pô-la no grau mais abaixo de todos. E ordenara que às Sextas- feiras jejuasse pão e água, e que sempre comesse em terra, e ‘fosse em cruz toda (sic). E, de cada vez que acabassem as horas, se deitasse à porta da igreja estirada’. Todas se tinham indignado, e todo o convento se levantara, e se pusera de joelhos, pedindo-lhe ‘que se houvesse com ela piedosamente, e não lhe quisesse dar azo outra vez a tentar. Pediram-lho todas, e com tantas lágrimas, ‘que não houvera coração, por duro que fora, que se não demovera’ Pois a Intrusa, não cedera, ficara antes mais furiosa. Até Violante d’Azevedo, que era tão partidária dela como todas sabiam, ela empurrara com tanta força, que quase a ditara ao chão. Quando ela fazia isto a uma mulher tão velha, e que sempre fora coxa, ‘julgue Vossa Senhoria o que fará a outras’.  Por fim, a abadessa castigara a todas tirando-lhes um dos pães até à Páscoa. Mas o que elas mais sentiam, escrevia a autora da carta, era que ninguém acreditaria no mal delas, porque elas mesmas, que o padeciam, não o conseguiam dizer, porque as coisas eram tantas e tão grandes, ‘que por umas (se) esquecem as outras, e fica em nossa memória o que elas causam. Que são muitas enfermidades desvairadas e tanta magreza, que todas parecemos tísicas’. Se Deus não se lembrasse delas, e lhes trouxesse dona Filipa de volta, e as livrasse de dona Ana, ela tinha a certeza que muitas delas morreriam. ‘Se nos Vossa Senhoria de alguma maneira poder acorrer, faça-o, por amor de Nosso Senhor ao menos. Pois, já (que) os corpos estão destruídos, não percamos as almas, que é impossível poderem-se salvar em tal poder. As queixas soam a verdade, e nem todas as cartas que foram dirigidas ao Rei foram confiscadas. Ele não podia ignorar por completo o que se passava. Seria difícil perceber com, sabendo-o, não lhes deu remédio, se não houvesse claros indícios - já apontados -, de que D. João tinha uma concepção inquisitorial da religião, e estava perfeitamente de acordo com os rigores impostos às monjas pela abadessa por ele nomeada.






3 T.T. Corpo Cronológico Mº 73 Nº27
4 T.T. Corpo Cronológico Maço 74 nr. 28
5 T.T: Gavetas. Maço XV-1-31

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VIDA QUOTIDIANA DAS MONJAS NO MOSTEIRO MEDIEVAL - CAPº XVII O CASO DE D. FILIPA D'EÇA - PARTE 2 - A EXPLUSÃO

>> quinta-feira, 12 de maio de 2016

Colocado perante a eleição de D. Filipa, que dois bacharéis não tinham sabido impedir, o rei nomeia novo magistrado para tratar do caso. Magistrados de Coimbra tinham demasiadas ligações com o grande mosteiro. Era mais que certo, que lhes faltava ânimo e entusiasmo para expulsar uma dona Filipa d’Eça, que fora eleita abadessa. D. João encarregou desta vez a missão ao doutor Gaspar Vaz, um juiz que tinha a grande qualidade de não ser de Coimbra. Saberia correr com dona Filipa e colocar outra abadessa em seu lugar. Estava já escolhida. Tratava-se de dona Melícia de Melo, monja de Arouca. Dona Mélicia encontrava-se há tempos instalada em Botão, na quinta que o mosteiro ali tinha, esperando pelo momento em que houvesse finalmente um juiz capaz de a instalar à cabeça do mosteiro. O rei declarava estar apoiado nessa medida pelo Cardeal Infante, que era este quem indicara dona Melícia de Melo - abadessa de Arouca. - para o abadessado de Lorvão. O Cardeal dera as suas ordens ‘pelas quais deveis vós – o Dr. Gaspar Vaz - tomar posse do dito mosteiro de Lorvão.’ A prioresa e as monjas do mosteiro deviam obedecer às ordens do Cardeal Infante, e receber como sua, a abadessa por ele, Cardeal, indicara. Sua Eminência ordenava mais, que dona Filipa, que estava no dito mosteiro de Lorvão, e dizia ter sido eleita nele, saísse de lá. Devia largar a posse. que dizia ter dele, e entregá-la ‘livre e expeditamente’. O Cardeal, juntamente com Dom Augusto, bispo d’Angra, fizera já processo à dita dona Filipa. O doutor Gaspar Vaz tinha plena autoridade para executar aquela missão: ‘vos designo e certifico como tendo a vara (sic) de magistrado’. Logo que o doutor Gaspar Vaz recebesse aquela carta, iria a Lorvão, levando consigo as forças que lhe parecessem necessárias para se fazer obedecer. Uma vez chegado ao mosteiro, diria à dita dona Filipa, que saísse de lá, e obedecesse em tudo às ordens do senhor Cardeal e dos seus delegados, ‘notificando- lhe a ela, da minha parte, que a isso tenho por serviço de Deus e meu. E que cumpra em tudo a dita ordem que vos confio’. Caso dona Filipa não obedecesse, o juiz podia usar de força. ‘Podeis tirá-la fora do dito mosteiro e sítio de Lorvão pela força e contra sua vontade’, escrevia ainda o rei. Notificaria disso a prioresa e as religiosas, ordenando-lhes, que obedecessem às ordens do Cardeal. E dizendo-lhes da parte dele, Rei, que lhe abrissem as portas do dito mosteiro, visto ele ter mandato para ‘expulsar a dita Dona Filipa e pôr na posse a dita Dona Milícia de Melo’. Prevendo o caso de dona Filipa não obedecer, e das monjas estarem de seu lado, D. João dava claras instruções sobre como proceder. O juiz, com os homens que para isso levava, abriria as portas do mosteiro com os fortes, ‘se bem que honestos, modos, que pudesse, e extrairia dele à dita Dona Filipa’. Se a prioresa e as monjas quisessem vir onde o juiz estivesse para saber o que se passava, o doutor juiz podia permiti-lo. Em seguida diria à porteira para lhe abrir as portas, e, se ela não o fizesse, mandaria abri-las pela força. E entraria no dito mosteiro: ‘com a advertência que, quando entrardes, não fáceis desonestidade, nem nada que não seja devido’. Mandaria pôr portas novas em todo o mosteiro, ficando com as chaves de tudo, advertindo as oficiais, que não tirassem nada do que havia na casa. Uma vez isto feito, o juiz enviaria ao lugar do Botão buscar a dona Melícia, e a instalaria na posse do mosteiro, entregando-lhe as chaves deste. Ordenaria às habitantes dele, aos seus rendeiros, enfiteutes e colonos ‘e todas as outras pessoas a quem interesse’, que obedecessem e reconhecessem a abadessa dona Melícia, e lhe entregassem as rendas do dito mosteiro Obedecendo a estas instruções, o doutor Gaspar Vaz, que, na altura de receber a carta do rei, se encontrava em Coimbra, partiu para Lorvão. Chegou no ‘oitavo dia do mês de Abril, véspera da Páscoa da ressurreição’ do ano de 1538’. O notário que anotou os acontecimentos, enumera um por um os doutores e executores que se deslocaram a Lorvão.

Magistrados e Mensageiro
Além de Gaspar Vaz nomeia a Bartolomeu Fernandes, esse, sim, juiz da cidade de Coimbra, acompanhado de seus Prectoribus, sive barresteris, com escrivãos das chancelarias. Presentes ainda: Pedro Tagarra, executor e bacharel do dito juiz; Jorge Dias, Pedro Dias, Gonçalo de Lamego, Jorge Vaz e Henrique Brandeiro, todos tabeliães e habitantes da cidade de Coimbra; Benedito Fernandes e Sebastião Vaz, mensageiros; Hilário e João Fernandes, e outros homens e soldados dos bacharéis. Cristovão Fernandes e Deus dado Peres, ferreiros. E muita outra gente, a pé, a cavalo, e esta armada de flechas e escopos e pês ‘ou o quer que seja’.
E ainda António de Sá, executor, João Cerveira, notário, João Fernandes, escrivão de notário, e Afonso Fernandes, seu mensageiro: ‘E com esses magistrados vinham os ditos ferreiros, com serras e escopos e outras ferramentas para com eles abrirem e demolirem as portas do dito mosteiro, como com efeito fizeram, semeando pavor e criando terror’, comenta o autor do relato. Aproximando-se das portas, os homens procuraram abri-las com traves de ferro. Então apareceram à porta do mosteiro o doutor Francisco Mendes, e o procurador do mosteiro, os quais, declararam, que vinham da parte de dona Filipa d’Eça e do seu convento saber ao que vinham. O doutor Gaspar Vaz disse das ordens que trazia, e que pretendia entregá-las. Então, anota o notário, ‘perante mim, notário público e testemunhas abaixo indicadas, compareceram em pessoa dona Filipa d’Eça, abadessa eleita do dito mosteiro, e a mim me disse, que era verdade que, como o dito mosteiro vacasse por morte de Margarida d’Eça, última abadessa, as religiosas do mosteiro fizeram a sua eleição, na qual fora ela própria eleita por abadessa pelas anciãs e pela maior parte daquele mosteiro no dia 11 de Fevereiro ano de 1538’. Desde esse tempo estivera sempre em pacífica posse, estando à frente do dito mosteiro com a obediência das supraditas religiosas. Quanto à carta que el-rei lhes enviava, Dona Filipa e as religiosas declararam que não iriam ao locutório recebê-la. Os notários anotaram-no devidamente: ‘e disso fizeram acta o doutor Francisco Mendes e o licenciado João Vaz’. No entanto, passado algum tempo, aquelas senhoras reconsideraram. Dona Filipa e algumas monjas vieram às janelas, e disseram que se tinham aconselhado com seus procuradores, e ouvido o magistrado enviado por el-rei, e que, tendo-as o dito magistrado feito ir ali sob pena de exílio, elas, ‘setenta e cinco mulheres mais ou menos’, aceitavam ouvir a carta de el-rei, e responder-lhe. O doutor Gaspar Vaz veio então com ‘seus oficiais de justiça e a supradita gente’, e dissera, que vinha da parte de el-Rei, o qual mandava que a dita dona Filipa saísse espontaneamente do mosteiro para outro local, E que ele a expulsasse caso ela não obedecesse. Exibira a carta, e as monjas leram-na. O doutor Francisco Mendes, respondeu pelo convento que a dita ‘Dona Filipa, eleita, e a maior parte das suas religiosas e convento’ queriam saber, se o juiz ‘lhes dava licença para que movessem justiça da dita Dona Eleita, se bem que o debate fosse com o Rei Nosso senhor, e tivessem visto as ditas ordens’. O juiz dissera que lhes dava licença. Da parte da dita dona Filipa fora então levantada a questão do braço secular. Que o bacharel Sebastião Lopes já quisera usar dele, diziam, e viam que Sua Alteza pretendia fazê-lo de novo. Elas queriam apresentar por escrito a sua oposição a esse acto. O juiz retorquiu, que ele era simples executor, que ‘não era defensor, salvo de actos para que tenha sido designado pelo Rei. Que, contudo, lhes dava uma hora para que a dita Eleita e o convento consultassem o que queriam fazer’. Ao fim da hora, o procurador do mosteiro dava conta do resultado da consulta. A dita Eleita, e o seu convento, não admitiam apelação a nenhuma justiça eclesiástica ou secular. Elas tinham o apoio ‘do Santíssimo Senhor nosso Papa Paulo 3º’ para que não se partissem as portas do seu mosteiro, nem se intrometessem nele, pondo a mão sobre dona Filipa, visto ela ser abadessa e sagrada, e que também o mosteiro era consagrado’. Caso procedessem da dita forma contra elas, ofenderiam o próprio Santo Padre, sob cuja protecção e defesa elas já tinham posto as suas pessoas, e o seu mosteiro com seus rendimentos. Já tinham também falado a cardeais e ministros do Papa para que se opusessem ao parecer do bispo de Angra e aos enviados do rei. Perante esta resposta, o juiz não esperou mais, deu ordem aos serralheiros para arrombarem as portas. O que eles fizeram ‘com machados, escopos, serras e outras ferramentas’, escreve o notário. Os homens irromperam então por ali dentro.com o juiz Gonçalo Vaz à frente. O notário não perdia pitada. Competia-lhe anotar, anotava. Anotou que a dita Eleita e as religiosas clamavam pelo auxílio de Deus e do Papa, que gritavam que ‘todos eram testemunhos, que as espoliavam, e com oposição delas entravam em seu santo mosteiro, cujas portas partiram, querendo, contra justiça, tirar de lá a que canonicamente fizeram abadessa, elegendo-a em justa forma, segundo seus privilégios’. Aquelas religiosas tinham-se refugiado no coro, onde se encontravam já outras monjas ‘recitando as suas loas, pois que era a vigília de Páscoa da Ressurreição’. Seriam umas setenta e cinco religiosas, as que em seguida ali se fecharam e fortificaram ‘com ferros fortes e outras muitas ferramentas’, e colocando ainda uma trave na porta do coro. Pondo os braços nessa trave, conseguiram durante algum tempo impedir a entrada dos homens do juiz, até ao momento em que um deles, o soldado bacharel Benedito Fernandes, feriu uma das religiosas com um corte no braço. As companheiras acudiram-lhe, permitindo assim que juízes e oficiais penetrassem no coro ‘pela força das armas’, ‘Dona Filipa eleita’ estava sentada numa cadeira, relata o notário, e, em sua roda, ‘como seu sustentáculo’, estavam as outras religiosas com a cruz alçada, cantando em uma só e alta voz: ‘in exit Israel de Egitii et super flumen Babilonis etc’ As religiosas continuavam lutando com o juiz e os seus oficiais para defender a abadessa, ‘chegando-lhes às mãos, até que eles chegaram à cadeira onde estava a dita dona Filipa Eleita’. Juiz, e bacharel, e escrivães, prenderam-lhe então as mãos e corpo, e, ‘horrivelmente rasgaram-lhe as vestes em parte, e trouxeram-na para o coro inferior, e, sem parar até ao coro da Igreja’. Ali colocaram-na ‘numa qualquer cadeira de madeira, digo, arrastaram-na a ela, - emenda o notário conscienciosamente - anunciando que discordavam, de que ela fosse abadessa benedita e sagrada’. Ao que dona Filipa retorquira, que era abadessa sagrada, sim, e que todos que ali estavam eram testemunhas, de como, por força e violência, a espoliavam da sua posse. Ela tinha instrumentos do Santo Padre e seus auditores, de como era abadessa benta e consagrada do mosteiro de que era expelida. E mais, era filha de D. Pedro d’Eça, bisneto de D. João, filho d’el rei D. Pedro, e já por isso, ao desonrarem a qualidade da sua pessoa, incorriam - como já lhe fora dito pela Cúria Romana - em pena de dez mil ducados por violência de direitos, e todas as outras multas, que eram aplicadas pela própria Câmara Secreta. As outras religiosas continuavam a defender-se, ‘e de tal forma, escreve o notário, ‘que algumas pessoas puseram mãos desonestas em dona Filipa, e a arrastaram até ao scriptorium do dito mosteiro, onde a puseram’. E então, como o juiz o tivesse autorizado, todas as religiosas, ‘umas sessenta ou setenta’, entre as quais a Prioresa e outras anciãs, aproximaram-se da cadeira de dona Filipa. E todas, ‘de que qualidade fossem’, aproximaram-se, e lhe beijaram as mãos, e a honraram, dizendo que ela era, e seria sempre a sua prelada e abadessa, que, para isso, elas a tinham elegido e dado obediência. E que as eleições por elas feitas, elas as consideravam válidas e ratificadas, e protestavam, que não obedeceriam a dona Melícia, nem por força, nem por nenhuma outra forma. Apoiavam declaradamente a Dona Eleita, sua prelada, e protestavam que por isso não incorriam em excomunhão nem em desobediência’. E para que Sua Santidade pudesse fazer justiça, restituindo-lhes a abadessa que tinham elegido segundo os seus estatutos, pediam aos notários e tabeliães ali presentes, que lhes dessem instrumentos do que tinham testemunhado. ‘E de todos os lados’, anota o notário, ‘se ouvia que elas eram filhas de Claraval, da Ordem de Cister, e portanto súbditas imediatas de Sua Santidade o Papa. El-rei e o Cardeal podiam dispor dos seus corpos e vidas, mas queriam arrancar-lhe as suas almas, e elas não reconheciam juramento a não ser ao Papa, aos superiores e abade de Claraval e cardiais. E muito mais disseram, escreve o notário, até que dona Filipa fora levada para fora’. Foia ‘lançada através das portas fora’, e transportada a um hospício que ali havia, pertencente a certas mulheres etíopes, que tinham sido servas do mosteiro. O Juiz entregou então as chaves do mosteiro a dona Melícia de Melo, nomeou outras oficiais para as diversas oficinas, e, como se tinham partido as portas, mandou homens ‘com lanças e partasanas’ ficar de guarda em frente delas.

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VIDA QUOTIDIANA DAS MONJAS NO MOSTEIRO MEDIEVAL - CAPº XVII O CASO DE D. FILIPA D'EÇA - PARTE 1 - A ELEIÇÃO

>> quarta-feira, 4 de maio de 2016


No ano de 1538 as monjas de Lorvão elegeram por sua abadessa a D.Filipa d’Eça, prima da falecida D. Margarida d’Eça. D. João III tentara impedir essa eleição, e, como não o conseguisse, agiria pela força, e acabou por levar o caso contra a abadessa eleita a Roma. Os enviados do Rei procuraram convencer a Rota papal, que a razão pela qual D. João III agia contra a eleição de D. Filipa d’Eça obedecia ao seu bem conhecido e provado empenho na reforma dos mosteiros do Reino. Dando a entender, que Lorvão carecia de reforma, e que D. Filipa d’Eça não era mulher indicada para estar à cabeça de um mosteiro necessitado de reforma.

 Ora o facto era, que não havia em Lorvão falta de moralidade e de religiosidade. Na insuspeita opinião do Abade de Claraval, Lorvão era, em 1533, um dos poucos mosteiros portugueses que não carecia de reforma. O Abade criticara na sua visita o excessivo nepotismo da então abadessa - os principais lugares eram ocupados por parentes suas - e a exagerada hospitalidade que o mosteiro concedia, mas não encontrara outros motivos de crítica em matéria de religião e moral. O visitador de Orem que visitara o mosteiro três anos depois, foi da mesma opinião. Não havia portanto necessidade de reforma Como então explicar o procedimento de D. João? Os Eças eram aparentados à casa real, pela sua descendência de D. Pedro e D. Inêz de Castro, Senhoras da família ocupavam cargos principais em alguns mosteiros do Reino, e em nenhum o seu domínio era tão preponderante como no de Lorvão, havendo quase cem anos, que abadessas daquela grande linhagem, governavam, para não dizer, reinavam, em Lorvão. É evidente que o Rei tinha uma particular animosidade contra aquelas longínquas parentas, que aquele feudo de Eças em Lorvão irritava D. João III, mas a leitura dos documentos mostra, que o antagonismo era também de ordem religiosa. As Eças eram mulheres que não comungavam das fanáticas ideias de rigor religioso que D. João advogava. A religiosidade que os visitadores de Cister tinham gabado em Lorvão não convencia D. João. Ao pretender impor a Lorvão uma abadessa da sua escolha, fá-lo muito claramente também para que ali se praticasse a religião como ele a entendia. Uma razão de ordem material também existia. D. Catarina de Eça, a primeira abadessa desse nome mandara fazer um grande número de objectos religiosos de grande qualidade e valor, e já o rei D. Manuel se interessara por esse tesouro, mandando avaliá-lo. O mesmo, como se verá, fará seu filho.

Em 1538 o rei era informado, que a abadessa dona Margarida d’Eça estava gravemente doente. Age imediatamente Escreve para Coimbra, ao bacharel Domingos Garcia dando-lhe rigorosas instruções em previsão da previsível morte da abadessa. Que o bacharel estivesse atento às notícias vindas de Lorvão, e que, logo que dona abadessa morresse, fosse ao mosteiro, e tomasse conta deste. Devia impedir, e por todos os meios, que as monjas elegessem nova abadessa. Ele, Rei, escrevia nesse sentido à Prioresa – em cujas mãos estaria o mosteiro após a morte da abadessa - em carta que juntamente enviava ao bacharel. Que este entregaria à dita senhora logo após a morte de dona Margarida. Eis a carta a Domingos Garcia, da qual se conserva o rascunho: 

‘Bacharel Domingos Garcia, eu, el Rey vos envio muito saudar. Nós houvemos agora grã recado como está abadessa de Lorvão em mui má disposição, e em perigo de sua vida. Pelo qual havemos por Nosso serviço vos avisar que tenhais grande avisamento de saber como ela está, e, em tal caso que, dispondo Nosso Senhor dela, possais logo, na mesma hora, ser disso notificado. E, como o fordes, logo, com grande diligência, vos hy ao dito mosteiro, e tomai por nossa parte a posse da abadia dele, e de todas as rendas do dito mosteiro’. E isso, escrevia o rei ainda, tanto no lugar de Lorvão, como em todos os outros lugares da comarca de Coimbra onde o dito mosteiro tivesse rendas. O bacharel faria o inventário de todos esses bens, assim como de toda a prata, e de todos os ornamentos existentes. E de tudo que houvesse no celeiro, e de tudo que existisse da abadessa dona Catarina d’Eça. Tratava-se de objetos dos quais o bacharel já em tempos fizera inventário por mandado de el-rei D. Manuel: ‘de que vós fizeste inventario pelo mandado d’el-Rey, nosso senhor e padre, que santa gloria haja’. Depois de ter feito o dito inventário de pratas e ornamentos de culto, o bacharel poria tudo - excetuando aquilo que fosse preciso para os ofícios religiosos - em mão de pessoa segura. A qual de nada disporia sem especial mandado. Do que houvesse na casa em pão e vinho e outros mantimentos, o bacharel forneceria à vigária e outras oficiais da casa o que fosse necessário para a manutência (sic) das monjas e servidores da casa. Enviaria ao rei cópia de todos os inventários. Poderia suceder, ‘que as freiras do mosteiro se queiram intrometer de eleger abadessa’. O bacharel entregaria à Prioresa a carta que juntamente recebia, pela qual ele, Rei, proibia essa eleição: ‘pela qual lhes defendemos, que não se intrometam de fazer eleição da abadessa’. Ele próprio trataria disso: ‘nós queremos intender acerca de quem seja provida a dita abadia, e que nela sirva a Nosso Senhor assim como seja mais servido, e que as coisas da religião melhor façam’. 1Era, como atrás já se disse, à prioresa - ou vigária, como também se designava – que cabia o governo depois da morte da abadessa. E ela que era responsável pela eleição de uma nova prelada. D. João escreve-lhe a seguinte carta:

“Vigaria, sub-prioresa, freiras e convento do mosteiro de Lorvão, nós el-Rei vos enviamos muito saudar. Nós houvemos agora recado como a abadessa desse mosteiro estava muito doente, e de tal modo que sua vida está muito perigosa’. A notícia entristecera-o, ‘pela bondade e virtudes’ dessa senhora. Dispondo Deus chamá-la a si, ele, Rei, trataria de a
D. João III
substituir, de forma, a que, a dita abadia ‘seja provida de pessoa que a Nosso Senhor inteiramente sirva, e com quem nossa Religião receba muito louvor e todas vós outras sejais consoladas’. Por tudo isso, proibia-lhes que fizessem eleição de nova abadessa: ‘vos encomendamos muito, e mandamos, que, por seu falecimento, vós não vos entremetais de fazer eleição de abadessa, e estejais regidas e governadas pelas oficiais da casa, assim como sempre se costumou fazer, até ser eleita abadessa’. Da qual, lê-se em seguida, ele, Rei, esperava em Nosso Senhor, seria tal ‘de que se sigam os bens que desejamos’. O bacharel Domingos Garcia, Juiz de Fora de Coimbra, dir-lhes-ia o mais que ele ordenava.
2

As coisas não correram exatamente como o rei previra e ordenara. O decorrer dos acontecimentos indica, que no mosteiro as monjas não foram apanhadas de surpresa e que se tinham preparado para uma eventual intervenção real. Houvera uma primeira alerta nesse sentido, quando, numa medida sem precedentes, el-rei D. Manuel mandara inventariar os bens de D. Catarina d’Eça depois da sua morte. Houvera provavelmente outras medidas, e talvez rumores que lhes chegavam de fora as tenham alertado. Contactos não faltavam a mulheres tão altamente aparentadas. É também muito provável, que o bacharel escolhido pelo rei não se tenha empenhado a fundo na execução das ordens de Sua Alteza. A corte estava longe, as ligações da gente de Coimbra a Lorvão eram muito fortes. O facto é, que nunca mais se fala em Domingos Garcia. E que o seu sucessor, um tal Sebastião Lopes, também seria substituído.

Tudo indica que as monjas de facto não se deixaram surpreender. Para não terem de obedecer a alguma ordem desagradável da parte do rei, elas fecharam as portas do mosteiro logo após a morte de D. Margarida, evitando assim a recepção de cartas ou outras missivas. Não as lendo, ou ouvindo, não eram obrigadas a seguir o que porventura nelas lhes fosse ordenado. Em seguida procederam à eleição de nova abadessa. A 11 de Fevereiro de 1538, dona Filipa d’Eça, era eleita abadessa do mosteiro de Santa Maria de Lorvão. Havia de novo uma Eça à cabeça do mosteiro.

Dona Filipa, que não era monja de Lorvão, encontrava-se de visita no mosteiro. talvez lá estivesse para acompanhar a abadessa sua prima, nos seus últimos momentos. O mais provável, é que ela ali se encontrava deliberadamente, em previsão do que poderia suceder. E mesmo muito provável, que a eleição de dona Filipa obedecesse a um bem pensado plano da abadessa dona Margarida. Há documentos que - indiretamente, é verdade – apontam nesse sentido. Datado de 15 dias do mês de Abril de 1534,- quatro anos antes da sua morte - ‘por mandado da senhora dona Margarida d’Eça, em a pousada da dita senhora, em presença de ela dita senhora e de seu convento’, a abadessa requerera a frei Thomas, monge da ordem de Cister, e notário apostólico, que lhes fizesse um treslado de certa Bula papal, e que esse treslado fizesse fé como se fosse o próprio original. Tratava-se da Bula pela qual o papa Honório III tomara o mosteiro, as suas monjas, e os seus bens sobre a sua protecção. Não se vê para que outro fim se desejaria naquela ocasião o treslado daquela antiquíssima Bula, a não ser para que a dita Bula pudesse ser usada em defesa de antigos direitos, apresentando-a em Roma.

A eleição de uma abadessa que não era monja do próprio mosteiro, como era o caso de Dona Filipa, tinha uma vantagem. Era previsível que o rei demitiria uma abadessa eleita contra a sua vontade. Se a escolha recaísse em uma monja do mosteiro, ela seria igualmente demitida, mas não necessariamente expulsa. O contrário dava-se com uma nova abadessa que não fosse do mosteiro. Essa, sim, seria decerto expulsa. E, de fora do mosteiro, Filipa d’Eça, - de Bula papal na mão – saberia agir junto das entidades religiosas e civis. E Frei Tomás, o notário apostólico, que D. Catarina d’Eça conseguira para Lorvão, era monge de Cister, e não deixaria de recordar às monjas, de Lorvão que elas eram filhas de Claraval, e que só deviam obediência a Roma A ter sido pensado e preconcebido, e o que se segui-o aponta nesse sentido, o plano foi brilhante.

Nota: este capítulo tem quatro partes. Na próxima semana será publicada a 2ª parte: A Expulsão



1 T.T. Cartas Missivas. Maço 2. 196
2 T.T. Cartas Missivas Mº1 Nr. 38
 

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