VIDA QUOTIDIANA DAS MONJAS NO MOSTEIRO MEDIEVAL - CAPº XVIII LIVROS ILUMINADOS E OUTROS

>> quarta-feira, 8 de junho de 2016

Os mosteiros de mulheres na sua maioria não marcaram pelo seu nível intelectual. Eileen Power, falando dos mosteiros ingleses, escreve, que das monjas inglesas não ficou obra escrita, que nem mesmo alguma pequena crónica das coisas do seu mosteiro saiu de suas mãos. A autora contrasta esta pobreza literária dos mosteiros ingleses com a produção de obras saídas dos mosteiros femininos da Alemanha. No século IX, a abadia de Geldersheim na Saxónia era famosa pela sua literacia. No século XII, a abadessa Herrad, do mosteiro de Hohenberg compoz e iluminou uma enciclopédia. E nesse século, duas místicas, Hildegard de Bingen e Elisabeth de Schoenau escreveram sobre as suas visões. No século XIII, o convento de Helfta na Saxónia, era famoso pela sua vida cultural. AS suas monjas iluminavam e colecionavam livros, escreviam e aprendiam latim.
As monjas portuguesas, sem se poderem gabar do nível cultural das monjas alemãs, foram - literariamente - um pouco mais produtivas que as inglesas. Há que mencionar para a época de que nos ocupamos, e um pouco depois, o livro de uma freira do convento de Jesus em Aveiro, e outro de uma religiosa do mosteiro da Madre Deus de Xabregas. Primeiro em data, e em valor, é a ‘Crónica da Fundação do mosteiro de Jesus de Aveiro’, ao qual está apenso o ‘Memorial da Infanta Santa Joana’. A autora teria sido uma religiosa chamada Margarida Pinheiro. O livro é obra histórica de valor, uma verdadeira crónica com dados documentados. Contém considerações sobre a fundação do mosteiro e seus primeiros tempos, e dá um importantíssimo relato da entrada da infanta Dona Joana no mosteiro, e com a análise da sua pessoa.
O livro intitulado ‘Notícia da Fundação do convento da Madre de Deus de Lisboa de Religiosas descalças da primeira regra de Nossa Madre Santa Clara’. Data de 1639,e trata, segundo informa a autora, ‘de algumas coisas que ainda se puderam descobrir das vidas e mortes de muitas madres Santas que houve nelas’.
Sobre os objectivos do seu livro escreve a autora: ‘Sempre depois que entrei para esta casa, tenho ouvido queixas às que vivemos nela, de não haver alguma memória da sua fundação e das religiosas santas que daqui foram para o céu. Porque, ainda que no arquivo haja papeis que de tudo dão notícia, não é em forma que possamos ler quando queremos’. E no que tocava as religiosas, escreve ela, havia no arquivo muito pouco em comparação do que sabiam as religiosas mais velhas, com quem ela conversara. E mesmo elas diziam, ‘que não era nada o que me contavam pelo muito que lhes esquecia do que tinham ouvido a outras mais antigas que conheceram. De modo que se houvera feito caso de tudo o que se pudera escrever, se fizera um grande livro, e de muita edificação. ’Receando que se viesse a esquecer o que devia ser tão vivo, a autora metera mãos á obra. Não se achava com engenho para um livro na forma usual, diz ela, pelo que decidira escrever o livro em forma de diálogos entre algumas freiras. Era costume naquela casa, continua, festejar o Natal com aquilo que elas designavam por fogueiras de Natal. Eram reuniões que se faziam na casa onde estava o presépio, e em que se falava de coisas antigas, de freiras de cuja santidade se conservara a tradição, e de muita outra coisa que se dera no convento. A autora decide pois idear para o seu livro conversas realizadas em algumas dessas fogueiras. Os diálogos seriam entre uma madre abadessa, uma madre vigária e várias religiosas de nomes fictícios, tais como Fibronia, Maurícia, Malvina, Marcela, Sabina, Eufrazia, e outros do mesmo género.
Para o leitor de hoje, o livro é ilegível, mas a autora tinha veia de escritora, e a sua obra interessa à história monástica, e, evidentemente, à histórico daquele mosteiro. Em uma das ‘fogueiras’ fala-se da fundação do mosteiro pela rainha D.Leonor, e ficamos a saber muita coisa sobre obras que subsequentemente ali foram feitas, em particular por D. João III. Segundo uma das intervenientes, o rei deliciava-se com a perfeição religiosa que reinava na Madre Deus, encontrava ali o seu ideal de convento. Encantava-se, dizia outra interveniente, com os rigores que ali se observavam. Julgando agradar a Deus, as religiosas da Madre de Deus sujeitavam-se de vontade própria a terríveis mortificações, e viviam num constante regime de fome, que, ou as levava muito cedo deste mundo, ou as fazia morrer muito velhas As mortificações que aquelas mulheres se impunham a si próprias, os sacrifícios que desafiavam a razão, que a outros repugnariam, a D. João III agradavam. Se não tivessem outro valor, estes diálogos teriam sempre interesse pelo que revelam de certos aspectos da pessoa de D.João III. No mesmo diálogo fala-se de obras que se tinham feito no mosteiro, e que, por ordem do rei, se tinham aberto, umas janelas no ‘pináculo’. Era uma sala redonda sobre a capela-mor, de onde se gozava de uma larga vista. Algumas religiosas não gostaram da ideia, ajoelharam diante do rei, e - ‘extremos notáveis’, como observa a autora - pediram a Sua Alteza que tapasse as ditas janelas. D. João, encantado, ‘para lhes dar gosto’ - de se sacrificarem ainda mais - fez-lhes a vontade. Com o resultado, que, a partir daquela data a única coisa que se avistava do pináculo, era a horta da casa. O que se podia dispensar, observou Ludovina, uma das fictícias dialogantes, já que à horta viam elas quando lá iam. Ludovina achava que aquelas santas podiam ao menos ter deixado no pináculo uma fresta colocada a altura de poderem ver por ela. Só lhes tinham deixado uma fresta ‘muy altíssima’, à qual só chegavam pondo-se se em bicos dos pés. Nem todas as religiosas apreciavam as constantes visitas do rei, diz-se no diálogo. Certa vez uma anciã até empurrara Sua Alteza pela porta fora, aos gritos de “Rei fora, Rei fora”.
O mosteiro gabava-se de ser um dos mais nobres conventos do reino. Estava-se em tempo dos Filipes, e três das intervenientes - Metildes, Malvina, e Macária - lamentavam que já não houvesse em Lisboa nem Rei nem Paço, porque, quando ainda os havia, sucedia muitas vezes que damas do Paço ali tomassem o hábito. O que, segundo Metildes fora coisa de muita edificação e uma grande e poderosa ajuda para se sustentar o costume que havia naquele mosteiro de só se receber nele pessoas de muita qualidade e nobreza. Malvina concordava, era isso que sustentava a perfeição daquela casa, ‘porque a nobreza é mais briosa, e a conservação dela necessita de que o brio acompanhe o espírito. Porque quando este não é muito, ‘a honra procura arremedá-lo.’ Macária era da mesma opinião. E, quanto a ela, a autoridade delas era sustentada pelo que se dizia e sabia delas da porta afora. Aquilo de elas não falarem, nem as verem, nem querem ser vistas ‘nem com parentes mais chegados’ contribuía, achavam elas, para a sua boa fama.
Lorvão também se podia gabar da qualidade e nobreza das suas religiosas, mas não consta que estas pugnassem por serem conhecidas pelos seus sacrifícios e rigores. A
Ordem de Cister não favorecia mortificações, queria oração e trabalho. No arquivo de Lorvão encontram-se dois manuscritos de memórias de algum interesse, se bem que muito diferentes. Datam os dois do século XVII. São eles: o ‘’Livro das Preladas’, uma pequena obra sobre os acontecimentos mais ou menos curiosos sucedidos nos diversos abadessados desde a fundação de Lorvão como mosteiro cisterciense de mulheres. A autora serviu-se com certeza da documentação do arquivo, mas é pouco provável que conseguisse ler os documentos mais antigos. Tem o mérito de ter respeitado e transmitido a tradição oral, sempre de atender em história monástica. O seu interesse, como diz o título do livro, estava na vida das Preladas de Lorvão, e é uma valiosa fonte nesse campo.
Bem diferente é o ‘Livro de apontamentos de soror Joana de Jesus’. São as memórias dessa religiosa desde o dia em que, muito nova, saiu de casa de seus pais, e entrou para o mosteiro de Lorvão. Memórias que não escondem experiências místicas de natureza erótica. Que a autora provavelmente bão avaliava como tais.
Não é por estas obrinhas que Lorvão é hoje conhecido. Quando no sec. XIX se deu a extinção das Ordens religiosas, e os seus bens foram confiscados, revelaram-se ao público laico tesouros artísticos desconhecidos, e em particular, livros iluminados, quatro deles datando do século XII, que foi por toda a Europa o grande século do manuscrito iluminado. Era nos mosteiros que se centrava a vida cultural, foi nos mosteiros que se produziram os grandes livros iluminados. Esperava-se de um grande mosteiro que fosse rico em livros litúrgicos, e os próprios monges encarregavam-se da feitura desses livros.
Os monges negros de Lorvão seguiram decerto esse preceito. É provável que, ao serem forçados a abandonar o seu mosteiro, os monges tenham levado consigo alguns dos seus livros litúrgicos, deixando para trás aqueles que não se destinavam aos ofícios divinos. Ficaram em particular duas obras de excepcional qualidade. São eles o ‘Livro da Apocalipse’ e o ‘Livro das Aves’, ou ‘dos Passarinhos’. É uma cópia da obra De Avibus, da autoria de Hugues de Fouilloy frade da Ordem de Santo Agostinho entre 1132 e 1172. Data também desse século a ‘Exposição de Santo Agostinho sobre salmos’.



Quando em 1211 as monjas da Ordem de Cister substituíram em Lorvão os frades negros, a rainha D.Teresa, sua protectora, teve forçosamente de preencher alguma lacuna em livros litúrgicos.
São do século XIII, quando começou a haver copistas e iluminadores trabalhando fora dos mosteiros, os livros necessários para os ofícios religiosos que se encontraram em Lorvão. São também do século XIII, e talvez doados ao mosteiro pela Rainha, ou por algum devoto, os códices ‘régios’ - assim nomeados pela sua riqueza, - que o mosteiro possuía. São eles: um ‘Livro da Sagrada Escritura’, com inúmeras iluminuras de cenas sagradas e profanas; um ‘Testamento Velho’, com cenas bíblicas iluminadas a cores e oiro vivíssimo, e com muitas das suas páginas cuidadosamente protegidas por pedaços de seda. Ainda do século XIII são um Antifonário, e um Saltério, e dos séculos XIII ou XIV um livro de ‘Responsos do Canto-chão’, um ‘Evangelário’, e um livro da ‘Definição da Ordem de Cister’. Este datado de 1308. Datando do século XV há um missal, o conhecido por ‘Missal antigo de Lorvão’, mais um livro de ‘Responsos de Canto-chão’. Este último, datado da era de 1451, ano de 1412, portanto. Foi mandado executar por uma monja, e por ela oferecido ao mosteiro. Como se lê a fl. 5v do livro. ‘A muito honrada e virtuosa empobrecida em virtudes Inês Lourença Machada mandou fazer este livro aa (sic) honra de Deus e de seus santos, para serviço do mosteiro de Santa Maria de Lorvão. Feito na era do nascimento de mil quatrocentos e cinquenta e um anos’. ‘E por este livro deu dois nicos (sic) e meio de prata’. No século XVI houve de novo uma dádiva do mesmo género. Trata-se dos ‘Capítulos e Colecta que não tem o Breviário’, escritos ‘no ano do N.de J.C. de 1503 por frei Tomé, capelão do mosteiro de Lorvão’. A doadora é lembrada: ‘a muito virtuosa Margarida coelho, monja deste mosteiro mandou fazer este livro’, lê-se. Havia ainda do século XVI um ‘Processionário’ de 1504, livro de canto-chão para ser cantado em procissão segundo o rito cisterciense, um ‘Livro dos Hinos de Lorvão’, também de canto chão. Ainda do sec XVI são: um ‘Psaltério e Breviário’, uma ‘Regra do Glorioso Padre São Bento’, e um ‘Ritual Monástico’, este datado de 1547. Contem o cerimonial e ofício da recepção das noviças. Todas estas obras são ricas em iniciais fantásticas, em bordaduras de arabescos, e, no caso do ‘Ritual’ ornado de cenas figurando gente comum, homens e mulheres, trabalhando. Lorvão entrava com este livro nos tempos modernos. No primeiro milénio a arte cristã abandonara a figura humana, o homem era o veículo de uma alma, vivia para se livrar dos seus pecados e a sua alma alcançar o céu e a vida eterna. Ora, começando em Itália nos primeiros anos do século XV, com Beunelesqui, Donatello e Massaggio dera-se uma viragem na arquitetura, e na pintura. Descobrem-se de novo as artes da Grécia e da Roma antiga, grega, reconhecia-se que o homem era uma figura única, e que merecia ser reconhecida como tal. O artista pode finalmente pintar outra coisa que figuras de santos e santas, delicia-se em mostrar homens e mulheres em todos os momentos da vida. Os próprios livros de culto, e, em particular, os livros de Horas enchem-se de figuras seculares, de homens e mulheres nos seus lazeres e nas suas ocupações. Prefeito exemplo disso é o citado ‘Ritual de Lorvão’.

As monjas de Lorvão não se distinguiram por grandes obras literárias da sua mão, mas forram suficientemente cultas para saber apreciar os grandes livros que tinham à sua guarda, de cuidar da sua conservação - a humidade que permeava o mosteiro devia exigir contínua atenção - e de contribuíre-las mesmas para o seu enriquecimento do seu mosteiro com dádivas pessoais. 

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