VIDA QUOTIDIANA DAS MONJAS NO MOSTEIRO MEDIEVAL - CAPº XII A GENTE DE FORA

>> terça-feira, 29 de março de 2016


Um livro de notas do mosteiro de Arouca do século XIV, que, decerto por engano, se encontra entre os documentos de Lorvão, dá conta dos homens que aquele mosteiro empregava, e de como eram pagos. Não há livro igual para Lorvão, mas os dois mosteiros tinham muito em comum, Arouca era, tal como Lorvão, de monjas da Ordem de Cister, fora fundado pela infanta D. Mafalda, irmã da padroeira de Lorvão. Arouca era igualmente rico em terras. Os dois mosteiros empregavam forçosamente a mesma ordem de homens. Mandado fazer pela abadessa dona Guiomar Mendes de Vasconcelos, o livro indica em primeiro lugar o que recebiam ‘os monges e frades 00 confessos e homens de dona abadessa de capas e de saias’, seguem-se ´’azeméis, e mancebos de forno, e arengueiros, e todos os que hão de haver soldadas, e rações, e mantimento do dito mosteiro de Arouca”.1

            À cabeça desses homens estavam os padres monásticos que rezavam as missas, que ministravam os sacramentos. Era de entre eles que se escolhia o procurador do mosteiro, eram eles os escribas que trabalhavam no escritório. Seguiam-se-lhes, em ordem de importância, os ‘homens de dona Abadessa de capas e saias’, criados ou empregados fardados, dir-se-ia hoje. Andavam por fora, iam ali onde o mosteiro tinha terras e outros interesses. Recebiam soldada certa e ajuda de custo. Sendo esta maior ou menor conforme a distância das terras onde o serviço os levava. Se iam ao Porto, ou a terras de Além-Douro recebiam mais do que indo a locais da Beira ou Estremadura: ‘de andarem em Além Doiro dez reis e meio, e na Estremadura, três.’

            Pagavam-se também soldadas a um frangueiro, a um mancebo do hostal, ao poqueiriço, ao pateiro, ao cozinheiro dos frades confessos, ao forneiro, ao moleiro, ao mancebo do moleiro, ao carpinteiro, ao vaqueiro, ao ‘albergueiro do Monte de Fruste’, ao meirinho, ao tabelião, ao moço da capela, ao ferreiro, ao sapateiro das donas’, ao ‘sapateiro de fora’, e a numerosos azeméis.

Os ‘homens de Dona Abadessa’ de Arouca eram muito bem pagos e o mesmo sucederia sem dúvida em Lorvão. Recebiam oito libras para vestir e calçar, tinham mantimentos e ‘comedorias’ e, como foi dito, uma ajuda de custo nas suas deslocações.

Lorvão, tal como Arouca, tinha homens ‘de Dona Abadessa’ indo a toda a parte onde tinha propriedades. Verificavam obras, testemunhavam actos de compra, de venda, de arrendamento, e tinham frequentemente procuração da abadessa para firmar contratos. Em Fevereiro de 1349, Afonso Fernandes, ‘homem de dona Guiomar abadessa’,3 está longe de Lorvão, tratando de determinado assunto. Em 1367, cita-se um Martim Domingues ‘homem e procurador de Dona Abadessa’. Em documentos de Lorvão fala-se por vezes em ‘mandadeiro’. Num contrato de emprazamento feito em 1292 por dona Constança Soares estipulava-se que o ‘mandadeiro’ do mosteiro, quando fosse ‘pela renda’, fosse albergado durante um dia pelo rendeiro. Caso o mandadeiro, por motivos desse pagamento, se visse obrigado a ficar mais tempo do que previsto, as custas e despesas caberiam ao respectivo rendeiro. ‘Quando nossos mensageiros, oficiais e procuradores forem por vossa casa, recebam honra e gasalho com o que tiverdes’, recomendava em 1500 dona Catarina d’Eça.

Na sua maioria, os homens que tinham trabalho fixo no mosteiro, eram pagos também em géneros O livro da abadessa de Arouca especifica detalhadamente esses pagamentos. Aos frades que lá faziam serviço dava-se anualmente, a cada um, um par de sapatos de vaca e outro de carneiro, e de ração recebiam três pães de convento, meio alqueire de ‘vinho de convento’  - do bom, portanto - e azeite. Todos os Domingos dava-se-lhes uma peixota e meia. Sardinhas recebiam, lê-se, ‘o mesmo que há uma monja.’ Quando se fazia azeite, dava-se uma porção dele aos frades e, separadamente, mais algum para ‘folhões e pão de manteiga’. Quando se matava o porco, os frades recebiam duas espáduas dele, e pela Páscoa, tinham cabritos.

Os ‘homens de dona abadessa’ eram, como se viu, pagos em dinheiro, e quando iam fora, recebiam também dinheiro para mantimentos. Quando iam longe e se iriam demorar recebiam naturalmente mais. Em deslocação para lá do Douro recebiam 10 e meio reais para mantimento. Quando andavam na Beira e na Estremadura recebiam 3 reais. Quando estavam em Arouca tinham diariamente três pães ‘raçoeiros’ e três fiais (sic) de vinho. Aos Domingos recebiam quatro postas de carne e umas peixotas. Quando da matança, recebiam três espáduas de porco, que lhes deviam durar de Natal ao Entrudo. Pelo Entrudo davam-se-lhes cabritos ou leitões. Na Quaresma, recebiam, além da meia peixota que tinham aos Domingos, todos os quinze dias nove sardinhas. Os ‘mancebos de forno’ recebiam de soldada 4 libras e meia, uma capa e uma saia de burel e uns sapatos. De ração davam-se a cada um três pães pequenos e seis broas. Aos Domingos tinham oito postas de carne, e desde Natal até ao Entrudo recebiam sete espáduas de porco ‘para todos’. Pelo Entrudo ‘senhas letigas,’ (sic) e pelo ano fora sardinhas. Os azeméis tinham de soldada 4 maravedis e 5 reais e ‘senhos (suc) quinteiros de milho’. Recebiam por dia um micho e duas broas e ums ‘fiaes’ de vinho. Por dia de São Miguel havia para todos uma perna de vaca. Pelo Entrudo ‘senhas letigas (sic) ou senhas galinhas’. Tinham também uma espádua de porco pela matança e uns centos de sardinhas.

Indicam-se em seguida as soldadas e as rações que cabiam aos outros trabalhadores: ao mancebo da vinha da Corredoira, ao mancebo da Vorida (sic), ao frangueiro do Burgo, ao mancebo do hostal, ao porqueiriço, o pateiro, ao cozinheiro dos frades, ao forneiro, ao moleiro, ao mancebo do moleiro, ao carpinteiro, ao vaqueiro, ao albergueiro de Monte de Fuste. E ao juiz de Arouca, e ao meirinho, e ao tabelião, e ao juiz de Antoã. A sacristã, a ajudante da monja que tinha esse cargo, também recebia soldada. E o moço de capela, o ferreiro, o sapateiro das donas, e o sapateiro de fora.

A distribuição dos salários em dinheiro cabia à monja bolseira, a dos outros géneros à celeireira. Não devia ser pequena tarefa. Não havia dois assalariados recebendo as mesmas porções de pão, ou de outro géneros. O frangueiro do Burgo recebia três pães dos pequenos e desasseeis broas, o mancebo do hostal recebia três michos e dez broas etc.

Homens de fora eram também os ‘caminheiros’, que eram contratados para levar recados a longas distâncias. Em 1359, as religiosas do mosteiro de Chelas, querendo se queixar ao Papa do bispo de Lisboa ‘por razão de muitos agravos’ que o Bispo lhes fazia, contrataram -‘caçaram’-, um mensageiro, ‘que lhes levasse o dito feito à corte de Roma’. O mensageiro escolhido foi um clérigo chamado Pedro Annes. Confiaram-se-lhe as escritas que devia entregar na corte papal e vinte florentins de oiro para as suas despesas. Depois de se ler a escritura do contrato, o dito Pero Anes ‘começara logo a ‘andar seu caminho com um bordão na mão e um dobral ao colo como homem caminhante’. 3

Em 1417 certas Donas do mesmo mosteiro de Chelas mandam também recado a Roma. Queixam-se da sua prioresa. Fizeram contrato com ‘um mancebo chamado João Fernandes, oriundo de Vila Cova a Coelheira, no bispado de Lamego. O mensageiro, devidamente apetrechado ‘com um sombreiro e um dardo na mão e um barril na cinta’, recebeu moedas de vários países, prometeu que faria tudo que lhe mandavam, e que traria de todo recado ‘guardando-o Deus do mal e de outra cacom (sic)’. E pôs-se logo a andar ‘como homem caminhante, que segundo parecia queria seguir caminho’.4

 
Caminheiro
Estes caminheiros não eram os únicos correios contratáveis. Os recados para Roma sendo frequentes, havia quem se dedicasse unicamente a levar esses recados, eram ‘caminheiros da corte de Roma’. Não encontrámos contratos com caminheiro no arquivo de Lorvão, o que não espanta, o mosteiro tinha homens de sobejo a seu serviço a quem confiar missões dentro e fora do País.

Importante também entre a gente de fora, era o mestre das obras. Os incêndios eram frequentes, as inundações repetiam-se nos mosteiros, que na sua maioria estavam implantados junto de correntes de água. As tempestades de chuva e vento faziam estragos nos telhados. Convinha ter mestre de obra à mão, e lá estavam. Entre os homens que testemunharam em Lorvão o treslado de uma Bula papal estão ‘Johã de Salamanca, mestre das obras de carpintaria do dito mosteiro e Gonçalo Affonso, carpinteiro.’. Em 1500 uma procuração dada por dona Catarina d'Eça é testemunhada por ‘João Vaz, mestre das obras, e António Pires seu criado’

 
Gente das Obras

Indispensáveis para o bom funcionamento da vida doméstica e administrativa de um mosteiro situado longe de una grande cidade eram os almocreves, que traziam de fora tudo aquilo que não se criava, ou se cultivava, no mosteiro. 
O Almocreve
À Esgueira, vila de pescadores, iam os almocreves regularmente buscar o peixe, que os seus habitantes eram obrigados a fornecer ao mosteiro. Quando havia urgência, perante uma importante e inesperada visita, por exemplo, os almocreves iam comprar o peixe a Buarcos, que ficava mais perto do que a Esgueira

 

O livro de dona Guiomar é um livro de salários e rações. Não cabia nele a menção daqueles muitos homens que, trabalhando ‘fota’ do mosteiro, não eram obreiros pagos se bem que constituíssem o seu mais importante braço de trabalho. Arouca tinha decerto, tal como Lorvão, servos e escravos a seu serviço, gente que lhe pertencia, que era posse sua, transmitida de abadessa para abadessa, da mesma forma que se transmitiam as terras, e as casas, e os animais. Na sua carta de protecção ao mosteiro de Lorvão, o rei D. Fernando inclui nesses bens os seus ‘servos e escravos’. A coisa vinha de longe, do tempo dos monges negros. Muitos devotos tinham-lhes legado terras e casais, e outros bens, tais como os seus escravos mouriscos, ‘homes sarracenos meos’. A iniquidade tardou a desaparecer. Uma criança nascida de servo ou serva era serva como seus pais, a sua libertação dependendo do critério dos senhores de seus pais. Em princípios do século XV, um padre de Lorvão teve um filho de uma serva do mosteiro. A criança teria sido serva como a mãe, se não fosse as monjas terem unanimemente declarado que a criança seria forra. Os pais do progenitor, Lourenço Froles e Ana Vicente, festejaram a liberdade do neto, oferecendo ao mosteiro uma vinha e um cortiçal que tinham em Gondelim, junto de Penacova. A escritura dessa doação - espontânea ou não - refere que, por lhes ter sido dito, que “dona Mécia Vasques da Cunha abadessa do mosteiro de Lorvão e toda as outras donas e convento do dito mosteiro forraram e fizeram forro Gonçalo, neto do sobredito Lourenço Froles, e filho de Estêvão Lourenço, e porquanto o dito Estêvão Lourenço o fizera em uma serva do dito mosteiro, e o dito Gonçalo seu neto ficava por isto servo do dito mosteiro pela dita razão’.5

Trabalhavam ainda para o mosteiro sem salário aqueles homens os quais, pela carta de foral que lhes fora concedidas a eles, ou à terra onde residiam, eram obrigados a fazer ao mosteiro determinado serviço para o mosteiro. Assim, pelo foral dado em 1257 pela abadessa Dona Marina Gomes, à vila de Midões, que pertencia ao mosteiro, os seus habitantes eram obrigados a fazer anualmente ‘uma carreira a Lorvão ou a outro lugar que possam nesse dia vir a sua casa’. Ou seja, um serviço de recado ou de transporte, que não lhes ocupasse mais de um dia. Os homens de Torre de Vilela, que recebera foral da abadessa dona Urraca Reimundo, davam ‘um dia de lavor ao mosteiro’. Eram muitos dias de lavor, muitas carreiras e muitos outros serviços que o mosteiro recebia dos seus foreiros.

1 comentários:

Unknown 31 de março de 2016 às 12:24  

Gostei muito de ler sobre 'a gente de fora'.

Um abraço, Constança

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