VIDA QUOTIDIANA DAS MONJAS NO MOSTEIRO MEDIEVAL - CAPº XII A GENTE DE FORA

>> terça-feira, 29 de março de 2016


Um livro de notas do mosteiro de Arouca do século XIV, que, decerto por engano, se encontra entre os documentos de Lorvão, dá conta dos homens que aquele mosteiro empregava, e de como eram pagos. Não há livro igual para Lorvão, mas os dois mosteiros tinham muito em comum, Arouca era, tal como Lorvão, de monjas da Ordem de Cister, fora fundado pela infanta D. Mafalda, irmã da padroeira de Lorvão. Arouca era igualmente rico em terras. Os dois mosteiros empregavam forçosamente a mesma ordem de homens. Mandado fazer pela abadessa dona Guiomar Mendes de Vasconcelos, o livro indica em primeiro lugar o que recebiam ‘os monges e frades 00 confessos e homens de dona abadessa de capas e de saias’, seguem-se ´’azeméis, e mancebos de forno, e arengueiros, e todos os que hão de haver soldadas, e rações, e mantimento do dito mosteiro de Arouca”.1

            À cabeça desses homens estavam os padres monásticos que rezavam as missas, que ministravam os sacramentos. Era de entre eles que se escolhia o procurador do mosteiro, eram eles os escribas que trabalhavam no escritório. Seguiam-se-lhes, em ordem de importância, os ‘homens de dona Abadessa de capas e saias’, criados ou empregados fardados, dir-se-ia hoje. Andavam por fora, iam ali onde o mosteiro tinha terras e outros interesses. Recebiam soldada certa e ajuda de custo. Sendo esta maior ou menor conforme a distância das terras onde o serviço os levava. Se iam ao Porto, ou a terras de Além-Douro recebiam mais do que indo a locais da Beira ou Estremadura: ‘de andarem em Além Doiro dez reis e meio, e na Estremadura, três.’

            Pagavam-se também soldadas a um frangueiro, a um mancebo do hostal, ao poqueiriço, ao pateiro, ao cozinheiro dos frades confessos, ao forneiro, ao moleiro, ao mancebo do moleiro, ao carpinteiro, ao vaqueiro, ao ‘albergueiro do Monte de Fruste’, ao meirinho, ao tabelião, ao moço da capela, ao ferreiro, ao sapateiro das donas’, ao ‘sapateiro de fora’, e a numerosos azeméis.

Os ‘homens de Dona Abadessa’ de Arouca eram muito bem pagos e o mesmo sucederia sem dúvida em Lorvão. Recebiam oito libras para vestir e calçar, tinham mantimentos e ‘comedorias’ e, como foi dito, uma ajuda de custo nas suas deslocações.

Lorvão, tal como Arouca, tinha homens ‘de Dona Abadessa’ indo a toda a parte onde tinha propriedades. Verificavam obras, testemunhavam actos de compra, de venda, de arrendamento, e tinham frequentemente procuração da abadessa para firmar contratos. Em Fevereiro de 1349, Afonso Fernandes, ‘homem de dona Guiomar abadessa’,3 está longe de Lorvão, tratando de determinado assunto. Em 1367, cita-se um Martim Domingues ‘homem e procurador de Dona Abadessa’. Em documentos de Lorvão fala-se por vezes em ‘mandadeiro’. Num contrato de emprazamento feito em 1292 por dona Constança Soares estipulava-se que o ‘mandadeiro’ do mosteiro, quando fosse ‘pela renda’, fosse albergado durante um dia pelo rendeiro. Caso o mandadeiro, por motivos desse pagamento, se visse obrigado a ficar mais tempo do que previsto, as custas e despesas caberiam ao respectivo rendeiro. ‘Quando nossos mensageiros, oficiais e procuradores forem por vossa casa, recebam honra e gasalho com o que tiverdes’, recomendava em 1500 dona Catarina d’Eça.

Na sua maioria, os homens que tinham trabalho fixo no mosteiro, eram pagos também em géneros O livro da abadessa de Arouca especifica detalhadamente esses pagamentos. Aos frades que lá faziam serviço dava-se anualmente, a cada um, um par de sapatos de vaca e outro de carneiro, e de ração recebiam três pães de convento, meio alqueire de ‘vinho de convento’  - do bom, portanto - e azeite. Todos os Domingos dava-se-lhes uma peixota e meia. Sardinhas recebiam, lê-se, ‘o mesmo que há uma monja.’ Quando se fazia azeite, dava-se uma porção dele aos frades e, separadamente, mais algum para ‘folhões e pão de manteiga’. Quando se matava o porco, os frades recebiam duas espáduas dele, e pela Páscoa, tinham cabritos.

Os ‘homens de dona abadessa’ eram, como se viu, pagos em dinheiro, e quando iam fora, recebiam também dinheiro para mantimentos. Quando iam longe e se iriam demorar recebiam naturalmente mais. Em deslocação para lá do Douro recebiam 10 e meio reais para mantimento. Quando andavam na Beira e na Estremadura recebiam 3 reais. Quando estavam em Arouca tinham diariamente três pães ‘raçoeiros’ e três fiais (sic) de vinho. Aos Domingos recebiam quatro postas de carne e umas peixotas. Quando da matança, recebiam três espáduas de porco, que lhes deviam durar de Natal ao Entrudo. Pelo Entrudo davam-se-lhes cabritos ou leitões. Na Quaresma, recebiam, além da meia peixota que tinham aos Domingos, todos os quinze dias nove sardinhas. Os ‘mancebos de forno’ recebiam de soldada 4 libras e meia, uma capa e uma saia de burel e uns sapatos. De ração davam-se a cada um três pães pequenos e seis broas. Aos Domingos tinham oito postas de carne, e desde Natal até ao Entrudo recebiam sete espáduas de porco ‘para todos’. Pelo Entrudo ‘senhas letigas,’ (sic) e pelo ano fora sardinhas. Os azeméis tinham de soldada 4 maravedis e 5 reais e ‘senhos (suc) quinteiros de milho’. Recebiam por dia um micho e duas broas e ums ‘fiaes’ de vinho. Por dia de São Miguel havia para todos uma perna de vaca. Pelo Entrudo ‘senhas letigas (sic) ou senhas galinhas’. Tinham também uma espádua de porco pela matança e uns centos de sardinhas.

Indicam-se em seguida as soldadas e as rações que cabiam aos outros trabalhadores: ao mancebo da vinha da Corredoira, ao mancebo da Vorida (sic), ao frangueiro do Burgo, ao mancebo do hostal, ao porqueiriço, o pateiro, ao cozinheiro dos frades, ao forneiro, ao moleiro, ao mancebo do moleiro, ao carpinteiro, ao vaqueiro, ao albergueiro de Monte de Fuste. E ao juiz de Arouca, e ao meirinho, e ao tabelião, e ao juiz de Antoã. A sacristã, a ajudante da monja que tinha esse cargo, também recebia soldada. E o moço de capela, o ferreiro, o sapateiro das donas, e o sapateiro de fora.

A distribuição dos salários em dinheiro cabia à monja bolseira, a dos outros géneros à celeireira. Não devia ser pequena tarefa. Não havia dois assalariados recebendo as mesmas porções de pão, ou de outro géneros. O frangueiro do Burgo recebia três pães dos pequenos e desasseeis broas, o mancebo do hostal recebia três michos e dez broas etc.

Homens de fora eram também os ‘caminheiros’, que eram contratados para levar recados a longas distâncias. Em 1359, as religiosas do mosteiro de Chelas, querendo se queixar ao Papa do bispo de Lisboa ‘por razão de muitos agravos’ que o Bispo lhes fazia, contrataram -‘caçaram’-, um mensageiro, ‘que lhes levasse o dito feito à corte de Roma’. O mensageiro escolhido foi um clérigo chamado Pedro Annes. Confiaram-se-lhe as escritas que devia entregar na corte papal e vinte florentins de oiro para as suas despesas. Depois de se ler a escritura do contrato, o dito Pero Anes ‘começara logo a ‘andar seu caminho com um bordão na mão e um dobral ao colo como homem caminhante’. 3

Em 1417 certas Donas do mesmo mosteiro de Chelas mandam também recado a Roma. Queixam-se da sua prioresa. Fizeram contrato com ‘um mancebo chamado João Fernandes, oriundo de Vila Cova a Coelheira, no bispado de Lamego. O mensageiro, devidamente apetrechado ‘com um sombreiro e um dardo na mão e um barril na cinta’, recebeu moedas de vários países, prometeu que faria tudo que lhe mandavam, e que traria de todo recado ‘guardando-o Deus do mal e de outra cacom (sic)’. E pôs-se logo a andar ‘como homem caminhante, que segundo parecia queria seguir caminho’.4

 
Caminheiro
Estes caminheiros não eram os únicos correios contratáveis. Os recados para Roma sendo frequentes, havia quem se dedicasse unicamente a levar esses recados, eram ‘caminheiros da corte de Roma’. Não encontrámos contratos com caminheiro no arquivo de Lorvão, o que não espanta, o mosteiro tinha homens de sobejo a seu serviço a quem confiar missões dentro e fora do País.

Importante também entre a gente de fora, era o mestre das obras. Os incêndios eram frequentes, as inundações repetiam-se nos mosteiros, que na sua maioria estavam implantados junto de correntes de água. As tempestades de chuva e vento faziam estragos nos telhados. Convinha ter mestre de obra à mão, e lá estavam. Entre os homens que testemunharam em Lorvão o treslado de uma Bula papal estão ‘Johã de Salamanca, mestre das obras de carpintaria do dito mosteiro e Gonçalo Affonso, carpinteiro.’. Em 1500 uma procuração dada por dona Catarina d'Eça é testemunhada por ‘João Vaz, mestre das obras, e António Pires seu criado’

 
Gente das Obras

Indispensáveis para o bom funcionamento da vida doméstica e administrativa de um mosteiro situado longe de una grande cidade eram os almocreves, que traziam de fora tudo aquilo que não se criava, ou se cultivava, no mosteiro. 
O Almocreve
À Esgueira, vila de pescadores, iam os almocreves regularmente buscar o peixe, que os seus habitantes eram obrigados a fornecer ao mosteiro. Quando havia urgência, perante uma importante e inesperada visita, por exemplo, os almocreves iam comprar o peixe a Buarcos, que ficava mais perto do que a Esgueira

 

O livro de dona Guiomar é um livro de salários e rações. Não cabia nele a menção daqueles muitos homens que, trabalhando ‘fota’ do mosteiro, não eram obreiros pagos se bem que constituíssem o seu mais importante braço de trabalho. Arouca tinha decerto, tal como Lorvão, servos e escravos a seu serviço, gente que lhe pertencia, que era posse sua, transmitida de abadessa para abadessa, da mesma forma que se transmitiam as terras, e as casas, e os animais. Na sua carta de protecção ao mosteiro de Lorvão, o rei D. Fernando inclui nesses bens os seus ‘servos e escravos’. A coisa vinha de longe, do tempo dos monges negros. Muitos devotos tinham-lhes legado terras e casais, e outros bens, tais como os seus escravos mouriscos, ‘homes sarracenos meos’. A iniquidade tardou a desaparecer. Uma criança nascida de servo ou serva era serva como seus pais, a sua libertação dependendo do critério dos senhores de seus pais. Em princípios do século XV, um padre de Lorvão teve um filho de uma serva do mosteiro. A criança teria sido serva como a mãe, se não fosse as monjas terem unanimemente declarado que a criança seria forra. Os pais do progenitor, Lourenço Froles e Ana Vicente, festejaram a liberdade do neto, oferecendo ao mosteiro uma vinha e um cortiçal que tinham em Gondelim, junto de Penacova. A escritura dessa doação - espontânea ou não - refere que, por lhes ter sido dito, que “dona Mécia Vasques da Cunha abadessa do mosteiro de Lorvão e toda as outras donas e convento do dito mosteiro forraram e fizeram forro Gonçalo, neto do sobredito Lourenço Froles, e filho de Estêvão Lourenço, e porquanto o dito Estêvão Lourenço o fizera em uma serva do dito mosteiro, e o dito Gonçalo seu neto ficava por isto servo do dito mosteiro pela dita razão’.5

Trabalhavam ainda para o mosteiro sem salário aqueles homens os quais, pela carta de foral que lhes fora concedidas a eles, ou à terra onde residiam, eram obrigados a fazer ao mosteiro determinado serviço para o mosteiro. Assim, pelo foral dado em 1257 pela abadessa Dona Marina Gomes, à vila de Midões, que pertencia ao mosteiro, os seus habitantes eram obrigados a fazer anualmente ‘uma carreira a Lorvão ou a outro lugar que possam nesse dia vir a sua casa’. Ou seja, um serviço de recado ou de transporte, que não lhes ocupasse mais de um dia. Os homens de Torre de Vilela, que recebera foral da abadessa dona Urraca Reimundo, davam ‘um dia de lavor ao mosteiro’. Eram muitos dias de lavor, muitas carreiras e muitos outros serviços que o mosteiro recebia dos seus foreiros.

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VIDA QUOTIDIANA DAS MONJAS NO MOSTEIRO MEDIEVAL - CAPº XI DIREITOS E PRIVILÉGIOS

>> quinta-feira, 3 de março de 2016

Pelos séculos foram surgindo leis novas, que afectavam o proprietário monástico. O Papa estava longe, o Rei muito perto, era agora junto dos monarcas que as abadessas faziam valer a sua influência, apresentando-lhes as suas queixas, os seus pedidos. Requisitavam privilégios, pediam que não se mexesse nos que lhes tinham sido acordados, que se respeitassem os seus direitos adquiridos, que não se bulisse com os seus rendeiros e caseiros. Apresentavam as suas cartas, faziam valer a sua qualidade, e a da sua família. Eram ouvidas, e, em geral, atendidas. Em 1335, a abadessa dona Teresa Mendes escreve ao rei sobre o problema de géneros que não lhes eram devidamente fornecidos. Ela, e o seu convento, tinham terras e aldeias em muitas comarcas, e destas terras e aldeias deviam vir ‘capões, galinhas, frangões, cabritos e ovos’, que lhes eram muito necessários para mantimento da sua casa, das suas doentes, dos seus hóspedes, e ainda para fazer ‘bem e prestança’ a pessoas necessitadas. Muitos desses géneros eram tirados aos seus rendeiros antes de estes lhos poderem entregar. A abadessa pedia que Sua Alteza cotasse um lugar pertencente ao mosteiro, para dessa forma lhe garantir alguns dos géneros de que necessitavam. O rei mandou que fosse coutado o lugar de Terra Galega, com os homens que lá viviam. A esses homens não se podia, dessa forma, retirar os ovos das suas galinhas, ou matar seus capões, ou seus frangões, ou seus cabritos.4 Pelo que eles estariam em condições de pagar as rendas ao mosteiro. A abadessa dona Guiomar Fernandes de Panha queixava-se ao mesmo rei de abusos que os almoxarifes reais cometiam contra os direitos do mosteiro em Foz d'Arouce.

A Jugada
Alegava a abadessa, que essa aldeia fora de D. Afonso de Rouca, que por sua morte a aldeia ficara a sua filha, dona Sancha Afonso, monja de Lorvão, e que dela a aldeia passara para a posse do mosteiro. Além dos foros e direitos que lá tinha, o mosteiro levava em Foz de Arouce a oitava de tudo que os lavradores lavrassem e rompessem por detrás dos marcos com que a terra fora circundada. Pois agora, dizia a abadessa, os almoxarifes constrangiam os ditos lavradores a que, de algumas arroteias que faziam atrás dos ditos marcos, pagassem jugada ao rei. Eram jugadas que o rei não tinha o direito de exigir. D. Afonso mandou investigar o caso pelo inquiridor de Coimbra, a inquirição, feita em presença do inquiridor da abadessa, deu razão a esta, pelo que o rei ordenou aos seus almoxarifes que dali em diante não levassem jugada aos lavradores da Foz d'Arouce.5 Cinco anos mais tarde, sempre no longo reinado de D. Afonso IV, temos o caso dos lavradores que abandonavam as terras do mosteiro para trabalharem em outras. Era o resultado da calamidade que iria dizimar parte da população da Europa. Em Outubro de 1347, doze galeras italians, vindas da Crimea ancoraram no porto de Messina na Sicília, trazendo a bordo tripulações dizimadas por uma doença oriunda do Oriente. De Messina a peste espalhou-se a outros portos do Mediterrâneo, a portos franceses, espanhóis e portos do Magrebe. Em 1348 a peste grassava em Portugal. Ignora-se o número de vítimas, que causou, mas consta que Coimbra foi particularmente afectada, que a colegiada de São Pedro dessa cidade perdera em poucos dias, o prior e todos os seus religiosos. No ‘Livro das Preladas’, lê-se que no ano da peste grande morrera em Lorvão a abadessa dona Guiomar Fernandes de Panha, e não foi decerto a única vítima no mosteiro. Lorvão iria sentir grandemente as consequências da peste. Com a população dizimada, a mão-de- obra escassava, e os rendeiros descobriram que podiam trabalhar para outrem, e por bom salário, e largavam o trabalho nas terras do mosteiro. Havia agora um dado novo na sociedade: rural: muito e diverso trabalho, abrindo novas perspetivas à gente do campo.
Peste Negra
Peste Negra A abadessa de Lorvão expôs o caso ao rei. Muitos dos homens a quem o mosteiro tinha arrendado terras, as estavam a deixar, iam trabalhar por conta de outros: ‘deixam as ditas suas herdades, e vão lavrar outras muitas (sic) que acham, e, outrossim vão andar com outrem por seus jornais’. A abadessa pedia que o rei fizesse justiça, que seus juizes obrigassem os lavradores indicados pelos procuradores da abadessa a irem trabalhar nas terras do mosteiro. O rei acede. Ordena que os juízes ouvissem os procuradores de dona abadessa de Lorvão, e que, caso vissem que estes tinham razão, que ‘constrangessem’ os ditos lavradores, a ‘que lhes lavrem e perfeitem as ditas suas herdades, e lhes não desemparem, e lhes paguem suas rendas e foros e direitos’.6 Em 1369, é já a D. Fernando a quem a abadessa de Lorvão se dirige. Tratava-se de obter do rei, que os homens que trabalhavam para o mosteiro, e eram pagos por este, não fossem obrigados a fazer serviços para o conselho de Coimbra. Esses ‘mancebos e azeméis e outros servidores e homens paniguados’ que continuadamente serviam o mosteiro e deste tinham mantimento, não podiam ser dispensados para fazer serviços para outros, dizia a Abadessa. D. Fernando concordou, ordenou que não obrigassem os ditos mancebos.7 Os almoxarifes ignoraram a carta do rei, queixava-se a abadessa de Lorvão, continuavam a exigir as jugadas, querendo obrigar os lavradores, que viviam em terras do mosteiro de Lorvão, e as lavravam e semeavam, a que pagassem ao rei por ‘cada junta de bois, um moio de pão’ de jugada. Era coisa que nunca se fizera em memória de homem, afirmava a abadessa, e o pior era que por essa razão se estavam a despovoando terras e casais do mosteiro. D. Fernando, como o fizera seu avô, atendeu a reclamação. Ordenou que os lavradores e caseiros da abadessa de Lorvão não fossem obrigados a pagar jugada até que se determinasse, se eles não eram por lei obrigados a fazê-lo. E que, entretanto, lhes fossem entregues os bens que porventura tivessem sido penhorados para pagar ao rei as ditas jugadas.7 No mesmo dia, a 18 de Janeiro de 1378, em carta datada de Coimbra, e em atenção a outro pedido da abadessa de Lorvão, o rei permitia que os seus juizes ajudassem os procuradores da abadessa a cobrar as dívidas e direitos nas terras do mosteiro, já que os moradores procuravam fugir às suas obrigações, sendo nisso apoiados por muitos juízes das terras onde o mosteiro tinha propriedades.8 Passam os anos. Morre D. Fernando. O mestre de Aviz é declarado rei pelas cortes de Coimbra a 6 de Abril de 1385. E já a 14 desse mês, a abadessa de Lorvão apresentava ao novo rei o pedido de confirmação dos seus privilégios: ‘privilégios e liberdades e bons usos e costumes de que usavam desde o tempo dos outros reis.’ D. João I atendeu prontamente o pedido, exigindo unicamente que o mosteiro participasse no peditório, na ‘pedida’ que naquela ocasião se estava fazendo nos conselhos. A partir daqui estabelece-se por parte de Lorvão - como, decerto, por parte de outros mosteiros e outros privilegiados - o costume de apresentar ao rei, logo que este era aclamado, o pedido de confirmação dos privilégios de que usufruía. Mal o novo soberano ocupava o trono, lá apareciam os procuradores de Lorvão com as cartas de privilégio do mosteiro para serem vistas e confirmadas. É ainda D. João I quem dá ordem aos juízes de Coimbra, para que não permitissem que ‘gente poderosa’ contratasse, por soldada, outra qualquer forma, os filhos e filhas, ou os servidores dos caseiros do mosteiro de Lorvão. A abadessa queixara-se-lhe, que de outra forma os seus caseiros não teriam braços para trabalhar as suas terras, deixando sem cultivo os casais que arrendavam ao mosteiro: ‘com a qual cousa, ela, dita abadessa, e o dito seu mosteiro recebem grande agravo’.9 Já que os caseiros não amanhando, não tinha com que pagar as rendas ao mosteiro. Os senhorios religiosos eram em toda a Europa notoriamente mais brandos para com os seus rendeiros do que os leigos, mas não ao ponto de permitirem que lhes abandonassem as terras, e fossem trabalhar contra ‘soldo’ para outros senhores. Em 1430, a abadessa de Lorvão viu-se obrigada a defendeu o mosteiro da tomada do lugar do Paço pelos juízes do rei. Estes diziam ter ordem de tomar para o rei todos os lugares ‘de arcebispos e bispos e clérigos e mosteiros e ordens’ que estivessem em reguengos. O que era o caso do dito lugar do Paço, afirmavam os juízes. Dona Abadessa apresentou imediatamente documento que provava, que o Paço era do mosteiro havia mais de 250 anos. O rei ordenou aos juízes, que largassem mão do dito lugar e de todos os frutos e rendas dele.10 Em 1461, a pedido do conde de Marialva, D. Afonso V dispensa o mosteiro e as monjas de Lorvão do pagamento do antiquíssimo tributo de ‘colheita e jantar’, que se pagava ao rei quando este ia em visita às comarcas. O mesmo rei decide ainda a favor de Lorvão no curioso caso de certa palha que era tirada aos caseiros do mosteiro. A abadessa dona Brites da Cunha expusera que ela e o seu convento tinham casais, quintas e outras terras no termo da cidade de Coimbra e que, todos os anos, os seus caseiros e lavradores, depois de terem debulhado o seu pão, cediam ‘graciosamente segundo costume da terra’, aos fidalgos, cavaleiros e cidadãos escudeiros, palha para fazerem os seus palheiros. E a cada um segundo o que merecia. Da palha que restava, os caseiros faziam depois os seus próprios palheiros para ‘governança’ dos seus bois e outro gado. Ora aqueles mesmos senhores a quem se dava palha, mandavam agora homens seus às casas dos ditos lavradores, e tiravam-lhes mais palha. Prejudicando grandemente a estes, e ao mosteiro. Dona Abadessa tinha razão, achou o rei, e ordenou que, de ali por diante, ninguém tirasse palha aos lavradores e caseiros do mosteiro.11 Três anos depois do incidente da palha, a pedido da mesma dona Brites da Cunha, o rei permite que a abadessa mande coutar o ribeiro do Lorvão, que passava diante das portas do seu mosteiro. E isso, desde a azenha chamada de ‘Gil Alvares’ até ao Mondego. Ninguém poderia, de ali em diante, ‘matar ou mandar matar’ trutas no dito ribeiro, sem a autorização da abadessa. Se o fizesse, pagaria pena de dinheiro.12 Com D. João II pareceu que terminariam benesses em matéria de direitos adquiridos e privilégios. Em 1460, nas cortes de Évora, o rei ordenara ‘que as confirmações que havia de confirmar, não fossem quais como os reis seus antecessores costumavam’, escreve Garcia de Resende a esse respeito, ‘mas que todas as pessoas de quaisquer estado ou condição que fossem, assim eclesiásticos, como seculares e todos os mosteiros e igrejas de seus reinos,’ e cidades e vilas teriam de apresentar as doações, graças e privilégios que tivessem, para serem examinados pelos oficiais designados para o efeito. Aqueles a quem estes não reconhecessem justiça perderiam os ditos privilégios. No mosteiro de Lorvão não se sentiram por muito tempo os rigores da nova medida, e, em 1514, no reinado de D. Manuel I, a abadessa dona Catarina d'Eça obtém de D. Manuel, que frei Diniz, um frade de Alcobaça e notário apostólico que fazia em Lorvão as escrituras dos contratos, também lá pudesse fazer as escrituras públicas. Nas ordenações manuelinas, no título das Jugadas, era dito que os caseiros que pertencessem a privilegiados - o que era o caso dos de Lorvão - tinham de fazer escritura pública para serem dispensados da jugada. Era pois conveniente, que o notário que servia o mosteiro, pudesse tratar de assuntos de natureza pública. D. Manuel compreendeu a razão do mosteiro, e acedeu a que as escrituras feitas pelo dito frei Diniz fossem válidas como se fossem feitas por qualquer tabelião público. D. Manuel sugeriu mesmo que a abadessa lhe apresentasse um leigo da sua escolha, que ele confirmaria como notário público para aforamentos e emprazamentos.

NOTA : A publicação VIDA QUOTIDIANA DAS MONJAS NO MOSTEIRO MEDIEVAL será retomada no inicio de Abril

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