De tempo em tempo batia à porta do mosteiro uma cisita muito
especial: o ‘visitador’. Vinha conversar com a abadessa e as monjas,
examiná-las, averiguar como estavam as coisas lá dentro. Vinha fazer a
'visitação'. No fim da sua visita, o visitador redigia uma acta, composta a
partir dos apontamentos que seu secretário fizera durante a visitação. As actas
dos visitadores – as que existem, porque muitas foram destruídas - são uma importante
fonte de informações sobre a vida religiosa, moral e material dos mosteiros.
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O Bispo Visitador |
A forma de a fazer a visita obedecia a regras preestabelecidas. A abadessa do mosteiro
que iria ser visitado, recebia, com certa antecedência um aviso do visitador,
participando a visita e anunciando a data desta. Permitia desta forma que no
mosteiro se arrumasse a casa e que as religiosas se preparassem mentalmente
para as questões que lhes seriam postas, e aquelas que elas se propunham apresentar.
O visitador e o seu séquito eram recebidos à porta do
mosteiro pela abadessa e pelas principais oficiais. Dirigia-se depois para a
igreja onde fazia uma curta oração, e em seguida era conduzido cerimoniosamente
à sala de capítulo. Ou à outra dependência, que naquele mosteiro servisse para
as reuniões capitulares.
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Sala do Capítulo Lorvão |
O visitador fazia ali uma primeira exortação
– um ’capítulo’ - de admoestação e de exortação. Ou seja, dirigia-se às
religiosas reunidas em capítulo, lembrando-lhes a obrigação de aceitarem a
visita, e de colaborarem com os visitadores.
A cantor-mor devia então ler a
acta da visita anterior e a ‘forma visitations’, o documento no qual se expunha
a forma de fazer a visita. Uma vez terminada a leitura, o visitador lembrava às
religiosas a obrigação de obedecerem ao espírito da visita, denunciando os
males que porventura existissem no mosteiro e apontando todas as deficiências
por elas observadas. Normalmente seguia-se a inspecção dos locais, primeiro a
igreja e a sacristia, depois os dormitórios, e todas as outras dependências e
oficinas do mosteiroA esta primeira parte da visita,
toda ela dedicada a aspectos materiais, seguia-se a parte espiritual e moral da
visitação, com o interrogatório à abadessa, oficiais, e todas as outras monjas.
Havia sido preparado um local adequado onde se instalava o visitador com o
secretário que o acompanhava e lhe servia de escrivão. E que tinha jurado
guardar segredo de tudo que viesse a ouvir. Sentava-se à mesa preparada para o
efeito, abria o livro das actas, aparava a pena.
O escrutínio começava pela abadessa
seguida de todas oficiais e monjas. Instadas a falar, aquelas senhoras não se
coibiam. Falavam, queixavam-se, acusavam. O secretário escrevia, o visitador
ouvia. Quando um caso tinha de ser mais aprofundado, chamava-se de novo alguma
das monjas para ser interrogada sobre esse caso em particular.
Se as monjas tinham a razão de queixa da sua abadessa,
queixavam-se ao visitador quando este vinha à sua anual visita. Este senhor
daria o devido desconto a uma queixa, mas quando as queixas se multiplicavam,
tomava a coisa a sério, e fazia severas recomendações à abadessa.
O bispo de
Viseu, D. Jorge de Ataíde, fez severas reprimandas à abadessa do convento de
Santa Eufémia de Ferreira d’Ave, quando da sua vissitaçãi; ‘achamos por
visitação, que abadessa não toma conselho, e leva a mal quando lho dão. Mandamos-lhe
que se emende, aliás procedemos contra ela como desobediente e dissipadora do
mosteiro’
A partir do que ele ouvira e vira, e do
que apreendera da leitura e consulta dos livros da casa, o visitador tirava a
sua conclusão e ditava ao secretário a ‘Acta da Visitação’. Acta que no fim da
visita era lida à comunidade, chamada de novo, ‘por campa tangida’, para a sala
do capítulo.
Para que as recomendações feitas na Acta não fossem esquecidas,
esta devia ser periodicamente relida, função que cabia à cantor-mor. Se o
Visitador encontrara tudo em bom estado, despedia-se da comunidade com um ‘Omne bene’ e, sendo caso para isso,
tinha alguma palavras de louvor
O direito de
visitação ao mosteiro por parte da autoridade eclesiástica estava estipulada
nas constituições, e diferia de Ordem para Ordem, e até de mosteiro para
mosteiro.
O visitador podia ser o bispo da diocese, e podia ser um religioso
superior da Ordem à qual o mosteiro pertencia. Ou era, como se dava nos
mosteiros cistercienses, o abade da casa que se dizia ‘mãe’ do respectivo
mosteiro. A abadia de Alcobaça era filha da abadia de Claraval, e era mãe do
mosteiro de Odivelas. O abade de Alcobaça era visitado pelo abade de Claraval
e, por sua vez, visitava Odivelas. No caso de Lorvão, já se disse que a rainha
D.Teresa filiara o mosteiro directamente a Claraval. Lorvão era portanto
visitado directamente pelo Abade de Claraval, ou por alguém por este nomeado
para o efeito. Um documento, datado de 1273, resolvendo um diferendo entre os
mosteiros de Arouca e de Lorvão, atesta que nesse ano os dois mosteiros tinham
sido visitados pelo então abade de Claraval.
A autonomia dos mosteiros cistercienses em relação aos bispos das
suas dioceses não era por eles apreciada, e, por mais de uma vez, eles tentavam
impor a sua visita. Pelo menos aos mosteiros feminino da Ordem. No caso de
Lorvão não consta que o tenham conseguido.
Além dos
cistercienses, havia outros mosteiros de mulheres dispensados da visita
episcopal. Dispensa que tinham obtido por privilégio papal, ou por outra forma,
e que sabiam defender. O mosteiro de Chelas defendeu-se por mais de uma vez da
visitação do seu convento pelos bispos de Lisboa, a quem não reconheciam esse
direito. Uma grande contenda deu-se no século XIV, entre 1350 e 59. O bispo de
Lisboa visitara, indevidamente, na opinião das Donas de Chelas, o seu mosteiro,
e as religiosas avisaram o Bispo, que se queixariam ao Papa se o caso se
repetisse: Escreveram nesse sentido ao bispo: ‘Receosas de ser agravadas no
futuro por vós, Reverendo em Cristo, pai e senhor, Lourenço, pela Graça de Deus
e da Sé apostólica, Bispo de Lisboa, como é evidente pela vossa intercessão,
que na véspera fizeste ao dito mosteiro; aquela visitação, e o modo da
visitação excedendo contra a Regra da dita Ordem e costumes do próprio
mosteiro’ etc. Nova querela dá-se em 1426. As donas de Chelas mandam um
emissário a Roma para levar à mais alta instância eclesiástica a sua queixa
contra D. Jorge, bispo de Lisboa, que pretendia que elas lhe pagassem
visitação, o que o bispo, segundo elas, não lhes podia exigir por elas estarem
isentas disso por privilégio antigo do Papa.
No mosteiro de Santa Clara de Vila do Conde, as monjas negaram-se
a receber a visita do Bispo de Ceuta, nomeado por D. João III para visitar e
reformar os mosteiros de religiosas em Portugal. Era uma visitação um pouco
diferente das outras. O bispo apresentou-se diante do mosteiro, acompanhado do
corregedor e de outras entidades, e a visita foi-lhe negada de maneira pouco
cortês. Como se fica a saber pela carta que o bispo dirigiu nesse mesmo dia ao
rei. Ele e os seus acompanhantes tinham-se aproximado da porta do mosteiro,
escreve o bispo. As freiras tinham vindo à janela, e ele, Bispo, tentara
fazer-lhes ver razão: ‘eu lhes disse muitas coisas mui mansamente. Que
quisessem ir à grade da igreja para ele lhes fazer algumas perguntas e que
então poderiam dizer o que lhes aprovasse’. As religiosas tinham respondido,
que já haviam dito e mandado dizer, que não abririam qualquer porta, nem da
igreja, nem do convento. Que ouvissem pelo menos as cartas apostólicas que ele
tinha na mão, insistira o Bispo, entregando as cartas ao corregedor para este
as ler. O homem começara a leitura, mas não se conseguira fazer ouvir, as
freiras berrando que não queriam ouvir as ditas cartas.
O Bispo dera-lhes então
três horas para lhe abrirem as portas e o receberem, caso contrário as
excomungaria. Mas não acreditava que a ameaça as fizesse ceder, escrevia ele ao
rei: ‘creia Vossa Alteza que elas não hão de abrir’. As portas estavam fechadas
‘com travessas de dentro e pregos grandes cujas pontas saem fora’, acrescentava
ele. Sua Alteza que lhe dissesse se queria que se quebrassem as portas ou não. Estas
revoltas eram excepecionais, mas existiram, e existiram em particular em
mosteiros femininos.
Uma obra do século XVI, o relato da visita que o abade de Claraval
fez a Portugal em 1533, e do qual adiante se trata, narra vários casos de
Visitação mal recebida
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