VIDA QUOTIDIANA DAS MONJAS NO MOSTEIRO MEDIEVAL - CAPº XIV O MUNDO NO MOSTEIRO

>> quarta-feira, 13 de abril de 2016




São Bento enaltecera a hospitalidade como uma grande virtude, e recomendara-a muito particularmente aos religiosos: ‘todos os hóspedes que sobrevierem sejam recebidos como Cristo’, dizia a Regra. O abade deveria receber os hóspedes com o beijo da paz, rezaria com eles à sua chegada, dar-lhes-ia água às mãos, e tanto ele, abade, como todo o convento, lhes lavariam os pés. O abade poderia mesmo, caso fosse necessário, quebrar o seu jejum ‘por amor aos hóspedes’. Recomendava-se particular cuidado e atenção com os pobres e com aqueles que andavam em peregrinação. Os hóspedes ricos não requeriam grandes atenções, dizia São Bento, eram suficientemente enaltecidos por si, ‘com o espanto que causa o seu aparato’. A comida dos hóspedes devia ser cozinhada em cozinha própria. caso esta não existisse, os hóspedes seriam servidos da cozinha do abade. Isto para que os visitantes - os quais, como a Regra observava - nunca faltavam num mosteiro - não inquietassem a comunidade caso chegassem ‘fora de horas’.

As monjas seguiram, tanto quanto possível, os preceitos recomendados aos monges. Para que se pudessem oferecer aos viandantes o bom acolhimento que a Regra recomendava, foram nascendo junto dos mosteiros casas separadas para albergar hóspedes. Eram os mais apetecidos locais de pernoitar. Grandes senhores com as suas convidadas, os próprios reis e príncipes lá se albergavam. Clérigos em missões, oficiais de justiça, almocreves, batiam à porta dos albergues dos mosteiros.

Estas hostelarias – ou hostais - eram em geral junto do mosteiro, mas as monjas de Arouca mantinham, além deste, um albergue afastado. O ‘albergueiro’ amanhava uns casais do mosteiro, na condição de ‘dar de pão e de leite aos que aí forem e camas e fogueiras’1

            As mais frequentadas hospedarias monásticas eram naturalmente as dos mosteiros que se situavam perto duma estrada concorrida, ou na encruzilhada de caminhos de peregrinação. Nada disso se dava em Lorvão. Situado em local isolado, poucos ali se albergariam. Era caminho de algum viajante que, vindo das terras da Beira Alta, se dirigisse para a Guarda e talvez para fora do reino, podia optar pela travessia da serra do Bussaco, e iria pernoitar em Lorvão. Mas não eram os passantes quem mais se hospedava mosteiro, e sim aqueles que ali vinham tratar dos seus negócios. Os que pretendiam comprar ou vender terras, discutir novos arrendamentos, novas formas de pagamento. Eram assuntos que não se resolviam de um dia para o outro, que podiam obrigar o visitante a pernoitar uma ou mais noites. Em 1361, quando o Senhor de Carvalho fez uma importante troca de terras com a abadessa de Lorvão, o acto foi testemunho por Dom Frei Lourenço, abade do mosteiro de São Cristóvão de Lafões, por Joam Fernandes, cavaleiro da Ordem de Santiago, por Afonso Vicente, prior da Marmeleiro, e por Domingos Aires, homem do dito Álvaro Fernandes. Toda aquela gente permaneceu mais de um dia em Lorvão, hospedando-se na hospedaria do mosteiro. Sucedia que homens da Igreja se reunissem no recato de Lorvão para debate ou conferência. Em 1298 juntaram-se lá, e testemunharam um documento, os abades de Vila Maior, do Bispado do Porto e o Abade do Canado (sic) do Arcebispado de Braga. Um contrato de arrendamento redigido em latim germanizado aponta para a presença de um religioso alemão, que por ali passou, ali se demorou, e fez o favor de ajudar no escritório. Outros viajantes chegavam, tratavam dos seus negócios, partiam. Eram hóspedes que não perturbavam o recato das monjas. Havia porém outro tipo de hóspedes.


           
Os fundadores de mosteiros e seus descendentes tinham hospedagem assegurada na acta da fundação do novo mosteiro, reservando, para si e sua família, o direito da visita ao seu mosteiro. Em alguns casos até tinham o privilégio de pernoitar com toda a sua comitiva. E toda ela era alimentada e mantida pelo tempo que lhe que lhe conviesse. Perturbavam a tranquilidade das habitantes do seu pequeno mosteiro e arruinavam-lhe as finanças. Os fundadores reais faziam o mesmo. Provavelmente tinham sido eles os inspiradores. Quando D. Diniz fundou o mosteiro de Odivelas, estipulou quem poderia entrar no mosteiro: ‘in claustrum’. Era permitida a entrada a ele, rei, aos seus sucessores, acompanhados de pessoas honestas e idóneas. E ainda ao bispo de Lisboa e ao abade de Alcobaça, com dois acompanhantes cada. O rei nomeava ainda os homens - médico, sangrador, carpinteiro etc - que no exercício das suas funções ou ofício podiam entrar na parte claustral do mosteiro. Isto quanto a homens, porque à entrada de ‘boas donas’ não se punha qualquer entrave.
Servindo uma  importante visita
A porta estava aberta a todas as grandes senhoras, já que todas se consideravam ‘boas donas’, e portanto com o direito de visitar o mosteiro, e mesmo de lá se instalar.
 
 
Tanto rainhas como particulares apreciavam a comodidade que oferecia a vizinhança da casa monástica, e construíam casas perto do mosteiro para ali passarem um tempo. A rainha D. Isabel construíra casas junto de Santa Clara de Coimbra e legaria as casas ao mosteiro, com recomendação que, depois de sua morte, pudesse lá ficar, com o consentimento da abadessa e do rei, alguma pessoa da sua linhagem ‘mais chegada’ Também ali poderiam ficar, sempre que o desejassem, ‘quando lhes cumprir’, os futuros reis, e seus herdeiros com suas mulheres. Foi nessa casa, contígua ao mosteiro, que o infante D. Pedro instalaria D. Inez de Castro, e aí que nasceriam os seus filhos.


Justa
D. Leonor de Aragão foi instalada na mesma casa antes de casar com o futuro rei D. Duarte. As festas de casamento, com todas as cerimónias e pompas próprias, realizaram-se na igreja do mosteiro. Depois da cerimónia religiosa, a noiva jantou com as suas damas na sala do Capítulo. E todas assistiram às justas que se realizaram diante do mosteiro.

Lorvão não participou activamente nesses festejos, mas teve por esta ocasião visita real. D. Duarte e o infante D. Henrique, foram até ao Botão visitar Vasco Pais do Couto, que fora aio deles, e ali vivia. Pernoitaram na casa que o mosteiro de Lorvão aí tinha.

D. Joana, a segundo mulher de D. Afonso V, conhecida por ‘Excelente Senhora’, instalava-se igualmente - não de sua inteira vontade, é verdade – nas casas junto convento de Santa Clara de Coimbra, e aí morreu. Todas estas senhoras eram muito devotas, algumas, quase santas, mas, por mais devotas que fossem, não lhes era lícito abdicar das prerrogativas do seu estado. A sua posição exigia que fossem servidas por pessoal numeroso, e havia que ter com elas cuidados e atenções próprias do seu grande estado. Tudo pouco compatível com o recato monacal que as mesmas senhoras exigiam das monjas.

            No caso de Lorvão a sua localização não o fazia apetecido como local de festejos e também não agradava como refúgio das grandes senhoras. E não sofria de imposições de hospitalidade de fundadores, porque a rainha D. Teresa tivera o cuidado de não impor condições desse tipo ao mosteiro que protegera. Mas não o livrou de visitas, e algumas das suas abadessas foram notoriamente hospitaleiras.

Na acta da visitação de 1536, o visitador ocupa-se justamente da exagerada hospitalidade da abadessa, proibindo a esta e às suas monjas, sob pena de excomunhão, de receberem dali em diante a ‘nenhuma pessoa que seja, de nenhuma condição, nem tempo, nem maior idade, nem menor que seja, nem por causa nenhuma que parecer, para a receber.’ E, evidentemente, não as manteriam na dita casa, ‘à custa do dito mosteiro’. Se alguma dessas pessoas, criança ou velha, estivesse naquela ocasião dentro do mosteiro, ordenava-se que seus pais e parentes lhes dessem lá meios de sustento, ou que os levassem para as suas casas: ‘Mandamos que dentro de três meses sejam mandados para fora do mosteiro, se as não mantiverem os ditos parentes’.

      Havia outro tipo de hóspedes, que os visitadores também não apreciavam, mas que em geral tinham de tolerar. Eram as senhoras que tinham na cerca do mosteiro pequena casa ou cela, na qual, a troco de uma soma estabelecida por contrato, podiam viver até à morte. Estes contratos nem sempre provavam tão lucrativos como a abadessa e o convento esperavam. Se a casa era afastada, construída em terrenos do mosteiro, o pagamento podia ser em géneros produzidos na terra em que a casa se construíra. Se a terra era boa e bem amanhada, e a pensionista fazia o favor de morrer cedo, o contrato podia ser proveitoso. Mas as propriedades nem sempre eram tão rentáveis como as suas donas as tinham pintado. Havia os anos maus, em que nem mesmo as melhores produziam. Outra forma de contrato era o pagamento pela pensionista de uma soma avultada para o seu sustento até à morte. Era contrato com o qual as abadessas pensavam estar fazendo óptimo negócio, e que só o era, quando a pensionista vivia pouco tempo. Quando ela persistia em viver muito para lá do tempo que se calculara, o mosteiro tinha de alimentar mais uma boca, quando a soma recebida para o sustento da pensionista já estava mais que esgotada. E quando a moeda já podia ter baixadodo de valor. Apesar de tudo isso, apesar dos bispos e visitadores constantemente fulminarem contra a prática, as abadessas, sempre necessitadas de dinheiro, não sabiam resistir à tentação da venda de pensões por moeda sonante.

            As primeiras hospedam desse tipo, as primeiras pensionistas, entraram aliás para Lorvão pela mão da própria fundadora. Em 125O, pouco antes de sua morte, a rainha D. Teresa firmou um acordo com a então abadessa, para que uma tal Maior Pedro, sua protegida, sua ‘clientula’, pudesse viver em Lorvão até ao fim dos seus dias. Dar-se-lhe-ia a casa que fora de Teresa Sanches - uma pensionista anterior, portanto - e receberia de alimentação o mesmo que as monjas. As suas serventes, por sua vez, teriam o mesmo que aquelas que serviam o mosteiro. Em troca, o mosteiro receberia depois da morte da dita Maior Pedro, a herdade do Pereiro, que a rainha doava para esse fim à sua protegida.   

Não se tratava naqueles casos de personagens que requeressem atenções especiais, mas a sua presença também não devia ser condutiva à paz claustral, trazemdo para o mosteiro as notícias e os boatos do grande e pequeno mundo. A ideia era humana, respondia a uma necessidade, e não espanta que viesse a ser geralmente adoptada na maioria dos mosteiros femininos.
 

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