VIDA QUOTIDIANA DAS MONJAS NO MOSTEIRO MEDIEVAL - CAPº XVI VISITA DO ABADE DE CLARAVAL

>> terça-feira, 26 de abril de 2016


Entre 1531-33, o superior da Ordem de Cister, dom Edmé de Seaulieu, abade de Claraval, realizou uma visita às casas cistercienses de Espanha e Portugal. O secretário do abade, frei Claude Bonseval anotava diariamente os acidentes da viagem, os caminhos percorridos, as hospedarias onde se instalavam, e, sobretudo, a situação dos mosteiros que visitavam. O texto desse seu diário de viagem foi recentemente traduzido do latim para francês, e publicado sob o título de ‘Peregrinatio Hispanico’. Neste nosso caso, o livro é de grande interesse pelo que nele se lê sobre a situação religiosa e moral em alguns mosteiros femininos portugueses.

A preocupação de reforma monástica, que, a partir de meados do séc. XV e princípios de XVI, se deu um pouco por toda a Europa, tinha razões de ser. Reinava a irreligiosidade e imoralidade em muitos mosteiros, preocupando tanto as autoridades religiosas como civis. Em Portugal, tanto D. Manuel, e, depois dele, D. João III desejaram, e apoiaram os esforços de reforma de alguns dos mosteiros. No caso de D. Manuel, não houve mais que o natural interesse pelo assunto, mas o filho dedicou-se-lhe pessoal e activamente com bispos por ele escolhidos. Certo que ele e os bispos portugueses resolveriam os problemas, a vinda a Portugal de um francês, superior da poderosa ordem de Cister, com pretensões de autonomia em relação aos mosteiros portugueses da sua Ordem, irritou D. João III, e haveria, como se verá, acesas disputas até que o superior de Cister recebesse a autorização real para efectuar a visitação.

Dom Edmé chegou a Portugal em princípios de Junho de 1532, tendo previamente visitado os mosteiros de Espanha. O seu séquito compunha-se do dito secretário, Claude de Bronseval, de um padre, de homens para tratar dos cavalos ou mulas, e, como era sabido que na maior parte das
Porto idade média
hospedarias de Espanha e Portugal não se podia contar com comida, os visitadores traziam consigo um cozinheiro, um ‘marmiton’, para lhes preparar a comida. Entraram em Portugal pelo Norte, vindos da Galiza, e fizeram a primeira primeira paragem em terra portuguesa em Caminha. O único sítio em Portugal onde a Abade e o seu séquito ficaram bem albergados, escreveria depois o secretário. Decentemente deitados e copiosamente alimentados, escreve frei Claude, com bom peixe, e os seus cavalos bem instalados numa excelente cavalariça. Dali em diante as coisas seriam bem diferentes, uma instalação pior que a outra. Em Viana do Castelo uma hospedaria pequena e nojenta, ‘dégoutante’. O Porto deixou-lhes má impressão, mal servidos de comida e de camas: ‘lamentablement traités, logés et couchés’.

A população da cidade era rude, pouco polida,‘très rustre et très dure, dépourvue d’urbanité.’ Escreve frei Claude. Tinham ido à Sé, onde não puderam entrar, sendo corridos a pau por um rustre barbudo que os correu como a cães, ‘ nous fit sortir comme un chien avec un baton”.

Do Porto a Lisboa encontraram maus caminhos, piores alojamentos e comida. Chegados à Azambuja, Dom Edmé mandou o secretário a Lisboa para lhes preparar instalação. Frei Claude não poupa a capital do reino.

Materialmente, escreve ele, Lisboa era sem dúvida uma cidade
Lisboa
florescente. Mas quanto ao resto: “recetáculo de Judeus, ama de quantidade de Indianos, jaula de filhos d’Agar, depósito de mercadoria, fornalha de usurários, estábulo de luxúria, caos de avareza, montanha de orgulho, e porto seguro para franceses fugidos da justiça”.

A custo conseguia-se uma instalação razoável, e pouco depois da chegada de Dom Edmé, veio-lhes recado da abadessa de Odivelas. A abadessa fora informada da chegada do Abade, e mandava-lhes um grande saco de alimentos. Que fora recebido e usado com acções de graça e alegria, segundo frei Claude:

Dom Edmé visitara o Rei, a Rainha, o Cardeal-infante D. Henrique e os outros príncipes, e começara as diligências para a Visitação com um discurso pronunciado perante o rei. Falara das dificuldades que durante anos tinham impedido a visita dos abades de Claraval aos mosteiros da sua Ordem em Portugal, e dissera-se esperançoso de obter agora, da boa vontade de Sua Majestade, o consentimento para realizar a visita

D. João ouvira pacientemente o discurso, dissera no fim, por intermédio de mestre Francisco de Melo, seu intérprete, que iria ler as cartas que o Abade trazia e pensar no assunto. Seguiram-se avanços e recuos, promessas dadas e retiradas da parte do Rei, ameaças de partida da parte do Abade, e, por fim, a desejada autorização de visitação fora concedida.

No dia 5 de Agosto, com a autorização, se bem que ainda provisória, do Rei, o Abade e o seu séquito põem-se a caminho de Odivelas, primeiro mosteiro a visitar.

 ‘Deixámos Lisboa, libertados daquela prisão e daquela fornalha’, escreve Frei Claude. O caminho para Odivelas era largo, fácil de percorrer, agradável, entre campos de oliveiras e de vinhas. À porta do mosteiro foram recebidos pela abadessa, acompanhada de setenta monjas e de catorze irmãs conversas,’ todas em boa ordem, com a cruz e a água benta’. Dona Abadessa aproximara-se do Abade, abrira os braços - ‘que a idade tornava pesados’ - e, de lágrimas nos olhos, dissera em voz alta: ‘Bendito seja aquele que vem em nome do Senhor’. Abraçou Monsenhor e dera-lhe a cruz
Cozinha de Odivelas
a beijar. A visitação procederia de princípio ao fim em perfeita ordem. Frei Claude só tem que gabar. Tinham passado do claustro ao coro inferior. Logo que aí terminarem os cânticos, Monsenhor dera a bênção solene, e passaram à Sala do Capítulo, onde foi lida a acta de visitação. A monja que a leu fizera-o na perfeição: ‘Impossível ler, acentuar e exprimir-se melhor. Monsenhor fizera uma admirável alocução às monjas, e, acompanhado da abadessa, da prioresa e da sacristã, examinara os objectos de culto e as instalações da Ordem.’

Os visitadores ainda assistiram nesse dia à missa, celebrada com grande solenidade, e bom canto. ‘Fiquei feliz por ouvir, neste rabo do mundo, um conjunto tão perfeito’, comenta frei Claude. Nos dias seguintes, Monsenhor continuara a visita e, no dia 8, fez ler em Capítulo a Acta da visitação. A abadessa e as religiosas receberam-na como se viesse do Céu”. No dia 9, o Abade e seu séquito regressaram a Lisboa, de onde lhes viera recado que el-rei D. João decidira alargar a visitação a mosteiros que não eram de Cister. Devendo essa visita começar pelo mosteiro de Almoster.

Almoster era uma prioridade. Em 1522, pouco depois da sua ascensão ao trono, D. João III, que já ideava a reforma dos mosteiros, encarregara o bispo de Tripoli, D. Francisco da Fonseca, de fazer a visitação a esse mosteiro, e o Bispo ficara horrorizado com o que vira: administração desastrosa, total falta de disciplina. De moral, o melhor da falta dela, era melhor não falar. As religiosas tinham sido convidadas a responder a nove questões essenciais: sobre a forma como se rezavam os ofícios, sobre a regularidade das comunhões e confissões, sobre o cumprimento do silêncio nos claustros, sobre os dormitórios, sobre a castidade e honestidade que reinava entre elas, sobre a forma como a porteira cumpria o seu ofício, e, finalmente, sobre a autoridade da abadessa: se a prelada era firme, e se fazia obedecer. As respostas tinham sido muito pouco edificantes.

Quanto à regular reza dos ofícios, as religiosas tinham sido unânimes em dizer que naquele ano não os tinham cantado como deviam. Umas diziam que não o tinham podido fazer por o ano ter sido estéril, e elas terem sido obrigadas a trabalhar de suas mãos para se alimentarem, não tendo portanto tido tempo para cantar os ofícios. Outras diziam que não os tinham cantado devido ao barulho causado pelas obras que então se faziam no mosteiro. Questionadas sobre as comunhões e confissões, e se o faziam regularmente, a resposta da maioria fora que não se confessavam nem comungavam regularmente. À pergunta sobre o silêncio nos claustros, se este se guardava, as respostas tinham sido explícitas: ‘que não se guarda em nenhum lugar’ , ‘que não se guarda mais que na rua’. E nos dormitórios? Cumpriam-se as regras? Dormia cada uma em seu leito e todas no dormitório? Respostas: ‘que quanto era ao dormir no dormitório, que dona Guiomar de Albuquerque e dona Isabel da Cunha dormiam ambas fora do dormitório em uma cama’, e o mesmo fazia Antónia Freire com Filipa da Cunha sua irmã. Uma das inquiridas acrescentou que dona Guiomar era muito soberba e fazia desunião entre as monjas. A opinião era partilhada: ‘muito odiosa’, diziam umas, ‘odiosa porque desonra as monjas deste mosteiro e poucas há com que já não pelejou’. Ela e dona Isabel da Cunha faziam feitiçarias, afirmavam outras.

Curiosamente, essa dona Guiomar quem ao ser questionada, mais pugna pela reformação do mosteiro. Respondera ao questionário, que a abadessa era ‘espiritual e boa’, mas demasiado velha. Precisava duma assistente, duma ‘regedor’, que a ajudasse a corrigir a casa. E o que tinham as donas a dizer a castidade e honestidade das religiosas? Nomearam-se algumas religiosas de notória má fama. Uma delas, de nome Brites Pinto, emprenhara de Gaspar Dias, Prior de Arrifana, e tivera seu filho no mosteiro. Sobre a forma como a porteira cumpria o seu ofício, as respostas também tinham sido pouco abonatórias: que não cuidava da sua porta como devia, ‘deixa receber e dar qualquer coisa e fia a porta a uma moça’. As únicas que se tinham pronunciado a seu favor eram aquelas a quem as suas companheiras justamente acusavam de se servir da porteira para receber e mandar cartas, e até para receberem os seus namorados.

Quanto à autoridade da abadessa, questionadas se ela era firme e se fazia obedecer: ‘É velha e faz tudo quanto pode para fazer bem’, diziam umas, ‘mas precisaria de uma ‘regedor’ que a ajudasse ‘por sua doença e velhice e frouxidão’, ‘que lhe parecia que era necessária outra regedor por sua fraqueza e já não dar pelas coisas da ordem’, diziam outras. E uma sua sobrinha, dona Ana da Cunha, respondera que, quanto a ela, lhe parecia que sua tia era ‘fraca e remissa em seu ofício’.

O bispo de Tripoli, o visitador de então, ralhara, castigara, introduzira algumas reformas, mas, a avaliar pelo que o Abade de Claraval, dez anos depois, lá iria encontrar, o resultado fora nulo.

D. João, tão adverso à presença do abade de Claraval, não devia ter mudado de ideias a esse respeito, mas parecia conciliado com a presença de Edmé, esperando provavelmente, que este, com a sua reconhecida autoridade e, o que era vital, com a sua independência em relação aos familiares das monjas e abadessa do mosteiro, conseguisse aquilo que um visitador português não conseguira: pôr ordem naquela casa.

Munido de carta do rei para a abadessa, Dom Edmé partiu para Almoster. Saiu de Lisboa com os seus homens a 13 de Agosto, tinham passado por Loures, São Julião do Tojal, Alverca. Almoçaram em Vila Franca de Xira. Em tão boa hospedaria, anotou sarcasticamente o secretário, que não havia lume para cozinhar, e que tiveram de almoçar de figos, peras e uvas. De ali, seguiram caminho, passaram pela Castanheira, e foram dormir a Azambuja. Deitados no chão, elucida frei Claude.

No dia seguinte, o secretário acompanhado do monge de Alcobaça, que agora fazia parte da comitiva, tinham ido à frente para anunciar no mosteiro a próxima chegada de Dom Edmé.

Frei Claude descreve o trajecto. Ele e o seu acompanhante partiram de madrugada, pela fresca, atravessaram terras férteis, mas incultas, e chegaram a um pequeno vale, que conduzia ao mosteiro. Deixaram os cavalos na aldeia contígua, e seguiram a pé, anunciar à Abadessa a vinda do Abade Claraval. A senhora ficara perturbada: ‘e todo Jerusalém com ela’, escreve Frei Claude, parafraseando uma frase bíblica. Era compressível. Uma visitação do severo e poderoso Abade de Claraval não apetecia A abadessa, dona Catarina de Meneses, era irmã do conde de Linhares e tia do marquês de Vila Real. Tinha tal orgulho na sua parentela, que desprezava todas as outras abadessas, escreve Frei Claude. Quanto a visitações, não precisava delas, dizia a senhora. Pessoa como ela, não lhe devia estar sujeita a visitação. Foram precisas duas insistentes visitas do secretário para que a abadessa se dignasse receber Dom Edmé para um primeiro encontro, prelúdio de uma luta que duraria quase um mês. Nem as cartas do rei, que o Abade lhe mostrou, conseguiam convencer dona Catarina. Receava fazer coisa contrária aos direitos de Sua Alteza e do Cardeal Infante, dizia ela. Ao que o Abade retorquira que, antes de el-rei, do cardeal, e de ele e ela estarem no mundo, já aquele mosteiro era casa de São Bernardo, e filha de Claraval. E que assim seria quando todos eles estivessem apodrecendo sob a de terra.

As abadessas eram obrigadas a cuidar do sustento dos visitadores, e, em geral, elas esmeravam-se na quantidade e qualidade das iguarias que forneciam àqueles hóspedes. A abadessa de Almoster parecia apostada em fazer o contrário. Esperando provavelmente afastar pela fome a incómoda visita. A única coisa que viera do mosteiro para a primeira refeição do Abade e sua comitiva, fota constituída por pão, dois ovos, pêras e uvas. Quando o criado do Abade fora ao mosteiro reclamar, trouxera um pouco de vinho, e tão mau, que ninguém o bebera.

A dada altura chegou reforço na pessoa de um padre que o Cardeal Infante enviara para ajudar Dom Edmé. O padre foi ao mosteiro, e, em nome do Cardeal, ameaçou as monjas de usar de força, caso elas não obedecessem a Monsenhor. Não convenceu. A abadessa opunha-se a tudo que o Abade propunha, e as religiosas, seguras do apoio da sua prelada, mangavam do visitador. Uma das monjas declarou que tinha um rescrito apostólico, e que tencionava servir-se dele para não seguir o que o Visitador lhes quisesse impor. Quando o Abade conseguiu finalmente penetrar no mosteiro, uma das monjas fingiu-se louca, conta frei Cluade. Só se curara do ataque de loucura quando o Abade lhe mandou dar a disciplina.

Dom Edmé conclui-o que a única forma de resolver aquilo era tirando dali algumas das monjas, transferindo-as para outros mosteiros, e deu ordem nesse sentido. A partida das exiladas foi tumultuosa. Uma das monjas que tinha uma amiga entre elas, berrava como se lhe arrancassem o coração, quando a viu de partida. Depois ensaiou bêlements de carneiro, e por fim, resolveu relinchar como um burro. Só se calara quando Monsenhor ameaçara de a mandar para Arouca, escreve frei Claude. Arouca, como se verá adiante, tinha uma abadessa muito severa, o que devia ser sabido no mundo monástico. Isto feito Dom Edmé decidiu ir a Lisboa para falar directamente com o rei, e, a 31 de Agosto, dava conta a D. João do que se
Convento de Almoster
passara em Almoster. Em sua opinião as coisas só entrariam na ordem se saísse de lá a abadessa. “Senhora tão apta a governar um mosteiro como um monge a governar um império”, dizia o Abade. O rei concordava, mas havia que ter em conta a poderosa família da senhora. O marquês de Vila Real e o conde de Linhares, queriam evitar o escândalo da saída da tia e irmã por ordem superior. Soube-se, que um padre no qual o Abade confiara, atiçava em segredo os nobres parentes de dona abadessa contra Dom Edmé. Reuniões sucediam a reuniões. Até que, a 24 de Setembro, se chegou a um acordo. Enviar-se-ia um emissário a Almoster, com a missão de ‘docemente’, convencer Dona Catarina a deixar o mosteiro.

O rei, que tão relutantemente concedera o direito de visitação ao Superior de Cister, conciliado com aquele visitador, que se conseguira impor até às insubordinadas de Almoster, encarregou Dom Edmé de nova tarefa, visitação do mosteiro de São Bento de Castris, junto de Évora, outro caso de notória imoralidade e de indisciplina. Dom Edmé não tinha sobre esse mosteiro a autoridade que tinha sobre os mosteiros da sua Ordem, mas aceitou o encargo.

Um primeiro exame do que se passava nesse mosteiro já fora feito por tal doutor Mangano, a quem D. João nomeara para o efeito. O inquiridor descobrira tantas personagens da Corte gravemente implicadas no que lá se passava, que não quisera entregar o resultado da sua tarefa sem ter apagado o nome dos implicados: ‘para que as suas numerosas e graves faltas não fossem conhecidas’, escreve frei Claude. Precaução inútil, acrescenta ele. Os mesmos nomes e as mesmas acções, iriam ficar registadas na inquirição que se seguira.

Dom Edmé chegou a Évora a 13 de Outubro. Aí ficou - mal instalado como sempre -, e, no dia seguinte, dirigiu-se ao dito mosteiro de São Bento de Castris. O qual, ‘verdade ou não’, escreve o Secretário, era tido então pelo mais mal-afamado de todo o país.


Claustro de São Bento de Cástris
 

Dom Edmé fora recebido por abadessa e religiosas ‘aparentemente’, escreve Frei Claude, ‘com grande humildade’ Até houvera lágrimas durante a alocução do Abade: ‘Não sei se de alegria, se de dor’, comenta o mesmo. Monsenhor visitara a igreja, que encontrara em miserável estado. Ócio dos enfermos era coisa que não existia, a sacristia estava dividida em duas partes, uma era destinada às vestes sacerdotais, que estavam acomodadas como ‘tripas secas no mercado’. A outra parte da sacristia servia de dispensa. Guardavam-se lá alimentos de toda a sorte, tinha uma chaminé onde se penduravam presuntos. Todo o resto, condizia. A inquirição à abadessa e religiosas foi agitada. Estava o Abade procedendo à inquirição de uma das monjas, quando ouviu um grande grito, foi ver do que se tratava, era a abadessa, que fingia estar a morrer. Monsenhor ‘conhecendo bem a malícia feminina, trovejara tão forte e tão alto, que dera a saúde á semi-moribunda, e enxotara com o seu vozeirão as monjas que assistiam ao espetáculo. Que se repetiu dias depois, com a abadessa fingindo-se novamente doente.

As actas daquela visitação ficaram em Portugal, informa frei Claude, porque o que nelas se lia era mau demais para que se pudesse levar para fora do reino. ‘Trinta e três homens, quase todos cortesãos, estavam implicados’ .

Ao visitar em seguida os mosteiros femininos de Arouca e de Lorvão da sua Ordem, Dom Edmé teve finalmente alguma coisa a louvar.

A Lorvão chegou o abade a 8 de Dezembro vindo de Salzedas. Atravessara a serra do Bussaco, avistando do alto o mosteiro de Lorvão: ‘situada entre duas assustadoras serras, local horrível e de absoluta solidão’, escreve Frei Claude.

Por caminhos que só permitiam ir a pé, Monsenhor chegara em meia hora de descida ao ‘muito piedoso mosteiro de Lorvão’ onde foi recebido em procissão pela abadessa e as suas monjas, e onde a visita revelou um mosteiro do qual não tivera que se queixar, que pudera mesmo louvar.

Frei Claude não costumava poupar as críticas, como se viu. Se fala de Lorvão como um muito piedoso mosteiro, era porque de facto assim era. Ora seria justamente contra Lorvão, que D. João III, no prosseguimento dos seus esforços de reforma, mais se empenharia. Foi um muito curioso episódio, do qual se trata a seguir.

 

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VIDA QUOTIDIANA DAS MONJAS NO MOSTEIRO MEDIEVAL - CAPº XV A VISITAÇÃO

>> quarta-feira, 20 de abril de 2016


De tempo em tempo batia à porta do mosteiro uma cisita muito especial: o ‘visitador’. Vinha conversar com a abadessa e as monjas, examiná-las, averiguar como estavam as coisas lá dentro. Vinha fazer a 'visitação'. No fim da sua visita, o visitador redigia uma acta, composta a partir dos apontamentos que seu secretário fizera durante a visitação. As actas dos visitadores – as que existem, porque muitas foram destruídas - são uma importante fonte de informações sobre a vida religiosa, moral e material dos mosteiros.

O Bispo Visitador
A forma de a fazer a visita obedecia a regras preestabelecidas. A abadessa do mosteiro que iria ser visitado, recebia, com certa antecedência um aviso do visitador, participando a visita e anunciando a data desta. Permitia desta forma que no mosteiro se arrumasse a casa e que as religiosas se preparassem mentalmente para as questões que lhes seriam postas, e aquelas que elas se propunham apresentar. O visitador e o seu séquito eram recebidos à porta do mosteiro pela abadessa e pelas principais oficiais. Dirigia-se depois para a igreja onde fazia uma curta oração, e em seguida era conduzido cerimoniosamente à sala de capítulo. Ou à outra dependência, que naquele mosteiro servisse para as reuniões capitulares.




Sala do Capítulo Lorvão
O visitador fazia ali uma primeira exortação – um ’capítulo’ - de admoestação e de exortação. Ou seja, dirigia-se às religiosas reunidas em capítulo, lembrando-lhes a obrigação de aceitarem a visita, e de colaborarem com os visitadores.
A cantor-mor devia então ler a acta da visita anterior e a ‘forma visitations’, o documento no qual se expunha a forma de fazer a visita. Uma vez terminada a leitura, o visitador lembrava às religiosas a obrigação de obedecerem ao espírito da visita, denunciando os males que porventura existissem no mosteiro e apontando todas as deficiências por elas observadas. Normalmente seguia-se a inspecção dos locais, primeiro a igreja e a sacristia, depois os dormitórios, e todas as outras dependências e oficinas do mosteiroA esta primeira parte da visita, toda ela dedicada a aspectos materiais, seguia-se a parte espiritual e moral da visitação, com o interrogatório à abadessa, oficiais, e todas as outras monjas. Havia sido preparado um local adequado onde se instalava o visitador com o secretário que o acompanhava e lhe servia de escrivão. E que tinha jurado guardar segredo de tudo que viesse a ouvir. Sentava-se à mesa preparada para o efeito, abria o livro das actas, aparava a pena.
O escrutínio começava pela abadessa seguida de todas oficiais e monjas. Instadas a falar, aquelas senhoras não se coibiam. Falavam, queixavam-se, acusavam. O secretário escrevia, o visitador ouvia. Quando um caso tinha de ser mais aprofundado, chamava-se de novo alguma das monjas para ser interrogada sobre esse caso em particular.
Se as monjas tinham a razão de queixa da sua abadessa, queixavam-se ao visitador quando este vinha à sua anual visita. Este senhor daria o devido desconto a uma queixa, mas quando as queixas se multiplicavam, tomava a coisa a sério, e fazia severas recomendações à abadessa.
O bispo de Viseu, D. Jorge de Ataíde, fez severas reprimandas à abadessa do convento de Santa Eufémia de Ferreira d’Ave, quando da sua vissitaçãi; ‘achamos por visitação, que abadessa não toma conselho, e leva a mal quando lho dão. Mandamos-lhe que se emende, aliás procedemos contra ela como desobediente e dissipadora do mosteiro’ A partir do que ele ouvira e vira, e do que apreendera da leitura e consulta dos livros da casa, o visitador tirava a sua conclusão e ditava ao secretário a ‘Acta da Visitação’. Acta que no fim da visita era lida à comunidade, chamada de novo, ‘por campa tangida’, para a sala do capítulo.
Para que as recomendações feitas na Acta não fossem esquecidas, esta devia ser periodicamente relida, função que cabia à cantor-mor. Se o Visitador encontrara tudo em bom estado, despedia-se da comunidade com um ‘Omne bene’ e, sendo caso para isso, tinha alguma palavras de louvor O direito de visitação ao mosteiro por parte da autoridade eclesiástica estava estipulada nas constituições, e diferia de Ordem para Ordem, e até de mosteiro para mosteiro.
O visitador podia ser o bispo da diocese, e podia ser um religioso superior da Ordem à qual o mosteiro pertencia. Ou era, como se dava nos mosteiros cistercienses, o abade da casa que se dizia ‘mãe’ do respectivo mosteiro. A abadia de Alcobaça era filha da abadia de Claraval, e era mãe do mosteiro de Odivelas. O abade de Alcobaça era visitado pelo abade de Claraval e, por sua vez, visitava Odivelas. No caso de Lorvão, já se disse que a rainha D.Teresa filiara o mosteiro directamente a Claraval. Lorvão era portanto visitado directamente pelo Abade de Claraval, ou por alguém por este nomeado para o efeito. Um documento, datado de 1273, resolvendo um diferendo entre os mosteiros de Arouca e de Lorvão, atesta que nesse ano os dois mosteiros tinham sido visitados pelo então abade de Claraval.
A autonomia dos mosteiros cistercienses em relação aos bispos das suas dioceses não era por eles apreciada, e, por mais de uma vez, eles tentavam impor a sua visita. Pelo menos aos mosteiros feminino da Ordem. No caso de Lorvão não consta que o tenham conseguido.

            Além dos cistercienses, havia outros mosteiros de mulheres dispensados da visita episcopal. Dispensa que tinham obtido por privilégio papal, ou por outra forma, e que sabiam defender. O mosteiro de Chelas defendeu-se por mais de uma vez da visitação do seu convento pelos bispos de Lisboa, a quem não reconheciam esse direito. Uma grande contenda deu-se no século XIV, entre 1350 e 59. O bispo de Lisboa visitara, indevidamente, na opinião das Donas de Chelas, o seu mosteiro, e as religiosas avisaram o Bispo, que se queixariam ao Papa se o caso se repetisse: Escreveram nesse sentido ao bispo: ‘Receosas de ser agravadas no futuro por vós, Reverendo em Cristo, pai e senhor, Lourenço, pela Graça de Deus e da Sé apostólica, Bispo de Lisboa, como é evidente pela vossa intercessão, que na véspera fizeste ao dito mosteiro; aquela visitação, e o modo da visitação excedendo contra a Regra da dita Ordem e costumes do próprio mosteiro’ etc. Nova querela dá-se em 1426. As donas de Chelas mandam um emissário a Roma para levar à mais alta instância eclesiástica a sua queixa contra D. Jorge, bispo de Lisboa, que pretendia que elas lhe pagassem visitação, o que o bispo, segundo elas, não lhes podia exigir por elas estarem isentas disso por privilégio antigo do Papa.

No mosteiro de Santa Clara de Vila do Conde, as monjas negaram-se a receber a visita do Bispo de Ceuta, nomeado por D. João III para visitar e reformar os mosteiros de religiosas em Portugal. Era uma visitação um pouco diferente das outras. O bispo apresentou-se diante do mosteiro, acompanhado do corregedor e de outras entidades, e a visita foi-lhe negada de maneira pouco cortês. Como se fica a saber pela carta que o bispo dirigiu nesse mesmo dia ao rei. Ele e os seus acompanhantes tinham-se aproximado da porta do mosteiro, escreve o bispo. As freiras tinham vindo à janela, e ele, Bispo, tentara fazer-lhes ver razão: ‘eu lhes disse muitas coisas mui mansamente. Que quisessem ir à grade da igreja para ele lhes fazer algumas perguntas e que então poderiam dizer o que lhes aprovasse’. As religiosas tinham respondido, que já haviam dito e mandado dizer, que não abririam qualquer porta, nem da igreja, nem do convento. Que ouvissem pelo menos as cartas apostólicas que ele tinha na mão, insistira o Bispo, entregando as cartas ao corregedor para este as ler. O homem começara a leitura, mas não se conseguira fazer ouvir, as freiras berrando que não queriam ouvir as ditas cartas.
O Bispo dera-lhes então três horas para lhe abrirem as portas e o receberem, caso contrário as excomungaria. Mas não acreditava que a ameaça as fizesse ceder, escrevia ele ao rei: ‘creia Vossa Alteza que elas não hão de abrir’. As portas estavam fechadas ‘com travessas de dentro e pregos grandes cujas pontas saem fora’, acrescentava ele. Sua Alteza que lhe dissesse se queria que se quebrassem as portas ou não.1 Estas revoltas eram excepecionais, mas existiram, e existiram em particular em mosteiros femininos.

Uma obra do século XVI, o relato da visita que o abade de Claraval fez a Portugal em 1533, e do qual adiante se trata, narra vários casos de Visitação mal recebida




 4 B.N. Visitação de D. Jorge d'Athaide. COL.POMBALINA, 741
Peter Whitfield  History of European Art
1 T.T. Corpo Cronológico. Mº 10, Nr.135

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VIDA QUOTIDIANA DAS MONJAS NO MOSTEIRO MEDIEVAL - CAPº XIV O MUNDO NO MOSTEIRO

>> quarta-feira, 13 de abril de 2016




São Bento enaltecera a hospitalidade como uma grande virtude, e recomendara-a muito particularmente aos religiosos: ‘todos os hóspedes que sobrevierem sejam recebidos como Cristo’, dizia a Regra. O abade deveria receber os hóspedes com o beijo da paz, rezaria com eles à sua chegada, dar-lhes-ia água às mãos, e tanto ele, abade, como todo o convento, lhes lavariam os pés. O abade poderia mesmo, caso fosse necessário, quebrar o seu jejum ‘por amor aos hóspedes’. Recomendava-se particular cuidado e atenção com os pobres e com aqueles que andavam em peregrinação. Os hóspedes ricos não requeriam grandes atenções, dizia São Bento, eram suficientemente enaltecidos por si, ‘com o espanto que causa o seu aparato’. A comida dos hóspedes devia ser cozinhada em cozinha própria. caso esta não existisse, os hóspedes seriam servidos da cozinha do abade. Isto para que os visitantes - os quais, como a Regra observava - nunca faltavam num mosteiro - não inquietassem a comunidade caso chegassem ‘fora de horas’.

As monjas seguiram, tanto quanto possível, os preceitos recomendados aos monges. Para que se pudessem oferecer aos viandantes o bom acolhimento que a Regra recomendava, foram nascendo junto dos mosteiros casas separadas para albergar hóspedes. Eram os mais apetecidos locais de pernoitar. Grandes senhores com as suas convidadas, os próprios reis e príncipes lá se albergavam. Clérigos em missões, oficiais de justiça, almocreves, batiam à porta dos albergues dos mosteiros.

Estas hostelarias – ou hostais - eram em geral junto do mosteiro, mas as monjas de Arouca mantinham, além deste, um albergue afastado. O ‘albergueiro’ amanhava uns casais do mosteiro, na condição de ‘dar de pão e de leite aos que aí forem e camas e fogueiras’1

            As mais frequentadas hospedarias monásticas eram naturalmente as dos mosteiros que se situavam perto duma estrada concorrida, ou na encruzilhada de caminhos de peregrinação. Nada disso se dava em Lorvão. Situado em local isolado, poucos ali se albergariam. Era caminho de algum viajante que, vindo das terras da Beira Alta, se dirigisse para a Guarda e talvez para fora do reino, podia optar pela travessia da serra do Bussaco, e iria pernoitar em Lorvão. Mas não eram os passantes quem mais se hospedava mosteiro, e sim aqueles que ali vinham tratar dos seus negócios. Os que pretendiam comprar ou vender terras, discutir novos arrendamentos, novas formas de pagamento. Eram assuntos que não se resolviam de um dia para o outro, que podiam obrigar o visitante a pernoitar uma ou mais noites. Em 1361, quando o Senhor de Carvalho fez uma importante troca de terras com a abadessa de Lorvão, o acto foi testemunho por Dom Frei Lourenço, abade do mosteiro de São Cristóvão de Lafões, por Joam Fernandes, cavaleiro da Ordem de Santiago, por Afonso Vicente, prior da Marmeleiro, e por Domingos Aires, homem do dito Álvaro Fernandes. Toda aquela gente permaneceu mais de um dia em Lorvão, hospedando-se na hospedaria do mosteiro. Sucedia que homens da Igreja se reunissem no recato de Lorvão para debate ou conferência. Em 1298 juntaram-se lá, e testemunharam um documento, os abades de Vila Maior, do Bispado do Porto e o Abade do Canado (sic) do Arcebispado de Braga. Um contrato de arrendamento redigido em latim germanizado aponta para a presença de um religioso alemão, que por ali passou, ali se demorou, e fez o favor de ajudar no escritório. Outros viajantes chegavam, tratavam dos seus negócios, partiam. Eram hóspedes que não perturbavam o recato das monjas. Havia porém outro tipo de hóspedes.


           
Os fundadores de mosteiros e seus descendentes tinham hospedagem assegurada na acta da fundação do novo mosteiro, reservando, para si e sua família, o direito da visita ao seu mosteiro. Em alguns casos até tinham o privilégio de pernoitar com toda a sua comitiva. E toda ela era alimentada e mantida pelo tempo que lhe que lhe conviesse. Perturbavam a tranquilidade das habitantes do seu pequeno mosteiro e arruinavam-lhe as finanças. Os fundadores reais faziam o mesmo. Provavelmente tinham sido eles os inspiradores. Quando D. Diniz fundou o mosteiro de Odivelas, estipulou quem poderia entrar no mosteiro: ‘in claustrum’. Era permitida a entrada a ele, rei, aos seus sucessores, acompanhados de pessoas honestas e idóneas. E ainda ao bispo de Lisboa e ao abade de Alcobaça, com dois acompanhantes cada. O rei nomeava ainda os homens - médico, sangrador, carpinteiro etc - que no exercício das suas funções ou ofício podiam entrar na parte claustral do mosteiro. Isto quanto a homens, porque à entrada de ‘boas donas’ não se punha qualquer entrave.
Servindo uma  importante visita
A porta estava aberta a todas as grandes senhoras, já que todas se consideravam ‘boas donas’, e portanto com o direito de visitar o mosteiro, e mesmo de lá se instalar.
 
 
Tanto rainhas como particulares apreciavam a comodidade que oferecia a vizinhança da casa monástica, e construíam casas perto do mosteiro para ali passarem um tempo. A rainha D. Isabel construíra casas junto de Santa Clara de Coimbra e legaria as casas ao mosteiro, com recomendação que, depois de sua morte, pudesse lá ficar, com o consentimento da abadessa e do rei, alguma pessoa da sua linhagem ‘mais chegada’ Também ali poderiam ficar, sempre que o desejassem, ‘quando lhes cumprir’, os futuros reis, e seus herdeiros com suas mulheres. Foi nessa casa, contígua ao mosteiro, que o infante D. Pedro instalaria D. Inez de Castro, e aí que nasceriam os seus filhos.


Justa
D. Leonor de Aragão foi instalada na mesma casa antes de casar com o futuro rei D. Duarte. As festas de casamento, com todas as cerimónias e pompas próprias, realizaram-se na igreja do mosteiro. Depois da cerimónia religiosa, a noiva jantou com as suas damas na sala do Capítulo. E todas assistiram às justas que se realizaram diante do mosteiro.

Lorvão não participou activamente nesses festejos, mas teve por esta ocasião visita real. D. Duarte e o infante D. Henrique, foram até ao Botão visitar Vasco Pais do Couto, que fora aio deles, e ali vivia. Pernoitaram na casa que o mosteiro de Lorvão aí tinha.

D. Joana, a segundo mulher de D. Afonso V, conhecida por ‘Excelente Senhora’, instalava-se igualmente - não de sua inteira vontade, é verdade – nas casas junto convento de Santa Clara de Coimbra, e aí morreu. Todas estas senhoras eram muito devotas, algumas, quase santas, mas, por mais devotas que fossem, não lhes era lícito abdicar das prerrogativas do seu estado. A sua posição exigia que fossem servidas por pessoal numeroso, e havia que ter com elas cuidados e atenções próprias do seu grande estado. Tudo pouco compatível com o recato monacal que as mesmas senhoras exigiam das monjas.

            No caso de Lorvão a sua localização não o fazia apetecido como local de festejos e também não agradava como refúgio das grandes senhoras. E não sofria de imposições de hospitalidade de fundadores, porque a rainha D. Teresa tivera o cuidado de não impor condições desse tipo ao mosteiro que protegera. Mas não o livrou de visitas, e algumas das suas abadessas foram notoriamente hospitaleiras.

Na acta da visitação de 1536, o visitador ocupa-se justamente da exagerada hospitalidade da abadessa, proibindo a esta e às suas monjas, sob pena de excomunhão, de receberem dali em diante a ‘nenhuma pessoa que seja, de nenhuma condição, nem tempo, nem maior idade, nem menor que seja, nem por causa nenhuma que parecer, para a receber.’ E, evidentemente, não as manteriam na dita casa, ‘à custa do dito mosteiro’. Se alguma dessas pessoas, criança ou velha, estivesse naquela ocasião dentro do mosteiro, ordenava-se que seus pais e parentes lhes dessem lá meios de sustento, ou que os levassem para as suas casas: ‘Mandamos que dentro de três meses sejam mandados para fora do mosteiro, se as não mantiverem os ditos parentes’.

      Havia outro tipo de hóspedes, que os visitadores também não apreciavam, mas que em geral tinham de tolerar. Eram as senhoras que tinham na cerca do mosteiro pequena casa ou cela, na qual, a troco de uma soma estabelecida por contrato, podiam viver até à morte. Estes contratos nem sempre provavam tão lucrativos como a abadessa e o convento esperavam. Se a casa era afastada, construída em terrenos do mosteiro, o pagamento podia ser em géneros produzidos na terra em que a casa se construíra. Se a terra era boa e bem amanhada, e a pensionista fazia o favor de morrer cedo, o contrato podia ser proveitoso. Mas as propriedades nem sempre eram tão rentáveis como as suas donas as tinham pintado. Havia os anos maus, em que nem mesmo as melhores produziam. Outra forma de contrato era o pagamento pela pensionista de uma soma avultada para o seu sustento até à morte. Era contrato com o qual as abadessas pensavam estar fazendo óptimo negócio, e que só o era, quando a pensionista vivia pouco tempo. Quando ela persistia em viver muito para lá do tempo que se calculara, o mosteiro tinha de alimentar mais uma boca, quando a soma recebida para o sustento da pensionista já estava mais que esgotada. E quando a moeda já podia ter baixadodo de valor. Apesar de tudo isso, apesar dos bispos e visitadores constantemente fulminarem contra a prática, as abadessas, sempre necessitadas de dinheiro, não sabiam resistir à tentação da venda de pensões por moeda sonante.

            As primeiras hospedam desse tipo, as primeiras pensionistas, entraram aliás para Lorvão pela mão da própria fundadora. Em 125O, pouco antes de sua morte, a rainha D. Teresa firmou um acordo com a então abadessa, para que uma tal Maior Pedro, sua protegida, sua ‘clientula’, pudesse viver em Lorvão até ao fim dos seus dias. Dar-se-lhe-ia a casa que fora de Teresa Sanches - uma pensionista anterior, portanto - e receberia de alimentação o mesmo que as monjas. As suas serventes, por sua vez, teriam o mesmo que aquelas que serviam o mosteiro. Em troca, o mosteiro receberia depois da morte da dita Maior Pedro, a herdade do Pereiro, que a rainha doava para esse fim à sua protegida.   

Não se tratava naqueles casos de personagens que requeressem atenções especiais, mas a sua presença também não devia ser condutiva à paz claustral, trazemdo para o mosteiro as notícias e os boatos do grande e pequeno mundo. A ideia era humana, respondia a uma necessidade, e não espanta que viesse a ser geralmente adoptada na maioria dos mosteiros femininos.
 

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VIDA QUOTIDIANA DAS MONJAS NO MOSTEIRO MEDIEVAL - CAPº XIII DO SCRIPTORIUM

>> quarta-feira, 6 de abril de 2016


O escrivão
Em mosteiro grande, e grande proprietário como era o de Lorvão, uma das mais importantes oficinas era o escritório. Era no escritório que se centrava a administração da casa. Recebia-se a gente que vinha tratar de negócios, discutiam-se e redigiam-se contratos, escreviam-se cartas. Eram tarefas que exigiam conhecimentos, homens que estivessem à vontade em matéria de escrita, conhecendo bem o latim, sabendo o formulário correto a usar em cartas para soberano, bispos e leigos. Não podiam ser demasiado vagarosos, os documentos eram muitos, e sempre escritos em duplicado, em certos cassos, em triplicado, a cópia tão correcta como o próprio original. Não era trabalho para leigo. Escribas competentes havia que os procurar entre os religiosos das Ordens. Em Lorvão e em Arouca havia como se viu, entre a gente de fora, um pequeno grupo de homens, monges e padres, que cantavam os ofícios divinos, ministravam os sacramentos, e que eram, juntamente, os scribas do scriptório. Um deles podia ser designado para secretariar a abadessa, e era de entre eles que era escolhido o procurador do mosteiro.


Documentos ligados  e  enrolados


Em 1361, quando se redige num contrato de escambo (sic) entre a abadessa dona Mécia Vasques da Cunha e Álvaro Fernandes, senhor de Carvalho, está presente ‘Estevão Domingues, escrivão da dita abadessa’. Em 1406, no emprazamento de uma almuinha em Coimbra, a carta de contrato é assinada e selada pela abadessa, tendo sido escrita pelo seu escrivão, ‘Estevão Lourenço: ‘Nosso escrivão a fez’, lê-se. À cabeça do escritório estava o procurador. Era o braço direito da abadessa, tratando diariamente com ela dos assuntos correntes. A abadessa era senhora do mosteiro e uma proposta sua respeitosamente recebida, mas era maduramente pensada pelo procurador, Um pouco razoável projecto de Dona Abadessa podia ser imposto ao procurador contra sua vontade. Tudo indica porém que Lorvão foi na generalidade bem administrado e gerido. Que teve procuradores, ou feitores – a outra designação para o cargo – competentes
No scriptorium
 Quando as monjas tomaram em Lorvão o lugar dos monges, o seu procurador, instalou-se naturalmente no local onde funcionara a anterior administração. Um documento do século XIV, permite visualizar com razoável certeza o local onde se situava o escritório. Em 1398, Joham da Ponte, prior de S. João de Loure, faz uma doação a Lorvão por meio de testamento, e esse testamento fora feito, lê-se, ‘no mosteiro de Lorvão na torre dos procuradores’. Ou seja, na torre onde trabalhavam os procuradores.

Nos primeiros mosteiros beneditinos existia um corpo distinto, uma torre, que, quer ligada ao corpo principal do mosteiro, quer ligeiramente afastada dele, servia aos monges de atalaia e de portaria. Ainda hoje se reconhecem em Lorvão, os vestígios dessa torre. Era nesse corpo em forma de torre que era o escritório. O visitante era recebido pelo monge porteiro, e encaminhado por ele, caso ele viesse em matéria ligada à administração, para uma sala de espera: o ‘parlatório de despacho’ O padre que em 1398 fez a doação ao mosteiro fê-lo na sala de despacho, que era, especifica ele o local onde esses ‘autos’ se faziam. Havia outro parlatório junto da portaria, esse destinado a quem pretendesse tratar de negócio com alguma das monjas. Nesse caso, o visitante era encaminhado para ‘a varanda que está na portaria do dito mosteiro, aí na grade do parlatório que ali está, que é lugar costumado para se fazerem tais autos’. Muitas monjas tinham bens próprios que administravam. Discutiam os negócios à grade do palratório da varanda da torre.

A assinatura dos documentos pela abadessa e ratificação de seu convento não se fazia sempre no mesmo locai. A grande maioria dos contratos era assinada na casa da abadessa. Assinam-se porém igualmente em outros locais devidamente apontados na escritura: ‘à porta da sala do capítulo’, junto do altar de um santo etc

Toda grande empresa tem de guardar e arquivar os documentos que recebe e a cópias dos que enviou. Uma vez o documento assinado, uma cópia era depositada no cartório ou arquivo. A arrumação nem sempre era perfeita. Foi por mero acaso que, em 1421, se descobriu um pequeno livro de apontamentos do século XIII, contendo os nomes dos rendeiros do mosteiro na região de Coimbra após a saída dos monges, mencionando muitos bens e rendas de que se havia perdido o direito. É um dos primeiros tombos de propriedades do mosteiro, ou, pelo menos, um dos primeiros de que há notícia. Pedro Anes, então procurador, considerou o achado de tal importância, que mandou registar o achado por um notário. Fica-se assim a saber, que o livro fora achado no mosteiro de Lorvão, pelo seu procurador, a 6 de Fevereiro da era de 1459 - ano de 1421. E que o dito livro, junto com outros documentos, fora achado ‘em casa onde são as arcas das escrituras, em uma arca velha, onde jaziam escrituras antigas.’ Havia outras escrituras ‘em sacos velhos traçados e em cofres de coiro’. O tabelião Estevão Anes testemunhou que, em presença dele, tabalião geeral por el rei Entre Douro e Mondego, e das testemunhas adiante nomeadas, o dito Pero Anes achara ‘este livro em a dita arca antiga.’

            É provável que fosse a partir dessa descoberta que se procedeu a uma primeira organização sistemática do arquivo do mosteiro. Várias outras houve no decorrer dos anos.


            O arquivo de Lorvão difere da maioria dos cartórios de outras casas de religiosas na sua organização e no tipo de documentos que nele se conservavam. Em Lorvão não se guardava todo e qualquer pergaminho ou papel escrito. Arquivava-se o que pudesse servir, ou vir a servir no futuro, à administração do mosteiro. E só isso. É visível que se procedia periodicamente à eliminação daquilo que não interessava esse fim. Se a evidência não o demonstrasse, tínhamos a confirmá-lo a carta de uma abadessa quinhentista, que requere autorização para mandar copiar documentos, dando-lhes o valor de originais, porque, diz ela, os escrivães destruíam anualmente as escrituras que tinham mais de um ano. E assim – só para dar um exemplo - em cartório de mosteiro tão grande e antigo como era Lorvão, não se encontra um único contrato de obras anterior ao século XVII. Faltam igualmente os contractos que forçosamente se faziam com obreiros. No cartório do mosteiro de Chelas, que não sofreu arrumação que se veja, há inúmeras escrituras de contratos com mestre d’obras. Em Lorvão, onde o ‘mestre das obras’ com os seus criados aparece constantemente como testemunha, não se acha qualquer contracto de execução de obra sua. Quanto a documentos que tivessem pertencido às próprias religiosas - numerosíssimos no cartório de Chelas - não existem em Lorvão. As religiosas tinham forçosamente papéis particulares, elas adquiriam objectos. Devia haver vestígios, e não há. Em 1368 uma dona do mosteiro de Chelas, compra a João Alcatra, judeu de Sevilha, por 160 libras, uma escrava moura branca, de nome Moeriam, ‘sã dos pés, das mãos, dos olhos’. No cartório de Lorvão talvez não houvesse compras dessa natureza, mas outras decerto se fizeram, e nenhum documento comprovativo existe. Quando, depois da sua morte, a propriedade de uma monja passava para posse do mosteiro, a documentação que dizia respeito à respectiva propriedade dava entrada no cartório. Outra documentação, que a mesma monja tivesse possuído, não tinha a mesma sorte. Sucessivas medidas tomadas por sucessivas abadessas e procuradores, iam num sentido: ter um cartório funcional, de fácil consulta no que interessasse à administração,. Os Tombos das propriedades que periodicamente se mandavam fazer, as cópias que se executavam de documentos importantes e de difícil leitura, iam todos nesse sentido.

Na arrumação usou-se, para os primeiros documentos - aqueles que datavam da longínqua fundação do mosteiro até ao século XIII - uma ordenação puramente cronológica. A partir daí, a arrumação é por locais de proveniência, o que, para efeitos administrativos, era sem dúvida mais conveniente. Os documentos eram ainda classificados como sendo de primeira ou segunda ordem, e consoante o seu valor, eram reunidos em ‘gavetas’, e em ‘maços’.

Em 1522 uma revolução na escrita iria afectar o trabalho dos escribas nos seus escritórios. Até ali escrevia-se com letra gótica, laboriosamente, letra por letra. Ora um italiano, escriba na Curia Romana, chamado Ludovvico Arrighi, publicou nesse ano de 1522 um pequeno panfleto com o título de ‘La Operina’, no qual propunha que as letras não fossem angulares, mas arredondadas. Dessa forma cada letra ligada à letra seguinte, o que dava outra fluidez a escrita. Não se requeria um ponto entre cada palavra, bastava separá-las por um pequeno intervalo.
 


La Operina de Ludovico  Arrighi
Os escribas, os notários adoptaram rapidamente a nova escrita, dita ‘romana’ ou ‘itálica’. Escrevia-se muito mais depressa, como os novos tempos exigiam. Foram desaparecendo os escribas que a soubessem ler a letra gótica, e muitos desaprenderam o latim dos antigos documentos. Em Lorvão era frequente enviar fora para consultar um especialista. O escritório, esse, manteve-se no mesmo local, na velha torre dos procuradores.

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