Os gostos dos autores

>> segunda-feira, 18 de julho de 2011

Realizei um dia, não sei a que propósito, que em todos os meus livros se fala por sua vez, de uma forma ou de outra, de livros. A coisa sucedeu espontaneamente, não porque fosse necessário à acção. Deu-se, creio eu, porque o livro faz de tal forma parte da minha pessoa, que tinha de surgir na minha escrita.
Decerto, pensei, que daí se poderia concluir que todo o autor que trouxesse a leitura para os seus livros – estou a falar em ficção – seria também um leitor, e que, por outro lado, se podia concluir que aquele autor que nunca sentisse a necessidade de utilizar o livro como assunto ou objecto da sua narrativa, que esse provavelmente não era um grande apreciador de outros livros.
Examinei o caso. Constatei com espanto que há autores em cujos livros o objecto ‘livro’ não aparece.
Porque não sentiam a necessidade de o mencionar? Ou por o autor não ser um ‘leitor’, não ser apaixonado da leitura? Creio que é esta a razão. Não falam de livros, porque não são leitores.
Veja-se Agatha Christie. Não me lembro se ela fala de leituras na sua Autobiografia, mas nos seus policiais ‘o livro’ não aparece. Miss Marple faz croché e tricot, é apaixonada de jardinagem, mas não lê. Mr. Poirot, o seu outro detective, reflecte sorvendo um licor adocicado, nunca pega num livro. Os criminosos que Miss Marple e Mr. Poirot desmascaram, são em geral pessoas respeitáveis, bem inseridas na sua comunidade, têm as mais variadas ocupações e distrações, mas a leitura não faz parte delas.
Apostaria que a grande Agatha era apaixonada jardineira, mas não uma leitora.
E Simenon? O inspector Maigret, o detective que Simenon criou, não lê. Mesmo quando ele e Madame Maigret estão de férias, eles não lêem.
O mesmo porém não se dá com os criminosos que o Inspector persegue. Entre estes, e na maioria são de modesta condição, há um ou outro leitor, um deles é um encadernador de obras de grande qualidade. Concluo que Simenon era conhecedor de livros, e talvez ’leitor’.
Passemos a outro género de ficção, e outros autores. Basta ler A Cidade e as Serras e a Ilustre Casa de Ramires para saber com absoluta certeza que Eça de Queiroz era um apaixonado leitor. Gonçalo Ramires escreve um livro e discorre sobre leituras. Jacinto tem em Paris uma grande biblioteca, e lê Homero em Tormes.
Umberto Eco, que põe uma biblioteca no centro de uma sua obra é fatalmente um grande leitor.
E o que é que isso tem? Perguntarão. Nada, mas a mim diverte-me. Assim como me diverte concluir, que Agatha Christie só devia conhecer a cozinha inglesa, e a essa na perfeição, já que muitos dos crimes que ela imagina, são de envenenamento, e em geral servido em produtos culinários. E algumas dessas especialidades, como as sanduíches de “egg and sardines”, que Miss Marple aprecia, não falam muito a favor da cozinha britânica. Parece-me que Mr. Poirot não a apreciava, mas Agatha Christie não fala em algum bom prato que este estrangeiro apreciasse. Porque não conhecia outra cozinha que a da sua Ilha.
Que diferença entre ela e Simenon e os respetivos detectives. Cassoulet, omelette aux fines herbes, crème anglaise onctueuse, cada crime, cada prato.
E, na outra literatura, lá temos Eça de Queiroz e o lirismo com que gaba os pratos da cozinha portuguesa.
Quer o queiram ou não, os autores revelam nos seus livros alguns dos seus gostos, e eu gosto de os descobrir.
Bem sei que não interessa a ninguém mas a mim diverte-me.

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Ter ou não ter o Isalita

>> segunda-feira, 4 de julho de 2011

Escrevi neste blogue sobre livros de viagem, sobre livros de criança, sobre livros de memórias, sobre livros antigos e modernos. Mas tenho de constatar que não foram esses textos de certo nível intelectual que mais impressionaram o público que faz o favor de me ler. O que a este comprovadamente mais interessou foi o que escrevi sobre um livro de cozinha, o 'Isalita'. Sendo assim, porque não dizer mais alguma coisa sobre esse precioso companheiro das donas de casa? Não de todas, é verdade. O Isalita foi descaradamente snob Foi primordialmente comprado e usado por aquilo que no tempo do aparecimento do livro se designava por ’gente conhecida’. Nos nossos dias é suposto não haver classes sociais, mas oiço falar de burguesia alta, média, baixa e não sei se de três quartos. O Isalita não pertencia a nenhuma dessas classes, o Isalita era da gente que se tratava entre si por gente ‘conhecida’, ou seja que se conhecia entre si, e sabia de outros através dos seus conhecimentos. Foram as mulheres conhecidas das duas autoras, Isabel e Angelita, que compraram o livro quando este apareceu, foram elas que passaram palavra, e elas e suas filhas e netas que dele se serviram. O livro tinha muito uso e por vezes era lido enquanto se executava uma receita, tinha rapidamente nódoas de gordura. Não era caro, era substituído. O que talvez explique que o Isalita tivesse tantas edições, apesar de ser pouco conhecido do grande público. O exemplar que tenho é da 25ª edição e é de 1977. Deve ter sido a última edição e não sei como é que a Sá da Costa ousou publicar livro tão conotado com uma certa classe.
Feliz proprietária de um exemplar uso-o constantemente, e é das suas receitas que a minha empregada ucraniana tem aprendido a cozinhar à portuguesa. Como é uma mulher instruída sabe dar valor ao arcaísmo de certas receitas. As autoras não deixavam nada ao acaso. Não digo que recomendassem que se caçasse primeiro o coelho, mas pouco faltava. Para o seu Bacalhau com espinafres - muito da minha estimação - lê-se: “Deita-se numa porção de água fria um molho de espinafres depois de muito bem lavados e escolhidos e levam-se ao lume a ferver. Quando levanta fervura tiram-se e escorrem-se” etc, etc.
O Isalita era tradicional no melhor sentido, adaptando as velhas receitas aos tempos modernos. Era moderno com receitas próprias e fornecendo receitas da cozinha francesa e de outras, e, coisa nunca vista, era prático, dedicando um capítulo ao aproveitamento de restos. Os meninos ‘conhecidos’ sabiam que ao assado de um dia se seguiria uns dias depois o pudim de batata, ou de arroz. Os amigos de Liceu é que tinham sorte, as mães deles não faziam pudim de batata. As mães dos colegas não tinham o Isalita.

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Sobre este blogue

Libri.librorum pretende ser um blogue de leitura e de escrita, de leitores e escritores. Um blogue de temas literários, não de crítica literaria. De uma leitora e escritora

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