Os mosteiros de mulheres na sua maioria não marcaram pelo seu
nível intelectual. Eileen Power, falando dos mosteiros ingleses, escreve, que
das monjas inglesas não ficou obra escrita, que nem mesmo alguma pequena
crónica das coisas do seu mosteiro saiu de suas mãos. A autora contrasta esta
pobreza literária dos mosteiros ingleses com a produção de obras saídas dos
mosteiros femininos da Alemanha. No século IX, a abadia de Geldersheim na
Saxónia era famosa pela sua literacia. No século XII, a abadessa Herrad, do
mosteiro de Hohenberg compoz e iluminou uma enciclopédia. E nesse século, duas
místicas, Hildegard de Bingen e Elisabeth de Schoenau escreveram sobre as suas
visões. No século XIII, o convento de Helfta na Saxónia, era famoso pela sua
vida cultural. AS suas monjas iluminavam e colecionavam livros, escreviam e
aprendiam latim.
As monjas portuguesas, sem se poderem gabar do nível cultural das
monjas alemãs, foram - literariamente - um pouco mais produtivas que as
inglesas. Há que mencionar para a época de que nos ocupamos, e um pouco depois,
o livro de uma freira do convento de Jesus em Aveiro, e outro de uma religiosa do
mosteiro da Madre Deus de Xabregas. Primeiro em data, e em valor, é a ‘Crónica
da Fundação do mosteiro de Jesus de Aveiro’, ao qual está apenso o ‘Memorial da
Infanta Santa Joana’. A autora teria sido uma religiosa chamada Margarida
Pinheiro. O livro é obra histórica de valor, uma verdadeira crónica com dados
documentados. Contém considerações sobre a fundação do mosteiro e seus
primeiros tempos, e dá um importantíssimo relato da entrada da infanta Dona
Joana no mosteiro, e com a análise da sua pessoa.
O livro intitulado ‘Notícia da Fundação do convento da Madre de
Deus de Lisboa de Religiosas descalças da primeira regra de Nossa Madre Santa
Clara’. Data de 1639,e trata, segundo informa a autora, ‘de algumas coisas que
ainda se puderam descobrir das vidas e mortes de muitas madres Santas que houve
nelas’.
Sobre os objectivos do seu livro escreve a autora: ‘Sempre depois
que entrei para esta casa, tenho ouvido queixas às que vivemos nela, de não
haver alguma memória da sua fundação e das religiosas santas que daqui foram
para o céu. Porque, ainda que no arquivo haja papeis que de tudo dão notícia,
não é em forma que possamos ler quando queremos’. E no que tocava as
religiosas, escreve ela, havia no arquivo muito pouco em comparação do que
sabiam as religiosas mais velhas, com quem ela conversara. E mesmo elas diziam,
‘que não era nada o que me contavam pelo muito que lhes esquecia do que tinham
ouvido a outras mais antigas que conheceram. De modo que se houvera feito caso
de tudo o que se pudera escrever, se fizera um grande livro, e de muita
edificação. ’Receando que se viesse a esquecer o que devia ser tão vivo, a
autora metera mãos á obra. Não se achava com engenho para um livro na forma
usual, diz ela, pelo que decidira escrever o livro em forma de diálogos entre
algumas freiras. Era costume naquela casa, continua, festejar o Natal com
aquilo que elas designavam por fogueiras de Natal. Eram reuniões que se faziam
na casa onde estava o presépio, e em que se falava de coisas antigas, de
freiras de cuja santidade se conservara a tradição, e de muita outra coisa que
se dera no convento. A autora decide pois idear para o seu livro conversas
realizadas em algumas dessas fogueiras. Os diálogos seriam entre uma madre
abadessa, uma madre vigária e várias religiosas de nomes fictícios, tais como
Fibronia, Maurícia, Malvina, Marcela, Sabina, Eufrazia, e outros do mesmo
género.
Para o leitor de hoje, o livro é ilegível, mas a autora tinha veia
de escritora, e a sua obra interessa à história monástica, e, evidentemente, à histórico
daquele mosteiro. Em uma das ‘fogueiras’ fala-se da fundação do mosteiro pela
rainha D.Leonor, e ficamos a saber muita coisa sobre obras que subsequentemente
ali foram feitas, em particular por D. João III. Segundo uma das intervenientes,
o rei deliciava-se com a perfeição religiosa que reinava na Madre Deus,
encontrava ali o seu ideal de convento. Encantava-se, dizia outra interveniente,
com os rigores que ali se observavam. Julgando agradar a Deus, as religiosas da
Madre de Deus sujeitavam-se de vontade própria a terríveis mortificações, e
viviam num constante regime de fome, que, ou as levava muito cedo deste mundo,
ou as fazia morrer muito velhas As mortificações que aquelas mulheres se impunham
a si próprias, os sacrifícios que desafiavam a razão, que a outros repugnariam,
a D. João III agradavam. Se não tivessem outro valor, estes diálogos teriam
sempre interesse pelo que revelam de certos aspectos da pessoa de D.João III.
No mesmo diálogo fala-se de obras que se tinham feito no mosteiro, e que, por
ordem do rei, se tinham aberto, umas janelas no ‘pináculo’. Era uma sala
redonda sobre a capela-mor, de onde se gozava de uma larga vista. Algumas
religiosas não gostaram da ideia, ajoelharam diante do rei, e - ‘extremos
notáveis’, como observa a autora - pediram a Sua Alteza que tapasse as ditas
janelas. D. João, encantado, ‘para lhes dar gosto’ - de se sacrificarem ainda
mais - fez-lhes a vontade. Com o resultado, que, a partir daquela data a única
coisa que se avistava do pináculo, era a horta da casa. O que se podia
dispensar, observou Ludovina, uma das fictícias dialogantes, já que à horta
viam elas quando lá iam. Ludovina achava que aquelas santas podiam ao menos ter
deixado no pináculo uma fresta colocada a altura de poderem ver por ela. Só
lhes tinham deixado uma fresta ‘muy altíssima’, à qual só chegavam pondo-se se
em bicos dos pés. Nem todas as religiosas apreciavam as constantes visitas do
rei, diz-se no diálogo. Certa vez uma anciã até empurrara Sua Alteza pela porta
fora, aos gritos de “Rei fora, Rei fora”.
O mosteiro gabava-se de ser um dos mais nobres conventos do reino.
Estava-se em tempo dos Filipes, e três das intervenientes - Metildes, Malvina,
e Macária - lamentavam que já não houvesse em Lisboa nem Rei nem Paço, porque,
quando ainda os havia, sucedia muitas vezes que damas do Paço ali tomassem o
hábito. O que, segundo Metildes fora coisa de muita edificação e uma grande e
poderosa ajuda para se sustentar o costume que havia naquele mosteiro de só se
receber nele pessoas de muita qualidade e nobreza. Malvina concordava, era isso
que sustentava a perfeição daquela casa, ‘porque a nobreza é mais briosa, e a
conservação dela necessita de que o brio acompanhe o espírito. Porque quando
este não é muito, ‘a honra procura arremedá-lo.’ Macária era da mesma opinião.
E, quanto a ela, a autoridade delas era sustentada pelo que se dizia e sabia
delas da porta afora. Aquilo de elas não falarem, nem as verem, nem querem ser
vistas ‘nem com parentes mais chegados’ contribuía, achavam elas, para a sua
boa fama.
Lorvão também se podia gabar da qualidade e nobreza das suas
religiosas, mas não consta que estas pugnassem por serem conhecidas pelos seus
sacrifícios e rigores. A
Ordem de Cister não favorecia mortificações, queria oração e
trabalho. No arquivo de Lorvão encontram-se dois manuscritos de memórias de
algum interesse, se bem que muito diferentes. Datam os dois do século XVII. São
eles: o ‘’Livro das Preladas’, uma pequena obra sobre os acontecimentos mais ou
menos curiosos sucedidos nos diversos abadessados desde a fundação de Lorvão
como mosteiro cisterciense de mulheres. A autora serviu-se com certeza da
documentação do arquivo, mas é pouco provável que conseguisse ler os documentos
mais antigos. Tem o mérito de ter respeitado e transmitido a tradição oral,
sempre de atender em história monástica. O seu interesse, como diz o título do
livro, estava na vida das Preladas de Lorvão, e é uma valiosa fonte nesse
campo.
Bem diferente é o ‘Livro de apontamentos de soror Joana de Jesus’.
São as memórias dessa religiosa desde o dia em que, muito nova, saiu de casa de
seus pais, e entrou para o mosteiro de Lorvão. Memórias que não escondem experiências
místicas de natureza erótica. Que a autora provavelmente bão avaliava como
tais.
Não é por estas obrinhas que Lorvão é hoje conhecido. Quando no
sec. XIX se deu a extinção das Ordens religiosas, e os seus bens foram
confiscados, revelaram-se ao público laico tesouros artísticos desconhecidos, e
em particular, livros iluminados, quatro deles datando do século XII, que foi
por toda a Europa o grande século do manuscrito iluminado. Era nos mosteiros que
se centrava a vida cultural, foi nos mosteiros que se produziram os grandes
livros iluminados. Esperava-se de um grande mosteiro que fosse rico em livros
litúrgicos, e os próprios monges encarregavam-se da feitura desses livros.
Os monges negros de Lorvão seguiram decerto esse preceito. É
provável que, ao serem forçados a abandonar o seu mosteiro, os monges tenham
levado consigo alguns dos seus livros litúrgicos, deixando para trás aqueles
que não se destinavam aos ofícios divinos. Ficaram em particular duas obras de
excepcional qualidade. São eles o ‘Livro da Apocalipse’ e o ‘Livro das Aves’, ou
‘dos Passarinhos’. É uma cópia da obra De Avibus, da autoria de Hugues
de Fouilloy frade da Ordem de Santo Agostinho entre 1132 e 1172. Data também desse século a ‘Exposição de Santo Agostinho sobre salmos’.
Quando em 1211 as monjas da Ordem de Cister substituíram em Lorvão
os frades negros, a rainha D.Teresa, sua protectora, teve forçosamente de
preencher alguma lacuna em livros litúrgicos.
São do século XIII, quando começou a haver copistas e iluminadores
trabalhando fora dos mosteiros, os livros necessários para os ofícios
religiosos que se encontraram em Lorvão. São também do século XIII, e talvez
doados ao mosteiro pela Rainha, ou por algum devoto, os códices ‘régios’ - assim
nomeados pela sua riqueza, - que o mosteiro possuía. São eles: um ‘Livro da
Sagrada Escritura’, com inúmeras iluminuras de cenas sagradas e profanas; um
‘Testamento Velho’, com cenas bíblicas iluminadas a cores e oiro vivíssimo, e
com muitas das suas páginas cuidadosamente protegidas por pedaços de seda.
Ainda do século XIII são um Antifonário, e um Saltério, e dos séculos XIII ou
XIV um livro de ‘Responsos do Canto-chão’, um ‘Evangelário’, e um livro da
‘Definição da Ordem de Cister’. Este datado de 1308. Datando do século XV há um
missal, o conhecido por ‘Missal antigo de Lorvão’, mais um livro de ‘Responsos
de Canto-chão’. Este último, datado da era de 1451, ano de 1412, portanto. Foi
mandado executar por uma monja, e por ela oferecido ao mosteiro. Como se lê a
fl. 5v do livro. ‘A muito honrada e virtuosa empobrecida em virtudes Inês
Lourença Machada mandou fazer este livro aa (sic) honra de Deus e de seus
santos, para serviço do mosteiro de Santa Maria de Lorvão. Feito na era do
nascimento de mil quatrocentos e cinquenta e um anos’. ‘E por este livro deu
dois nicos (sic) e meio de prata’. No século XVI houve de novo uma dádiva do
mesmo género. Trata-se dos ‘Capítulos e Colecta que não tem o Breviário’,
escritos ‘no ano do N.de J.C. de 1503 por frei Tomé, capelão do mosteiro de
Lorvão’. A doadora é lembrada: ‘a muito virtuosa Margarida coelho, monja deste
mosteiro mandou fazer este livro’, lê-se. Havia ainda do século XVI um ‘Processionário’
de 1504, livro de canto-chão para ser cantado em procissão segundo o rito
cisterciense, um ‘Livro dos Hinos de Lorvão’, também de canto chão. Ainda do
sec XVI são: um ‘Psaltério e Breviário’, uma ‘Regra do Glorioso Padre São
Bento’, e um ‘Ritual Monástico’, este datado de 1547. Contem o cerimonial e
ofício da recepção das noviças. Todas estas obras são ricas em iniciais
fantásticas, em bordaduras de arabescos, e, no caso do ‘Ritual’ ornado de cenas
figurando gente comum, homens e mulheres, trabalhando. Lorvão entrava com este
livro nos tempos modernos. No primeiro milénio a arte cristã abandonara a
figura humana, o homem era o veículo de uma alma, vivia para se livrar dos seus
pecados e a sua alma alcançar o céu e a vida eterna. Ora, começando em Itália
nos primeiros anos do século XV, com Beunelesqui, Donatello e Massaggio dera-se
uma viragem na arquitetura, e na pintura. Descobrem-se de novo as artes da
Grécia e da Roma antiga, grega, reconhecia-se que o homem era uma figura única,
e que merecia ser reconhecida como tal. O artista pode finalmente pintar outra
coisa que figuras de santos e santas, delicia-se em mostrar homens e mulheres
em todos os momentos da vida. Os próprios livros de culto, e, em particular, os
livros de Horas enchem-se de figuras seculares, de homens e mulheres nos seus
lazeres e nas suas ocupações. Prefeito exemplo disso é o citado ‘Ritual de
Lorvão’.
As monjas de Lorvão não se distinguiram por grandes obras
literárias da sua mão, mas forram suficientemente cultas para saber apreciar os
grandes livros que tinham à sua guarda, de cuidar da sua conservação - a
humidade que permeava o mosteiro devia exigir contínua atenção - e de contribuíre-las
mesmas para o seu enriquecimento do seu mosteiro com dádivas pessoais.
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