VIDA QUOTIDIANA DAS MONJAS NO MOSTEIRO MEDIEVAL - CAPº XVII O CASO DE D. FILIPA D'EÇA - PARTE 4 - O CASO DE D. FILIPA EM ROMA

>> quarta-feira, 25 de maio de 2016



Parece coisa tão ínfima para um rei, e no entanto assim foi. D. João III teve em Roma quatro homens de grande nível ocupados em demonstrar que num solitário mosteiro em Portugal uma mulher que fora eleita sua abadessa, não o devia ser. Mas as diligências pouco adiantavam. Baltasar de Faria, que desde 1543 era ‘enviado’ de Portugal em Roma, o homem quem obtivera do Papa Paulo III a Bula que estabelecera em Portugal o Santo Ofício da Inquisição, fora agora encarregado do caso de D.Filipa. Estava encontrando inesperadas dificuldades. A 25 de Março de 1546, oito anos depois do fatídico dia da eleição de dona Filipa, e depois ca recente confirmação dessa eleição pelo Papa, o Rei recebe carta de Faria narrando detalhadamente aquilo que e passava naquilo que designa por ‘caso de Lorvão’.    


D. João III
    
O Papa consentira que o caso fosse reexaminado, escreve Faria. Dera ordens ao seu Núncio em Lisboa para que se informasse pessoalmente do caso. Que ouvisse testemunhas, e que o referisse para Roma para que se resolvesse finalmente o Negócio. Havia três anos, que ele andava naquilo, escreve Faria, todos os dias insistindo com o Papa, até que este concedera agora este re-exame. Muito contrariado, porém, ‘com grandíssima dificuldade’. El-rei conhecia a natureza do Papa, já sabia que ele era ‘humbrioso’(sic). 


Papa Paolo III  E os sobrinhos
Ottavao e Alessssandro Farnese
(Tiziano)
                              O Papa era influenciado pelos que trabalhavam a favor de dona Filipa, escrevia Faria, e que lhe diziam que el-rei favorecia ‘don’Ana por alguns respeitos’. Ele provara que isso não era verdade, e conseguira que a nova solução se mantivesse em segredo até partir a carta para o Núncio. ‘Os de dona Filipa’ continuavam contudo a insistir junto do Papa, ‘todos os dias dão gritos ao Papa’. Era necessário que em Portugal se conseguissem prova convincentes ‘com a qual espero que Sua Santidade se quietará e dará fim a esta lide, que há sido a mais renhida de quantas há na Rota’. O cardeal Santa Frol trabalhara muito bem naquele assunto, acrescentava Faria, seria bom que o rei lho agradecesse.6
Dois anos depois tudo estava na mesma. Eram precisos mais esforços da parte de Lisboa, escrevia Faria a 15 de Junho de 1548. Seria bom que o el-Rei ou a Rainha escrevessem aos cardeais Farnese e Santa Frol, dando-lhes conta que dona Filipa não queria a concórdia na forma que Sua Santidade ordenara.7 Um mês depois, nova paragem no negócio. O Papa insistia em que tinha de se fazer justiça, e justiça era, na opinião da Rota, julgar a favor de dona Filipa.8 ‘Poucos dias há que avizei Vossa Alteza como tendo Sua Santidade dado comissão para que se procedesse na causa de Lorvão a instância da parte adversa’, escreve Baltasar de Faria a 8 de Julho de 1548. Ele acudira logo, fazendo revocar o que a parte adversa adiantara. Mas Sua Santidade, ‘ou movido por más informações, ou por lhe parecer que nisso mostrava seu valor, ou por qualquer outro respeito’, ordenara que o juiz da causa procedesse, dizendo que, ao agir assim, obedecia aos desejos de D. João III. Ironia, que arrasava Faria: ‘De modo que debaixo deste nome se quis justificar, e não bastou fazer-se nisso tudo aquilo que se pode imaginar para o desviar deste propósito, porque não ficou nada por fazer de minha parte, metendo nisso cardeais servidores de Vossa Alteza, acreminando-lhes (sic) o caso como era necessário, e tudo o mais que me pareceu a propósito’. O embaixador de Portugal, D.João de Meneses, também trabalhava no ‘negócio’, tanto junto do Papa, como junto dos cardeais Farnese e Santa Frol, ‘mas nenhuma coisa aproveitou, o Papa escusando-se sempre que justiça havia de haver seu lugar’. O embaixador explicava-se sobre o decorrer da causa, e o que ele fizera para adiantar. Já escrevera a Sua Alteza sobre o que se passava no negócio de Lorvão, agora podia informar que, tendo o Papa regressado de Frescata, ele lhe pedira audiência, e se queixara da pouca atenção que se haviam dado aos desejos e às razões de el-rei D. João III. Não era possível que Sua Santidade não soubesse ‘o que, entre turcos e mouros, era tão notório’, que eram o zelo e o cuidado do rei de Portugal na reformação dos mosteiros do Reino. Fizera-o em todos os mosteiros, e o mesmo queria fazer em Lorvão. Ora, se Sua Santidade acreditava que assim era, porque é que admitia ouvir naquela causa a dois ‘fugidos da Inquisição?’. A isso, e ao mais que ele dissera ao Papa, a resposta de Sua Santidade fora, ‘que não podia deixar de mandar à Rota que fizesse o que fosse justiça’. Ao que ele retorquira, que era isso mesmo que o seu Rei queria. Se ele não o quisesse por justiça, não estaria há tantos anos tratando daquela causa em Roma. Ele lembrara também ao Papa os escândalos que se poderiam seguir, se dona Filipa fosse abadessa Ao que o Papa respondera, que a Rota vira todos os pontos de uma parte e da outra, e julgara o caso da forma que lhe parecia ser justiça. O mais que podia fazer, era fechar os olhos, se D. João ‘como senhor e Rei da terra, que vê claramente os escândalos e inconvenientes dessa mulher ser abadessa’ não o consentisse, e fizesse o que lhe parecesse mais ‘serviço de Deus’.
O embaixador contestara, replicando ‘mil coisas’, até que Sua Santidade, ‘desejando achar uma tábua a que se acolhesse’, lhe dissera que, possivelmente, não estava bem informado, mas que o que lhe parecia era que aquilo não devia tocar muito ao rei, a não ser por querer favorecer a dona Ana Coutinho. ‘Isto, indigna-se o embaixador, quando Baltazar de Faria gastara os bofes com gritos e lamentos, e dito e feito naquele caso tudo quanto podia. Era de perder a cabeça. E não havia ‘causa mais publica na Rota nem nela coisa mais referida’.9
Finalmente Baltazar de Faria julga ver luz no horizonte. A 4 de Setembro de 1549 o enviado informa D. João III, que o caso de Lorvão se resolvera. Só até certo ponto, era verdade. ‘Depois de muito trabalho, e fadiga, que seria para nunca acabar haver-se de dar contas’, o negócio de Lorvão resolvera-se da seguinte maneira: Decidira-se, que o caso era afinal um caso de direito à posse dos bens do mosteiro, e, como a esses, dona Filipa de facto não tinha direito, dona Ana podia ficar no mosteiro. Era um compromisso, e muito duvidoso. ‘Ainda não havia a certeza da solução ser aceite por parte de dona Filipa’. E ela já agira. ‘Da parte de dona Filipa, como disto tiveram notícia, vendo desbaratado seu desenho, fizeram grandes clamores a Sua Santidade e todavia o vão informando com advogados consistoriais, ajudando-se de todo o favôr que podem’.
O caso de facto ainda se arrastaria, e não foi nunca resolvido declaradamente a favor de D. João III. Não pode haver duvida que D.Filipa teve poderosos apoios em Roma, mas quem foram? Não encontrei resposta. Baltasar Faria fala em ‘os de dona Filipa,’  o embaixador do rei dizia que ela tinha o apoio de ‘fugidos da Inquisição.’ O que é possível, considerando que era preciso dinheiro para ganhar apoios influentes em Roma, e a própria D. Filipa não o tinha de certeza. E não podia ter os conhecimentos necessários para a partir do mosteiro de Celas contactar gente influente em Roma. Consta que ela teve um conselheiro activo no abade Pedro de São Paulo de Almavisa, pequeno mosteiro de monges cistercienses perto de Coimbra. E talvez esteja nessa ajuda do abade de Almaviza a D. Filipa a explicação para que D. João III tivesse pedido a Júlio III, sucessor de Paulo III, que os bens de S. Paulo de Almaziva fossem transferidos para o instituição de ensino em Coimbra. O novo Papa acedeu e no ano de 1555, o mosteiro de onde o abade Pedro aconselhara D. Filipa d’Eça, era anexado ao Colégio do Espírito Santo em Coimbra.
             Quanto ao fundo da questão do rei contra D. Filipa d’Eça, tem decerto explicação na falsa ideia que D. João III fazia da vida monástica. Em uma das suas cartas dirigidas ao Papa o embaixador de Portugal escreve, que não era possível, que Sua Santidade não soubesse, ‘o que, entre turcos e mouros, era tão notório’, que eram ‘o zelo e o cuidado’ do rei de Portugal na reformação dos mosteiros do Reino. Fizera-o em todos os mosteiros, e o mesmo queria fazer em Lorvão. Ora, se Sua Santidade acreditava que assim era, porque é que admitia ouvir naquela causa a dois ‘fugidos da Inquisição?’.
É que Paulo III, educado no Humanismo, era menos inquisidor que D. João III. Ele teria compreendido que o rei favorecesse Dona Ana Coutinho por consideração pessoal - mesmo amorosa - mas não via razão para afastar D. Filipa pelo facto de ela, como as suas duas antecessoras, não favorecerem excessivos rigores no seu mosteiro.
Dona Filipa não veio a ocupar o lugar de abadessa em Lorvão, mas as coisas apaziguaram com o abadessado de dona Catarina de Albuquerque, que governaria até à sua morte. Foi a última abadessa perpétua em Lorvão. No ‘Livro das Preladas’ lê-se que, no ano de 1605, tendo morrido a abadessa dona Catharina de Albuquerque, e o Dom abade de Alcobaça, ‘estando presente no dito mosteiro à grade da igreja dele, para efeito de eleger nova prelada’, ele perguntara à madre prioresa e convento, se ‘eram contentes’ de elegerem prelada trienal, ou se queriam que esta fosse perpétua como até então tinha sido. Prioresa e convento tinham respondido, ‘de voto comum e sem discrepância alguma’, que queriam que as preladas, que dali em diante se elegessem, fossem trienais, e que dessa forma se começasse logo naquela eleição. E declararam mais, que renunciavam a ‘qualquer direito e accão, se algumas tinham, na eleição das abadessas perpétuas, por entenderem em suas consciências ser assim mais serviço de Deus e proveito espiritual e temporal do mosteiro.’ E assim sucedeu. Uma nova era começou no mosteiro de Santa Maria de Lorvão.

Nota: Na próxima semana não haverá publicação, retomaremos daqui 15 dias


6 T.T.  G25 de Março de 1546, oito anos depois do fatídico dia da eleição de dona Filipa, o Rei recebe carta de avetas da Torre do Tombo II, 5.45
7 T.T. Gavetas da Torre do Tombo II,5-60)

8 T.T. Gavetas da Torre do Tombo II,5-30
9 T.T. Gavetas da Torre do Tombo II,5-50

0 comentários:

Sobre este blogue

Libri.librorum pretende ser um blogue de leitura e de escrita, de leitores e escritores. Um blogue de temas literários, não de crítica literaria. De uma leitora e escritora

Lorem Ipsum

  © Blogger template Digi-digi by Ourblogtemplates.com 2008

Back to TOP