VIDA QUOTIDIANA DAS MONJAS NO MOSTEIRO MEDIEVAL - CAPº XIII DO SCRIPTORIUM

>> quarta-feira, 6 de abril de 2016


O escrivão
Em mosteiro grande, e grande proprietário como era o de Lorvão, uma das mais importantes oficinas era o escritório. Era no escritório que se centrava a administração da casa. Recebia-se a gente que vinha tratar de negócios, discutiam-se e redigiam-se contratos, escreviam-se cartas. Eram tarefas que exigiam conhecimentos, homens que estivessem à vontade em matéria de escrita, conhecendo bem o latim, sabendo o formulário correto a usar em cartas para soberano, bispos e leigos. Não podiam ser demasiado vagarosos, os documentos eram muitos, e sempre escritos em duplicado, em certos cassos, em triplicado, a cópia tão correcta como o próprio original. Não era trabalho para leigo. Escribas competentes havia que os procurar entre os religiosos das Ordens. Em Lorvão e em Arouca havia como se viu, entre a gente de fora, um pequeno grupo de homens, monges e padres, que cantavam os ofícios divinos, ministravam os sacramentos, e que eram, juntamente, os scribas do scriptório. Um deles podia ser designado para secretariar a abadessa, e era de entre eles que era escolhido o procurador do mosteiro.


Documentos ligados  e  enrolados


Em 1361, quando se redige num contrato de escambo (sic) entre a abadessa dona Mécia Vasques da Cunha e Álvaro Fernandes, senhor de Carvalho, está presente ‘Estevão Domingues, escrivão da dita abadessa’. Em 1406, no emprazamento de uma almuinha em Coimbra, a carta de contrato é assinada e selada pela abadessa, tendo sido escrita pelo seu escrivão, ‘Estevão Lourenço: ‘Nosso escrivão a fez’, lê-se. À cabeça do escritório estava o procurador. Era o braço direito da abadessa, tratando diariamente com ela dos assuntos correntes. A abadessa era senhora do mosteiro e uma proposta sua respeitosamente recebida, mas era maduramente pensada pelo procurador, Um pouco razoável projecto de Dona Abadessa podia ser imposto ao procurador contra sua vontade. Tudo indica porém que Lorvão foi na generalidade bem administrado e gerido. Que teve procuradores, ou feitores – a outra designação para o cargo – competentes
No scriptorium
 Quando as monjas tomaram em Lorvão o lugar dos monges, o seu procurador, instalou-se naturalmente no local onde funcionara a anterior administração. Um documento do século XIV, permite visualizar com razoável certeza o local onde se situava o escritório. Em 1398, Joham da Ponte, prior de S. João de Loure, faz uma doação a Lorvão por meio de testamento, e esse testamento fora feito, lê-se, ‘no mosteiro de Lorvão na torre dos procuradores’. Ou seja, na torre onde trabalhavam os procuradores.

Nos primeiros mosteiros beneditinos existia um corpo distinto, uma torre, que, quer ligada ao corpo principal do mosteiro, quer ligeiramente afastada dele, servia aos monges de atalaia e de portaria. Ainda hoje se reconhecem em Lorvão, os vestígios dessa torre. Era nesse corpo em forma de torre que era o escritório. O visitante era recebido pelo monge porteiro, e encaminhado por ele, caso ele viesse em matéria ligada à administração, para uma sala de espera: o ‘parlatório de despacho’ O padre que em 1398 fez a doação ao mosteiro fê-lo na sala de despacho, que era, especifica ele o local onde esses ‘autos’ se faziam. Havia outro parlatório junto da portaria, esse destinado a quem pretendesse tratar de negócio com alguma das monjas. Nesse caso, o visitante era encaminhado para ‘a varanda que está na portaria do dito mosteiro, aí na grade do parlatório que ali está, que é lugar costumado para se fazerem tais autos’. Muitas monjas tinham bens próprios que administravam. Discutiam os negócios à grade do palratório da varanda da torre.

A assinatura dos documentos pela abadessa e ratificação de seu convento não se fazia sempre no mesmo locai. A grande maioria dos contratos era assinada na casa da abadessa. Assinam-se porém igualmente em outros locais devidamente apontados na escritura: ‘à porta da sala do capítulo’, junto do altar de um santo etc

Toda grande empresa tem de guardar e arquivar os documentos que recebe e a cópias dos que enviou. Uma vez o documento assinado, uma cópia era depositada no cartório ou arquivo. A arrumação nem sempre era perfeita. Foi por mero acaso que, em 1421, se descobriu um pequeno livro de apontamentos do século XIII, contendo os nomes dos rendeiros do mosteiro na região de Coimbra após a saída dos monges, mencionando muitos bens e rendas de que se havia perdido o direito. É um dos primeiros tombos de propriedades do mosteiro, ou, pelo menos, um dos primeiros de que há notícia. Pedro Anes, então procurador, considerou o achado de tal importância, que mandou registar o achado por um notário. Fica-se assim a saber, que o livro fora achado no mosteiro de Lorvão, pelo seu procurador, a 6 de Fevereiro da era de 1459 - ano de 1421. E que o dito livro, junto com outros documentos, fora achado ‘em casa onde são as arcas das escrituras, em uma arca velha, onde jaziam escrituras antigas.’ Havia outras escrituras ‘em sacos velhos traçados e em cofres de coiro’. O tabelião Estevão Anes testemunhou que, em presença dele, tabalião geeral por el rei Entre Douro e Mondego, e das testemunhas adiante nomeadas, o dito Pero Anes achara ‘este livro em a dita arca antiga.’

            É provável que fosse a partir dessa descoberta que se procedeu a uma primeira organização sistemática do arquivo do mosteiro. Várias outras houve no decorrer dos anos.


            O arquivo de Lorvão difere da maioria dos cartórios de outras casas de religiosas na sua organização e no tipo de documentos que nele se conservavam. Em Lorvão não se guardava todo e qualquer pergaminho ou papel escrito. Arquivava-se o que pudesse servir, ou vir a servir no futuro, à administração do mosteiro. E só isso. É visível que se procedia periodicamente à eliminação daquilo que não interessava esse fim. Se a evidência não o demonstrasse, tínhamos a confirmá-lo a carta de uma abadessa quinhentista, que requere autorização para mandar copiar documentos, dando-lhes o valor de originais, porque, diz ela, os escrivães destruíam anualmente as escrituras que tinham mais de um ano. E assim – só para dar um exemplo - em cartório de mosteiro tão grande e antigo como era Lorvão, não se encontra um único contrato de obras anterior ao século XVII. Faltam igualmente os contractos que forçosamente se faziam com obreiros. No cartório do mosteiro de Chelas, que não sofreu arrumação que se veja, há inúmeras escrituras de contratos com mestre d’obras. Em Lorvão, onde o ‘mestre das obras’ com os seus criados aparece constantemente como testemunha, não se acha qualquer contracto de execução de obra sua. Quanto a documentos que tivessem pertencido às próprias religiosas - numerosíssimos no cartório de Chelas - não existem em Lorvão. As religiosas tinham forçosamente papéis particulares, elas adquiriam objectos. Devia haver vestígios, e não há. Em 1368 uma dona do mosteiro de Chelas, compra a João Alcatra, judeu de Sevilha, por 160 libras, uma escrava moura branca, de nome Moeriam, ‘sã dos pés, das mãos, dos olhos’. No cartório de Lorvão talvez não houvesse compras dessa natureza, mas outras decerto se fizeram, e nenhum documento comprovativo existe. Quando, depois da sua morte, a propriedade de uma monja passava para posse do mosteiro, a documentação que dizia respeito à respectiva propriedade dava entrada no cartório. Outra documentação, que a mesma monja tivesse possuído, não tinha a mesma sorte. Sucessivas medidas tomadas por sucessivas abadessas e procuradores, iam num sentido: ter um cartório funcional, de fácil consulta no que interessasse à administração,. Os Tombos das propriedades que periodicamente se mandavam fazer, as cópias que se executavam de documentos importantes e de difícil leitura, iam todos nesse sentido.

Na arrumação usou-se, para os primeiros documentos - aqueles que datavam da longínqua fundação do mosteiro até ao século XIII - uma ordenação puramente cronológica. A partir daí, a arrumação é por locais de proveniência, o que, para efeitos administrativos, era sem dúvida mais conveniente. Os documentos eram ainda classificados como sendo de primeira ou segunda ordem, e consoante o seu valor, eram reunidos em ‘gavetas’, e em ‘maços’.

Em 1522 uma revolução na escrita iria afectar o trabalho dos escribas nos seus escritórios. Até ali escrevia-se com letra gótica, laboriosamente, letra por letra. Ora um italiano, escriba na Curia Romana, chamado Ludovvico Arrighi, publicou nesse ano de 1522 um pequeno panfleto com o título de ‘La Operina’, no qual propunha que as letras não fossem angulares, mas arredondadas. Dessa forma cada letra ligada à letra seguinte, o que dava outra fluidez a escrita. Não se requeria um ponto entre cada palavra, bastava separá-las por um pequeno intervalo.
 


La Operina de Ludovico  Arrighi
Os escribas, os notários adoptaram rapidamente a nova escrita, dita ‘romana’ ou ‘itálica’. Escrevia-se muito mais depressa, como os novos tempos exigiam. Foram desaparecendo os escribas que a soubessem ler a letra gótica, e muitos desaprenderam o latim dos antigos documentos. Em Lorvão era frequente enviar fora para consultar um especialista. O escritório, esse, manteve-se no mesmo local, na velha torre dos procuradores.

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