Para o Natal o livro certo

>> segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Gosto de dar livros pelo Natal. A pessoas que lêem. Não pretendo converter os não leitores. Dou livros a quatro pessoas,a duas sobrinhas, á minha filha e ao meu genro. Procuro o livro certo para cada um com grande antecedência. Não ando meses antes pelas livrarias, mas começo cedo a pensar no livro que calharia bem para cada um deles. A primeira escolha fiz muito cedo, em Agosto.
Passei uma manhã diante de uma pequena loja de alfarrabista e vi na montra uns daqueles livros de capa azul que eram os livros cor de rosa dos anos sessenta. Entrei, fiz conhecimento, conversei com o simpático dono da loja e comprei-lhe seis livros azuis. Muito contente com aquela aquisução, porque tinha ali o presente para uma das sobrinhas. Amadora de literatura portuguesa, fâ de Miguel Torga, oovira-lhe há tempos, que tinha curiosidade de reler os livros azuis que faziam as delicias da sua juventudo. Pois no Natal ali a teria a sua delicia.
Para a outra sobrinha, mais internacional nas leituras, e já saída daquela fase de leitura exclusiva de ficção, quando não se acredita que haja outra, para ela escolhi dois “livros sobre livros” de Ann Fasdiman. Comentários sobre livros, sobre autores. Devem ser mulheres da mesma idade, Ann Fadiman e esta minha sobrinha. Devem entender-se.
Para o meu genro decidira há meses que lhes daria um livro sobre a cnstrução do “Great Transcontinental Railway”, o comboio construído em fins do século XIX, que ligou a costa atlântica dos Estados Unidos á costa do Pacifico. Lembrei-me disso quando este ano copiei para o meu blogue as impressões de uma tia que fizera a viagem nesse comboio. Há sempre a tendência de pensar que o que nos interessa a nós , interesserá a outros, mas neste caso julguei ter razão para pensar que o meu interesse seria partilhado.
Para a minha filha, que recebe sempre mais do que um livro, a escolha é sempre um pouco difícil. Partilhamos alguns gostos literários, o que em princípio devia facilitar as coisas. Mas também as pode complicar. Já sucedeu dar-mos uma à outra o mesmo livro. E como a Isabel vive em Itália não estou a par do que ela possa ter comprado em matéria de livros. Pergintei-me se ela já teria o “Madame u Deffand et son temps# de Benedetta Cravieri. Era muito posivel, já que era o livro que essa autora publicara depois do seu “L’Áge de la Conversation” de que ambas tínhamos gostado tanto. Era aliás leitura lógica, mas se o tivesse lido decerto me teria falado nele. Arrisquei portanto Madame du Deffand. Dentro do mesmo espírito juntei-lhe “ Le Monde des Salons. Socialité et Mondanité à Paris au XVIII siècle” de Antoine Liltri. O livro foi publicado quando se realizou em Paris uma exposição sobre os salões literários. Bem sei que por cá só nos devemos interessar pelo que sucede em Nova York, Los Angeles e Washington. Mas a minha filha e eu somos muito europeias e até - oh espanto! – lemos francês, e ambas sabemos da importância cultural que tiveram os salões literários.
Foi nos salões do século XVIII que se debateram as ideias que conduziriam à revolução de 1789. E é curioso pensar que o bom francês em que essas ideias se escreveram, discutiram e sobre as quais depois se eloquentemente se discursaria, deviam a sua grande força à corecção do francês em que eram escritas e pronunciadas, e que isso o deviam aqueles senhores a um grupo de mulheres da primeira nobreza, que no século anterior tinham pugnado nos seus salões pela pureza da língua francesa. Forjando a arma que conduziria os seus descendentes à guilhotina.
Completei estes dois livros com romance histórico de Ken Follet.
O Natal já passou, os livros foram dados e recebidos com aprovação e, no caso do saco doirado cheios de romances azuis, com gritos de entusiasmo. Eu tinha escolhido os livros certos.

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Personagens ficricias

>> segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Todos que somos leitores temos os nossos “conhecidos”literários. Personagens de livros que lemos e que ficaram para sempre na nossa memória. Há personagens literárias que são universais, há outras, também da ficção, mas menos conhecidos, das quais talvez só nós nos lembramos e finalmente há aquelas figuras fictícias que são particularmente nossas, porque são fruto da nossa imaginação, porque fomos nós que as criámos.
Que a criação seja de grande ou pequeno autor, o que espanta e espantará sempre é a faculdade da imaginação humana de criar figuras imaginárias credíveis.
Cada escritor terá a sua forma de fazer nascer as figuras que vão povoar a sua narrativa. Não sei qual é a maneira dos grandes escritores, só sei falar da minha própria experiência. Direi que as figuras não nascem todas da mesma forma. Na maioria dos casos, ao contraário do que muita gente pensa, as figuras que criamos, não são cópias de pessoas nossas conhecidas, ou inspiradas nelas. Involuntariamente é que sucede que uma figura fictícia se vá transformando numa figura real. Sucedeu-me com a Antónia de “A Morte de uma Senhora”, que foi gradualmente tomando atitudes e maneiras que eram de facto as de uma pessoa muito minha conhecida. Ao ponto de ter sido acusada de a ter copiado.
Em outro caso eu própria realizei que determinadas figuras fictícias se pareciam com pessoas reais. Nunca no seu aspecto físico, mas nas suas características morais ou intelectuais. Assim a monja dona Bernarda de Lima de “O Mosteiro e a Coroa” podia ter sido copiada da pessoa de uma prima da minha mãe. Não houve cópia, mas quem sabe se não foi o conhecimento que eu tinha dessa religiosa dos nossos dias que serviu de modelo á monja medieval. Uma como outra aliando a inteligência e a religiosidade a um orgulho de origens muito pouco religioso.
É verdade que me sucedeu “copiar” uma pessoa conhecida, mas raras vezes, e sempre com o cuidado de a tornar irreconhecível. Foram brincadeiras pessoais, e, confesso, um pouco maldosas. Que me divertiram e não fizeram mal a ninguém. Este ou aquele pensava que ninguém sabia que ele fizera isto ou aquilo, que ele era assim ou assado, pois eu sabia, tinha a omnipotência de “conhecer” o que estava por detrás da fachada e de o transpor para aquela figura. Não usei muitas vezes esse feio, mas divertido processo e foi sempre em figuras secundárias. De resto parece-me que as figuras imaginárias mais verdadeiras são aquelas que nos saiem espontaneamente, que de repente, porque a história precia delas, aparecem em cena vestidas e calçadas, com nome adequado e tudo. É gente com vida e, em geral, simpática.
Creio que todos os autores litererários, sejam grnades ou pequenos, têm entre as personagens que criaram as suas preferidas, das quais recordam os nomes e as maneiras. E creio também que todos nós que escrevemos ficção temos a consciência que isto de criar pessoas imaginadas que parecem verdadeiras, é um privilégio.
Olga, Ena, Beto, Lúcia Breça de Mirando, tio Flávio, dona Bernarda de Lima, dona Eufémia. Fui eu quem vos criei e gosto de todos.
Observações à marhgem

Há agora anexas ao Pão de Açúcar umas pequenas lojas nas quais se vendem produtos alimentares escolhidos, de qualidade. Chamam-se “gourmet”. Há dias fui a uma dessas lojas comprar paté de foie gras oara presente, A vendedora lembrou que ficava muito bem uma colhersinha de confit d’oignon com o foie gras. Depois lembrou-me que no ano passado eu comprara consomé em lata. Era verdade, agradeci a lembrança. Saí dali a pensar que, de momento que as livrarias se tinham transformado em supermercados, ou mercearias de livros – deixa ver a minha lista: 2 bestseller, um gordo e um meio gordo, 1 biografia de rei, rainha ou futebolista, magra, 1 embalagem pequena de poesia – que seria bom que ao lado dessas mercearias livrescas houvesse umas livrarias ‘gourmet’ com produtos literários escolhidos e de qualidade, e com vendedoras conhecedoras da matéria, e lembradas dos gostos dos seus clientes. Foi coisa que já existiu, acredite-se ou não.

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Escolher o tema

>> segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Nos tempos em que eu andava na escola, como antigamente se dizia, era corrente encontrar ao entrarmos na aula o titulo de um tema de composição na tábua negra. O nosso professor de alemão adorava essas surpresas. Não me lembra que alguma vez nos tenha dito para escrevermos o que nos apetecesse. Quando comecei a escrever “livros” e portanto o que me apetecesse, não havia quem me propusesse o tema, A coisa era comigo. Ora de momento que me deu para analiza esta curiosa coisa, que é em mim a escrita, examinei-me também sob esse aspecto: a escolha do tema.
Comecei por constatar que nunca escrevi porque me tivessem sugerido um tema, dado uma ideia engraçada, interessante para eu desenvolver. O impulso veio em geral de alguma coisa que me disseram, me contaram em conversa, não contudo de sugestão para aproveitar essa ideia e escrever a partir dela, Não desdenho a hipótese, simplesmente nunca me sucedeu ter essa opção.
Escrevi sempre um determinado livro por ter havido uma qualquer pequena razão, uma alavan ca própria.
A “Vida do Marquês de Sande”, porque era tanto o que sabia dele e da sua época, que me parecia que tinha a obrigação de o fazer saber a outros.
Os livros sobre os Painéis, porque descobrira um dado novo.
“Na Rota da Pimenta”, porque me fazia impressão que não houvesse sobre os primeiros anos dos portugueses na Índia um livro de fácil leitura, que não estudasse unicamente os grandes feitos, mas tratasse dos homens responsáveis por eles, sem os diminuir nem exaltar. Que focasse o elemento humano da questão.
Em ficção, “As Casas da Celeste” nasceu por ter visto numa aldeia perdida da Beira interior, a casa de uma pobre mulher que ali se rodeara de objectos de uma vida passada. Sobretudo de fotografias suas e só suas. “Um dia escreverei sobre esta casa”, disse então para mim, e escrevi.
A “Morte de uma Senhora”, porque com o 25 de Abril acabara um mundo que eu conhecera bem, e achei que o devia recordar para aqueles que não o tinham conhecido. Na altura não pensei que um dia poderia ser publicado, distribui cópias dactilografadas à família.
“Uma família diferente”, porque uma avó me contou que a neta lhe dissera, que o pai a levara para um parque de campismo onde ele tinha uma amiga. A avó perguntara se ela gostara, e a pequena respondera que não, porque o pai a punha fora da roulotte muito cedo e ainda fazia frio e não havia outros meninos com quem brincar.
“O Mosteiro e a Coroa”, nasceu porque quis aproveitar em obra de ficção, enquanto não o publicava em livro histórico, o que aprendera sobre a vida monástica feminina em Portugal na Idade Média
E, finalmente, este ultimo dos meus livros, porque a leitura de um blogue, me dar a ideia. Um bloguista argumentara que optara escrever um romance sobre certa descoberta histórica que julgava ter feito, e que escolhera a ficção para a revelar, já que em pequeno artigo ninguém decerto lhe prestaria atenção. Aproveitei a ideia para em romance histórico arejar certas ideias que tenho sobre o caso da condenação e morte do duque de Bragança no reinado de D. João II
Houve sempre qualquer coisa que me interessava, que me leuviu a escrever, já que de outra forma nunca poderia desenvolver a narrativa. E nunca, por um momento que fosse, pensando se era coisa que podia interessar a outros que a mim. Não se pode dizer que se tratasse da escolha de um tema. Os temas vieram ter comigo. Alguns aproveitei, outros ficarão sempre por aproveitar.

Pedido de informação:
Tenho um Mac OS X do quak me sirvo há anos. Agora, devido a problemas de visão, gostaria de ter um teclado com letras e sinais mais cobtrastantes. Fico muito grata se alguém me souber dizer se há algum teclado nessas condições que possa ligar ao meu Mac.

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E a escrita?

>> segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Tenho escrito sobre livros e leituras, vou escrever sobre escrita, e, porque não, vou começar peia minha própria escrita.
No livro “ A Fé do Escritor” de Joice Carol Oates, que li recentemente, a autora escreve sobre os problemas que o escritor enfrenta na produção da sua obra, e cheguei à conclusão que os problemas do “grande escritor” e os do “outro” não diferem grandement. Há contudo uma diferença que, essa sim, é significativa, que é a atitude critica do “grande autor”face à sua obra. As duvidas que o atormentam, podem levar o grande autor a querer destruir a sua obra por não a achar digna da sua escrita. Atrevo-me a dizer que desse sofrimento nos livramos nós “os outros”. Nós, os habitantes daquela grande, daquela gigantesca, camada de escritores, que escrevem razoavelmente bem, ou mal, mas com grande sucesso, ou simplesmente mal, nós, que não aspiramos a grandeza, não temos esse sofrimento. Mas em todos os outros problemas da escrita, não nos distinguimos muito dos grandes. Podemos portanto falar dos nossos problemas tão bem como eles. Que é o que me proponho fazer.
A ideia nasceu da pergunta que me fizeram há tempos, a saber o que a minha filha achara do tema do livro que eu acabara de publicar.
--Mas ela ainda não o leu, respondi.
--E não a consultou antes?
Tem graça, pensei, nunca tinha pensado nisso, que talvez fosse natural debater um livro antes de o começar ou emquanto o estamos escrevendo. A escrita é uma acção solitária, e, no meu caso, é uma acção secreta. Não falo sobre o que escrevo. Imagino o que vou escrever, penso no que estou escrevendo e no que acabei de escrever, mas faço-o para mim. Não me passa pela cabeça comentá-lo seja com quem for. Isto quando se trata de ficção, com livros de história a coisa é um pouco diferente.
Ao meu primeiro livro, uma biografia histórica de grande fôlego, talvez por se tratar de uma estreia, fui comentando a escrita com o meu marido e a minha mãe. Comentando. Só isso. Não para lhes pedir conselho ou opinião. Pedi conselhos sobre questões praticas de publicação etc, mas sobre escrita, sobre a melhor forma de pegar no caso, e tratava-se, repito, de uma estreia, e não de um trabalho simples, não me aconselhei. Só agora realizo que é curioso, e não o sei explicar. Talvez houvesse ali uma ponta de auto confiança, quem sabe se desconfiança quanto ao saber dos outros, talvez orgulho, querer tudo para mim, talvez falta de humildade. Não sei. Foi assim.
Quando me meti a preparar um livro sobre a vida monástica feminina em Portugal durante a Idade Média, comentava com o meu marido a documentação que ia estudando. Nem podia deixar de ser tão fascinantes eram as descobertas que ia fazendo, mas isso não queria dizer que pedisse conselho sobre a forma a dar ao livro.
No caso do meu primeiro livro sobre os Painéis de São Vicente de Fora, discuti os seus diferentes problemas com um amigo que partilhava as minhas ideias básicas sobre o assunto. Mas também nesse caso não se tratou de pedir conselhos. Tratou-se unicamente de esclarecer as ideias com alguém, que as podia seguir.
Com livros de ficção é que não concebo a possibilidade desse arejar de idieias.
Ficção é qualquer coisa, que ideamos para nós, unicamente para nós. Que vamos seguindo, que vamos construindo na nossa cabeça. É uma narrativa que para nós já existe, mas de que ainda ignoramos como se vai desenvolver e como vai terminar. Pode até não terminar, ficar pelo meio, esperar uns meses, uns anos. Como o poderíamos comentar, se ainda não o conhecemos? Não sei se isso se passa com todos os autores de ficção, sejam eles grandes ou pequenos. No meu caso é isso que se dá. Quando mandei à minha filha um exemplar do livro em questão, ela sabia que era um romance histótico e tinha uma vaga ideia da época em que se passava, o mais que conhecia dele, era o nome da autora.

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OUVIR LER.

>> segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Um problema de visão, ou antes de falta de visão,, obriga-me a escrever posts mais curtos que não exijam grandes correcções e grandes leituras. Não é mau porque os posts estavam a ser compridos demais.
Este problema teve uma consequência positiva. Descobri os livros lidos por outrem, Não sei como se chamam em português esses benditos CDs que nos dão o prazer de ouvir a leitura de um livro. Sabia que a coisa existia, mas nunca me interessara. Fiz mal. Agora que a necessidade a isso me obrigou, tenho pena de não me ter oferecido esse prazer há mais tempo. É extraordinariamente agradável ouvir um bom texto lido por uma boa voz. Comecei, tenativamente por um romance inglês que tenho em livro, e, em alemão, escolhi uma obra de história. O tema, a acção dos primeiros imperadores alemães no século IX não era fácil, mas a boa dicção do leitor e a clareza da sua voz, facilitaram a compreensão, talvez melhor do que o faria a leitura visual.
O romance inglês que li, ouvindo, foi “I, Claudius” de Robert Graves. Era uma releitura, de livro que a merece. Escrito na primeira pessoa é livro particularmente adequado a ser lido alto, e a voz do leitor, o actor xxxx, que interpretou Claudius na série da BBC fez desta audição uma óptima experiência.
Comecei a formar uma nova biblioteca: de discos lidos. Em alemão e em inglês a escorra é enorme. Os grandes clássicos nas respectivas línguas, os clássicos gregos e romanos, história, filosofia, livros de viagem. Do melhor que há em literatura, lido por vozes escolhidas. Não é preciso estar obrigado a ler com lupa para se apreciar este renascimento de um hábito ancestral, a leitura a voz alta. Leitura que se pode partilhar com um ou mais ouvintes leitores.
Ainda não apurei o que há em português nesta matéria. Espero que as editoras portuguesas não percam este comboio.

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Quando se arrumaram?

>> segunda-feira, 23 de novembro de 2009





Quando desapareceram?
Entre as questões que se têm colocado a respeito dos Painéis uma é se eles sempre estiveram em São Vicente de Fora, se era ao mosteiro que desde o princípio pertenciam ou se lá tinham sido arrumados mas vindos de outra casa religiosa.
Foi questão que não me pus, se estavam nas arrecadações do mosteiro era porque a ele pertenciam e sempre tinham pertencido.
Quando descobri que no mosteiro de São Vicente se veneravam SS Crispim e Crispiniano, e que conclui que os santos que se viam nos Painéis eram eles, qualquer duvida que ainda tivesse, acabou. De momento que todos os anos se realizava uma procissão em honra desses santos e que a procissão ia da Sé a São Vicente, era lógico concluir que haveria aí uma imagem dos Santos que se iam festejar. Os painéis eram pois inquestionavelmente do mosteiro.
A questão que se põem em seguida é quando e porque razão os retiraram do seu local e os arrumaram longe das vistas. Sem prova documental é pergunta para a qual nunca haverá resposta, mas podemos conjecturar. Os gostos mudam, era possível que o políptico chocasse por questões de ordem estética. Mas custa a acreditar que os cónegos de Santo Agostinho fossem tão sensíveis em matéria de arte. Pessoalmente, estou convencida que aquele desaparecimento se deveu a uma questão política, e quando há pouco, fiquei a saber que em 1481, no ano da sua ascensão ao trono, D. João II nomeara prior de São Vicente de Fora a um homem chamado Diogo Ortiz de Vilhegas, mais convencida fiquei.
Diego Ortiz de Vilhegas é uma das mais curiosas, se bem que uma das menos faladas e menos estudadass personagens dos reinados de D. João II e D. Manuel !.
Natural de Calzadilha em Castela, Diego Ortiz veio para Portugal no séquito de D. Joana de Castela, a jovem princesa que D.Afonso V escolhera para sua segunda mulher. Casamento de que não se sabe se foi ou não consumado, e que daria vastos problemas ao reino. D. Joana, era filha de Henrique de Castela e Leon e de D. Joana de Portugal, e seria a herdeira da coroa de Castela se não fosse a fama de não ser filha de D. Henrique, mas de um fidalgo castelhano de nome Beltran de la Cueva. Daí o seu injurioso sobrenome de ‘La Beltraneja. Em Portugal seria conhecida por ‘Excelente Senhora’.
D. Afonso V, tendo reconhecido em Diego Ortiz, acompanhante da sua noiva, um homem de grande saber, nomeou-o professor de latim e confessor de seu filho. Com os anos ele viria a ser muito mais do que isso, tornou-se o principal conselheiro do rei.
Além de latinista e teólogo, veio a ser bispo de Ceuta e bispo de Viseu, e foi autor do primeiro catecismo, Diego Ortiz era cosmógrafo. Nessa capacidade a sua influência foi enorme tanto no reinado de D. João II como no de D. Manuel. Foi em razão dos seus conselhos que D. João II rejeitou as propostas apresentadas por Cristóvão Colombo..
Homem de grande prudência, Diego Ortiz soube ser discreto. Manteve-se sempre na sombra dos dois monarcas a quem serviu, os quais, segundo reza a história, não eram senhores que gostassem de partilhar os louros.
Foi pois a esse homem que D. João II em 1481 nomeia prior de São Vicente de Fora. Cargo que exerceu só durante dois anos. A que se deveu aquela nomeação? As Ordens não gostavam que os reis lhes impusessem as suas escolhas. Estaria o mosteiro em mau estado e necessitado de reforma, e fora essa a razão daquela nomeação? É possível.
Não pretendo afirmar que a nomeação tivesse a ver com a existência dos Painéis. Mas qualquer um que os contemple percebe, que eles deviam incomodar o rei, que este não apreciaria ver-se retratado e à vista de todos, em companhia de Braganças, rodeado deles por todos os lados e isto na ocasião em que estava bem decidido a dar cabo deles. Não seria para fazer sumir os Painéis, que o rei nomeou Diego Ortiz para prior de São Vicente, mas o facto é que o seu nome me fez lembrar o que naqueles anos se estava passando. Pareceu-me impossível que uma coisa não tivesse influenciado a outra.
Recorde-se que aquilo que para nós é um quadro com sessenta caras desconhecidas, era para os contemporâneos um grande retrato onde figuravam pessoas a quem eles podiam por o nome.
Imaginemos que os Painéis continuavam à vista depois da morte do duque de Bragança, que poucos anos depois, um pai leva o seu filho em visita a São Crispim e seu irmão. Saberia explicar ao filho que aquele jovem senhor que ali estava era el-rei . João em novo, que o senhor de joelho em terra que se via na outra tábua, era o senhor duque de Bragança que el-rei mandara degolar. Impossível deixar aquilo à vista.
Não se pode afirmar que assim foi, mas tem toda a lógica que aquilo que conhecemos por “Os Painéis” tenha sido retirado à vista dos fiéis na ocasião - um pouco antes ou um pouco depois – da condenação do duque de Bragança.
Diego Ortiz de Vilhegas ainda não estava em Portugal quando o políptico foi pintado, é possível que o visse pela primeira cez quando entrou para São Vicente, mas se deve ter bastado um olhar para ele ele perceber que aquilo não se podia conservar ali à vista de todos, como naturalmente estava, e que tinha de ser afastado. Quer ele fosse indistriado e nomeado para agir nesse sentido, quer não o fosse e a sua nomeação não tivese nada ver com aquela obra, não é crível que alguém como Diego Ortiz não usasse da sua influência. como prior, e mesmo quando já não o era, para que os cónegos arrumassem o poliptico longe dos olhares do público. O elementer bom senso permite conclui-lo.
Foi o facto, aparentememente tão insignificante, que a tão poucos interessará, que foi a nomeação de Diego Ortiz de Vilhegas para prior de São Vicete de Fora em 1481, que me fez voltar ao caso dos Painéis. Termino finalmente este nova digressão.Aliás perfeitamente desnecessária., dado que o caso foi cuidadosemenre sstudado e que se chegou à concjusão inabalável que o senhor de chappéu é o infante D. Henrique, que os santos são S. Vicente e que o resto são figuras simbólicas.

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Os signos e os símbolos

>> segunda-feira, 16 de novembro de 2009




Quase todos os objectos que se vêem nos Painéis, têm sido considerados como tendo um sentido simbólico, a dúvida sendo qual fosse esse sentido. Belard da Fonseca era da opinião que toda a obra era marcada de “forte carga de simbolismo”. Eu penso que a carga simbólica era tão forte porque se atribuía sentido simbólico a tudo que não se sabia explicar, que se achava um pouco estranho. Via-se símbolismo até no colar de um cavaleiro, na fivela pendente do cinto de outro, e até nas cores de um saio. Em minha opinião nada daquilo era simbólico, assim como não o era o caixão no painel da câmara e o madeiro no painel dos monges.
O livro na mão de um homem, a caixa de madeira junto de outro, eram sinais ou da ocupação, ou do cargo daquele homem. Eram ilustrações, não eram símbolos. Não era um símbolo misterioso a cruz encarnada, quase invisível, no barrete do homem de barba negra. Era um sinal da sua ‘profissão’ de frade trinitário.
Os contemporâneos que contemplassem a pintura. não viam com certeza símbolos naquelas coisas. Sabiam muito bem que o caixão ao lado do homem vestido de burel no painel da câmara era a marca do seu triste cargo como coveiro dos defuntos pobres. Toda a gente sabia que os frades trinitários - que o em de barba negra era - usavam obrigatoriamente uma cruz nas suas vestes, mesmo quando eles, nas suas missões de resgate em terras inimigas, vestiam como os habitantes dos países que visitavam E ninguém ignorava que o madeiro ao lace de frei Pedro Nuno, que todos conheciam como pregador mor dos cativos, e grande valido de el-rei D. Afonso V, era a caixa de madeira em forma de tronco, era uma caixa de esmolas, onde os fiéis deitavam as moedas com as quais contribuíam para o resgate dos cativos pobres..
Dos cinco livros que se vêem nos Painéis, e nos quais também se tem querido ver sentido simbólico, dois são os livros dos santos, e os outros caracterizam os homens que os têm na mão como pessoa ligada a livros. Um deles, no topo do painel dos cavaleiros, é muito provavelmente o cronista Ruy de Pina. O livro na mão de um dos religiosos no painel dos monges também significava decerto que se tratava de alguém ligado a livros, talvez como cronista religioso. No caso do livro apresentado pelo homem de preto no painel da Câmara, aí o que obviamente conta não é o homem, é o livro. No meu primeiro livro sugeri que este livro pudesse ser uma obra impressa, a grande novidade em matéria de livros. Sabe-se que D. Afonso V adquiriu “livros de forma”, e não seria improvável que o quisesse mostrar ali. Uma sugestão, nada mais.
Os observadores contemporâneos da pintura também não achariam nada de estranho e de simbólico nos invólucros de pano preto dos livros dos santos. Era sabido que livros de prece, como aqueles sem duvida eram, se protegiam com capas de pano.*
O que talvez espantasse os observadores, era o santo com o livro debaixo do braço. Sempre me divertiu aquele sem-cerimónia em figura de devoção. Parece-me que estou a ouvir o jovem figurante, perguntando ao pintor, onde punha o livro se tinha que segurar a vara doirada e ainda apontar para o rei, e o pintor respondendo, --põe o livro debaixo do braço.
Verdadeira e indiscutivelmente simbólico naquele conjunto é o molho de cordas aos pés do santo no painel do Arcebispo. Esse molho de cordas. sim, é elemento simbólico. E da maior importância para definir o sentido daquela composição.
Todos os investigadores viram o molho de cordas como elemento fundamental e todos puxaram a brasa à sua sardinha, servindo-se daquelas cordas em apoio das suas respectivas teses. E praticamente todos viam nas cordas um símbolo de prisão do seu herói. Ignorando que era outro o símbolo de prisão. Para xxxx Saraiva aquelas cordas eram as cordas da prisão do infante D. Fernando, para Belard da Fonseca eram as cordas da prisão do infante D. Jaime, e para os vicentistas eram as cordas da prisão de São Vicente.
A todas as sugestões que se fizeram acerca do molho de cordas examinei com atenção, assim como o fizera com as outras atribuições de simbolismo. Agora, que julgo ter encontrado a solução, espanta-me o tempo que dediquei a examinar propostas que sabia serem impossíveis. Tratei a todas com a mesma atenção e respeito como se acreditasse nelas. Não fui correspondida da mesma maneira.
De todas as sugestões feitas acerca daquele molho de cordas, só uma me pareceu ter consistência. Foi a de Afonso de Dornelas, que via no molho de cordas um símbolo de desejo de união. Era uma ideia que tinha lógica, mas não me parecia explicação suficiente.
Não me lembro quando pela primeira vez pensei que aquilo podia ser um rebos. O que sei, é que logo que a ideia me veio, tive a certeza que era disso que se tratava. De um rebos ou talvez de uma empresa. Optei pelo rebos.
Um rebos é, como se sabe, uma adivinha, um jogo que consiste em exprimir uma ideia, um provérbio, por meio de letras, números, objectos desenhados, que, quando pronunciados, produzam o som das palavras ou do provérbio que está por adivinhar. Sendo assim, o que vemos é um molho de cordas ~ que significa união, força - com nós. Solução: A CORDA NOS UNIÃO
Pouco tempo depois da publicação do livro em que eu dava essa solução recebi uma carta do Porto de Helena Correia de Barros. Dizia-me que no Brasil se venerava muito a SS Crispim e Cruspiniano como protectores da união e que eram numerosas as orações que lhes eram dedicadas, pedindo a sua intercessão para esse efeito. Uma das orações era a seguinte:
“Confiante em vosso mérito suplico-vos São Crispim e São Crispiniano união, concórdia e confiança. Possamos nós viver unidos como vós sois unidos, concordes um com outro, confiantes como vós confiais”
E mais adiante “Tudo que for amarrado seja desamarrado, o que estiver cosido fique descosido, o que estiver ligado a meu favor, fique ligado, o que estiver ligado contra mim, fique desligado, pelo vosso poder, São Crispim e São Crispiniano, pelos vossos méritos, pela graça que Nosso Senhor vos deu..”
Penso que a oração confirma a solução que propuz para o problema do molho de cordas. E a oração também contibui para ezplicar os nós ou atilhos que se vêem no painel do arcebispo nos ombros do rei e no do homem de joelhos. No rei, o atilho é em fio de ouro, no cavaleiro em fino cordão preto. São emblemas que exprimem o mesmo espírito que o molho de cordas, e que se podem ler como a este.
Sempre considerei esses atilhos como sinais de participação em determinada função, que, neste caso. com a presença do arcebispo só pode ser religiosa, e que – tudo considerado – só podia ser a procissão de SS Crispim e Crispiniano. Os antos aos quais se pedia união e força.
O homem de joelhos, à esquerda nesse peinel, seria então muito provavelmente o mordomo** da procissão, que naquela ocasião cedia a sua posição ao rei. A vara que o santo apresenta ao rei, sempre considerada como vara de comando, significaria a vara de ‘comando da procissão. A vara era a vara de mordomo daquela procissão.

*A protecção de livros de missa com capas de pano foi hábito que se conservou e ainda persistia em meados do século XX
** Não sei se é exactamente essa a designação, nas aldeias é aquele que ainda hoje se usa. Eu pusera inicialmente a hipótese de o homem ser o condede Odemira. Com algumas duvidas, aliás. Gonçalo da Cunha disse no seu comentário que duvidava dessa minha identificação. Gostava de saber a sua opinião acerca desta.

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Painéis. Figuras Centrais

>> segunda-feira, 9 de novembro de 2009




Quando um acaso me empurrou para dentro da questão dos Painéis, o que verdadeiramente me interessava era a possibilidade da identificação das figuras.
Impossível ficar indiferente perante aquele espantoso retrato de sessenta pessoas, obviamente contemporâneas umas das outras, e obviamente retratados em vida. Que não me viessem com fantasias do infantes D,Pedro, morto em 1449, ali retratado no meio de pessoas vestidas à moda de 1470. E que não me falassem também dessa outra fantasia de piedosa saudade, querendo encaixar ali por força o infante D. Fernando, por ter sido muito bom e ter morrido em cativeiro. As mulheres são realistas, olhei para o retrato com realismo, deixando os saudosismos históricos aos meus predecessores. Também lhes deixava com gosto as suas teorias pré-concebidas, que se achavam na obrigação de defender. Não tinha teoria que pretendesse defender.
O que eu queria era poder dizer: o homem ou a mulher que está ali foi em vida este ou aquela. O que evidentemente só poderia dizer se tivesse chegado a essa conclusão pelo raciocínio lógico, tendo em conta as realidades históricas. Uma conclusão que me satisfizesse, que me permitisse dizer que aquele homem ou aquela mulher eram este ou esta, porque não podiam deixar de ser, porque tudo provava que o eram. Queria-o para mim, para minha própria satisfação. Na altura não pensava em livro sobre a matéria.
A presença de um homem da câmara de Lisboa e a veneração aos santos protectores de Lisboa, marcavam a obra como portuguesa e, em particular, lisboeta, O homem da câmara era importante, mas não era a figura mais importante daquele conjunto. A primeira pessoa era sem duvida o homem de joelho em terra olhando o santo, no painel do Bispo. Bispo, que só podia ser o arcebispo de Lisboa, Naquela posição, estando presente o arcebispo de Lisboa e um vereador da câmara da cidade, aquele homem só podia ser o rei. Ainda admiti contudo a possibilidade de se tratara de outra pessoa de grande posição. Talvez que se tratasse de um dos Grande do reino, que fosse um deles o mandatário daquela obra, e que ali se tivesse retratado com a família. Desisti de imediato da ideia. O homem de joelho em terra, olhando para o santo, era D. Afonso V, o rapaz a seu lado era seu filho e herdeiro, o príncipe D. João. o futuro D. João II. Pelas modas estava-se nos anos de 1469/70
Dei muitas voltas à questão. Não tinha duvida de que quem estava ali no primeiro lugar era o rei, era D. Afonso V, mas queria uma prova concreta. É que, de aquele homem ser ou não ser o rei, dependia a continuação das deduções. Acordei um dia a meio da noite em sobressalto. E se o homem tinha espada como os outros cavaleiros? Nesse caso não era o rei, porque a espada do rei era o condestável quem a levava. Levantei-me, fui verificar. Que alivio! O homem não tinha espada. Em sua frente estava o condestável, segurando com as duas mãos a espada do rei.
Belard da Fonseca escrevera que enquanto não se encontrasse a figura central não se podiam identificar correctamente as outras. Assim é. Só tendo a certeza de quem era a figura central, se podia proceder com outras identificações. Essa figura central estava encontrada, já se podiam fazer identificações.
D. Afonso teria forçosamente a seu lado a sua família mais chegada. Fiz uma lista dos membros da família real, tal como se compunha por volta de 1469, 70. O rei, seus filhos D. Joana e D. João, seu irmão D. Fernando, duque de Viseu, e o Filho mais velho deste, o pequeno D. João, a prima e cunhada do rei, D. Filipa, irmã de sua mulher. E, naturalmente, os primos do rei. O duque de Bragança e seus quatro filhos, D. Fernando, então conde e futuro duque de Guimarães, D. João, marquês de Montemor, D.Afonso, conde de Faro, e o mais novo, D. Álvaro.
Assim como a maioria dos painelistas, quer voluntariamente, por isso ser conveniente à sua teoria, quer por autêntica ignorância, não tomaram em conta os preceitos do culto religioso, assim desprezaram soberanamente os preceitos pelos quais se regia a sociedade medieval. Mas as regras hierárquicas e de precedência que então vigoravam têm de ser consideradas quando se aprecia uma obra medieval. Os Painéis são bem um produto dessa época mesmo que do seu fim, e quando eles se estudam há que ter em conta a mentalidade das pessoas que neles figuram. Aquelas pessoas, e não só as mais importantes, não foram colocadas nas posições que ocupam arbitrariamente ou obedecendo a opções de ordem estética. O seu estado e a sua posição dentro do seu estado determinavam a sua colocação. Determinavam como se sentavam em Cortes, determinavam quem seguia ou precedia quem em reunião familiar publico, como um baptizado, um casamento, E determinavam, naturalmente, a sua posição quando figuravam numa pintura de natureza ‘oficial’ como é o caso do politico.
Em matéria de ordem de precedência, os painelistas, ou ignoravam esse aspecto da questão, ou afirmavam tê-lo em conta, mas arquitectavam teorias fantasiosas sobre aquilo que julgavam saber.
A obrigatória presença do infante D. Henrique não facilitava as coisas. O Infante tinha de estar ali, e mesmo quando já toda a gente se convencera, que ele de facto não ali estava, mesmo então se continuou a deduzir como se ele lá estivesse. Assim, a maioria dos painelistas admitia que D. Afonso V tinha de ser uma das primeiras, se não a primeira figura do políptico, mas não agiam nesse sentido. Cegos com a figura do Infante, faziam deste a figura fulcral, sendo a partir dele que faziam as suas deduções. É evidente que estas só podiam ser erradas. Pasma-se perante afirmações de ordem histórica que visivelmente não foram aprofundadas. Assim, por exemplo, fazia-se passar o infante D. Henrique à frente do duque de Viseu, irmão de D. Afonso V. O que era errado. Como irmão do rei, o duque de Viseu passava à frente do infante D. Henrique.*
Outro erro, e um dos mais crassos, era o de querer ver a D.Isabel, duquesa de Borgonha, na senhora de traje semi religioso no painel dito do Infante. D. Isabel era uma fanática do correcto cumprimento de tudo que dizia respeito a cerimonial e ordem de precedência, e nunca aceitaria figurar numa pintura em posição secundária. A não ser que esta posição, por questões de precedência, fosse de facto a que lhe cabia. Um pequeno livro sobre os costumes da corte de Borgonha, escrito pela filha de uma dama portuguesa da duquesa, é elucidativo e peremptório a esse respeito.
Eu não lera ainda esse livro quando encarei a questão do posicionamento das figuras principais do politico, e ainda não encontrara o documento no qual D. Afonso V estipula a ordenação dos grandes do reino***, mas sabia que a colocação das figuras dos Painéis obedecera forçosamente a regras de hierarquia.
Não sei se o facto de haver dois santos facilitou, se complicou a vida a quem se encarregou de indicar ao pintor a ordem das colocações. Creio que a facilitaria. Poderem-se dar as posições adequadas a todos os figurantes sem ferir as susceptilidades daqueles senhores. O rei e seu filho no painel do Bispo, e frente a eles o irmão do rei, o duque de Viseu. Nas costas do Príncipe, o conde de Faro, terceiro filho do duque de Bragança. Frente ao rei, à esquerda do santo, o segundo filho do duque, D. João, marquês de Montemor, que exercia o cargo de condestável em caso de impedimento de seu irmão mais velho. O que ali sucedia, tendo o filho primogénito do duque de Bragança de ocupa com o pai a primeira posição no outro painel. De joelho em terra, olha o livro que outro santo lhe mostra, e onde se lê muito claramente “O Pai é maior do que eu...eu faço o que o pai me ordena”. O pai, o duque de Bragança, preferiu decerto não estar de joelho em terra, cedendo a honra ao filho. Não sem que isso fosse devidamente notado.
Nesse painel estão as duas senhoras da família, a princesa D. Joana, filha de D. Afonso V e sua prima e cunhada, a senhora D. Filipa, filha do infante D, Pedro.
Foram conclusões a que cheguei, tendo feito a análise individual de cada um dos casos. Justifiquei-os demoradamente no livro que depois publiquei, e ainda ninguém me provou que tivesse errado. Foi a partir da identificação daquelas figuras centrais que tentei identificar algumas das outras. Umas creio que são certas e até indiscutíveis, outras mais duvidosas.
Dentro do grupo da Camila real parece-me certa a identificação do homem de capacete como conde de Monsanto. E o Bispo é sem duvida o arcebispo D. Jorge de Costa. Ainda me parecem certas e correctamente justificadas as identificação de alguns dos homens do governo. O Dr. Ruy Gomes de Alvarenga, chanceler mor, os irmãos Afonso e Gonçalo Vaz de Catello Branco e outros
Considero indiscutível a identficação do homem de barba negra no painel dos frades como frade trinitário. A esse até o nome se consegue dar: frei Pedro Nuno, de sobrenome ‘de Córdova’, conhecido por Pregador mor dos cativos. Correcta também a identificação dos dois frades em baixo no mesmo painel como o abade mor de Alcobaça e o esmoler mor do reino. Justifiquei sempre as identificações que fiz, comparando-as naturalmente com as de outros autores.
Seria ir longe demais insistir nesse aspecto. Não estou a escrever terceiro livro sobre os Painéis. Quis só preparar o terreno para poder ser entendido quando escrevesse sobre um dado que recentemente encontrei e me parece curioso e significativo. Primeiro ainda tenho vontade de contar como interpretei o enigma da corda que se vê aos pés do santo no painel do rei. Foi mais adivinha que pesquisa, mas divertida e que me trouxe uma grande alegria: uma carta com uma informação, que provava que a solução que eu propusera estava certa. Uma muito agradável sensação.

* O infante D, Henrique jurava em Cortes depois de D. Fernando, e, em 1455 jura fidelidade ao recém nascido príncipe D. João, herdeiro do trono, nas mãos do irmão do rei. Em toda e qualquer cerimónia a ordem de precedência era essa: rei, príncipe herdeiro, irmão do rei, tio do rei.
**datado de 1473, quando das Cortes de Coimbra, no qual D. Afonso V delibera “acerca dos estados, assentamentos e precedimentos dos Duques e senhores Condes e pessoas dos seus Regnos” em História Genealógica da Casa Real de António Caetano de Sousa. Tomo V, livro VI de Provas.

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2º coloquio. A miniatura

>> segunda-feira, 2 de novembro de 2009





Pouco tempo depois do primeiro, o Museu de Arte Antiga organizou um segundo colóquio sobre o tema dos Painéis. Desta vez tratava-se de apresentar a descoberta feita pelo doutor Jorge Almeida da assinatura de Nuno Gonçalves.
O doutor Jorge Almeida surgira para o problema dos Painéis com a publicação do meu primeiro livro. Tendo conseguido obter o meu número de telefone, falou-me, convidando-me a almoçar com ele - em restaurante à minha escolha – para ele me expor o que era a opinião dele sobre os diferentes problemas. Agradeci o convite, mas não o conhecia, e quanto aos Painéis, escrevera o que tinha a dizer, e dava o assunto por terminado. Com notável persistência, o doutor Jorge insistiu com sucessivos telefonemas, desafios para debates públicos etc e um dia tentou entrar em minha casa, e tive de lhe fechar a porta na cara.
O que não conseguiu comigo, conseguiu com os média. Apareceram artigos ditados por ele, fomos informados de que o Dr. Jorge resolvera os problemas dos Painéis e até de que havia uma declaração subscrita por nomes importantes do nosso meio intelectual, como Augustina Bessa Luís, António Lobo Antunes, João Lobo Antunes, Marcelo Rebelo de Sousa, e outros, em que se lia que o Dr. Jorge tinha toda a razão e dizia muito bem. O Museu de Arte Antiga encantou-se com o Dr. Jorge, tinha um novo paladino da tese vicentina e gonçalvista. E um dia soube-se, que o museu organizava novo colóquio. Desta vez para que o Dr. Jorge Almeida pudesse fazer uma importante revelação: a descoberta da letra N de Nuno Gonçalves no sapato do rapazinho, no painel dito ‘do Infante’.
Obtinha-se essa visão virando a respectiva tábua de eerta maneira, creio que de pernas para o ar. Confesso que me deliciava a visão de director e conservadores do Museu de Arte Antiga, de cócoras, ou empoleirados em escadote, constatando sob a batuta do Dr. Jorge, a presença do N de Nuno Gonçalves no pé do rapazinho.
É sabido, que houve artistas medievais, que caprichavam na colocação de inscrições alusivas nos seus quadros. Mas não há memória de que a inscrição, uma vez encontrada, não seja legível olhando a pintura de frente. Ter de a virar de lado ou de pernas para o ar para descobrir o N de um pintor pareceu-me surrealista.
Sendo pouco provável que o museu permitisse, que me virassem a tábua em questão da forma adequada, contentei-me com o fazer em casa com a fotografia do sapato, e constatei aquilo que no Museu se devia ter visto antes de se adiantarem em colóquios.
Desta vez, talvez por se tratar de tão triunfal colóquio, eu fora convidada a assistir, e o director do Museu perguntou-me se eu queria dizer alguma coisa. Respondi que sim, o que ele, jovialmente comentou com estas palavras: “Desta vez, como vê, deixo-a falar” Agradeci e quando me chamaram, disse rapidamente o que tinha sido a minha investigação dos problemas dos Painéis e que, quanto ao tema do dia, estudara-o com muita atenção e tinha dizer o seguinte: a letra N compunha-se, como era sabido, de dois traços paralelos, ligadas por um traço diagonal vindo do topo da coluna da esquerda para o sopé da coluna da direita. O signo, que, segundo o Dr. Jorge Almeida, se conseguia ver no sapato do rapazinho, e que segundo ele, seria o N de Nuno Gonçalves, não era o N que nós conhecíamos, já que se compunja de dois traços, ligados por uma diagonal que ia do sopé da coluna da esquerda para o topo da coluna de direita. Era letra ou signo que não existia no alfabeto.
Não me lembro de ter recebido resposta, a sessão continuou com o programa agendado, uma comunicação que incluía a transmissão de fotografias agrandecidas dos Painéis. E como tudo aquilo era extraordinário, deu-se então o seguinte episódio. Na escuridão, agachando-se para não encobrir o ecrã, aproximou-se de mim uma figura da qual não consegui distinguir as feições. Vinha dos bancos do museu, e entregou-me um bilhete. Quando se fez luz, li o bilhete. Era acusada de ter plagiado uma determinada autora. Li alto o bilhete, acrescentando o que tinha a dizer sobre a acusação, e ainda que o bilhete, não assinada, viera dos bancos do Museu. Nessa altura levantou-se um rapaz, pediu a palavra, e declarou querer participar um curioso facto sucedido com ele. Ele tinha uma pequena revista de arte destinada a um publico juvenil. A revista sempre se vendera na loja do Museu. Mas o ultimo número fora rejeitado, com a explicação que na revista, ao falar dos Painéis, se usara as identificações de Teresa Castello Branco, o que era proibido. O livro dela também não se podia ali vender.
E assim terminou um segundo colóquio organizado pelo Museu de Arte Antiga em prol do estudo histórico-cientifico da sua peça mais valiosa, os painéis de São Vicente de Fora.
Passemos a tema mais interessante e mais limpo: o caso da ‘miniatura do Infante’.
O erro ‘do retrato do Infante’ é coisa muito diferente do “erro” da tese vicentina. No caso da miniatura houve de facto um erro, mas um erro muito compreensível. Interpretou-se erradamente um dado que, à primeira vista, parecia indiscutível.
Em 1837 descobrira-se em Paris um retrato do infante D. Henrique. A Europa vivia então a febre de querer saber. Também queria saber como era aquilo “lá fora”. Ia-se lá fora em simples viagem de turismo, ou em viagem de exploração. Um jovem francês chamado Ferdinand Denis, fora às terras do Brasil, ganhara interesse pelos descobrimentos e as explorações dos portugueses e, nesse contexto, consultara. no fundo de manuscritos da Biblioteca Nacional de Paris, aquilo que se relacionasse com Portugal. Deu com um manuscrito intitulado “Crónica do Descobrimento e Conquista da Guiné” de Gomes Eanes de Zurara. Falou do seu achado ao visconde da Carreira, então o ministro de Portugal em França, homem culto, que tratou de divulgar o achado. Interessava provar a primazia dos descobrimentos portugueses, e a crónica foi usada sobretudo nesse sentido. Daquilo que Zurara contava, pouco se falou. Do que se falou foi de uma miniatura que a obra continha. Uma miniatura representando um homem de grande chapéu preto e tendo em baixo a divisa do infante D. Henrique. Um retrato do Infante, portanto.
Quando em 1883 se descobriram em S.Vicente de Fora as tábuas onde se via um homem idêntico ao que se via na miniatura, ninguém duvidou que se tratava da mesma pessoa, que aquele homem era o Infante. O homem da miniatura era um pouco mais novo que o dos Painéis mas era sem duvida o mesmo homem. Só muito mais tarde se perceberia que esse homem não era o Infante.
Quando a duvida nasceu, já era tarde para fazer meia volta, nem interessava fazê-la. O Infante D. Henrique adquirira as feições do homem da miniatura e dos Painéis.
Em 1937, cem anos depois da sua descoberta, publicou-se finalmente a crónica de Zurara, e a descrição que Zurara nela dava da pessoa do Infante era a de um homem muito diferente do homem da miniatura. Descrevia-o assim: ”Este nobre príncipe havia a estatura do corpo em boa grandeza e foi homem de carnadura grossa e de longos e fortes membros, a cabeladura havia um tanto levantada, a cor de natureza branca, mas pela continuação do trabalho por tempos tornou-se de outra forma. Sua presença de primeiro sguardo aos ousados era temerosa”-
Mais tarde Dagoberto Markl notaria ainda a diferença que havia entre o homem de chapéu grande e a figura jacente do Infante D. Henrique no seu tumulo.
Os testemunhos dos túmulos são muitas vezes esquecidos como fonte documental. Talvez por se imaginar que os artistas que esculpiam os túmulos usavam da sua própria imaginação e fantasia para tudo, inclusive as figuras jacentes dos mortos. Ora com a morte não se brincava. O morto devia ser recordado o mais fidedignamente possível. O escultor seguia as instruções que lhe davam e procurava transmiti-las da melhor forma. Quando não podia reproduzir a figura exacta do homem ou da mulher que jaziam no tumulo, dava-lhes atributos que os caracterizassem, ou mesmo alguma indicação sobre a sua vida e morte. Os túmulos de D. Pedro e D. Inês, frente a frente, são tão expressivos do seu amor, como é expressiva da causa da sua morte a representação de uma criança sendo violada, que se vê em Odivelas em um dos pés do tumulo de uma pequena filha de D. Diniz. E ningém pode duvidar que D. Isabel de Portugal, mãe de Isabel a Católica, era uma ávida leitora, vendo-a de livro na mão imersa na leitura no seu tumulo na Cartuxa de Miraflores.
O Infante D. Henrique estava representado no seu tumulo tal como fora. E exactamente como Zurara o descrevera.
Estes dois testemunhos – texto de Zurara e tumulo - deviam ter sido suficientes, mas só a peritagem que se fez à miniatura é que convenceu e transformou duvida em certeza. O homem de chapéu grande não era o Infante.
O exame da miniatura revelara, que esta tinha um vinco, ou seja, que, em tempos, fora dobrada e que não fizera sempre parte do manuscrito com o texto de Zurara. Provou-se também que a divisa fora pintada em cima do vinco, era portanto posterior ao original, e mais, que a sua ortografia não correspondia à da divisa do Infante. Uma pequena, mas significativa diferença. O Infante escrevia “Talant de bien fere”, e na divisa da miniatura lia-se “talant de bien faire”- Além disso, era sabido que a verdura que o Infante tinha na sua empresa era de carrasqueira, enquanto aquela que se via na miniatura era de folhas e bolotas de azinheiro e sobreiro.
Destas e ainda ousaras anomalias e o que elas significam sabe-se há mais de cinquenta anos, mas mesmo depois de os factos se saberem, os investigadores continuaram a fazer identificações a partir da figura do homem de chapéu preto como se do Infante se tratasse.
Ora que o Infante tenha tido a pele clara e cabelo loiro e fosse forte e de ombros largos, ou de ombros estreitos e cabelo liso e preto, não tem grande importância, nem hoje se pode e pretende mudar. Mas deve ser permitido àqueles que querem saber “como as coisas na verdade eram” (Ranke), que a essas seja permitido fazer as suas investigações a partir do facto de no homem de preto se tratar de outro homem do que o Infante.
O Dr. Fernando Baptista Pereira declarou no primeiro colóquio que a investigação iconográfica não tinha grande importância, que aquilo de qualquer modo era tudo simbólico. Opinião sua. Em minha opinião rata-se de um grande retrato de pessoas históricas e contemporâneas umas das outras.. Pessoas às quais naturalmente gostaríamos de dar os seus nomes. Nomes autênticos, racionalmente encontrados, não fantasias. Foi isso que tentei fazer e que, até certo ponto, penso ter conseguido. De como procedi, e de que raciocínios usei, procurarei dar conta no próximo post.

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Um coloquio

>> segunda-feira, 26 de outubro de 2009





Depois da publicação do meu primeiro livro sobre os Painéis, o Museu de Arte Antiga realizou dois colóquios sobre Nuno Gonçalves. O primeira, o mais importante, com o título de "Nuno Gonçalves. Novos Documentos. Novas Perspectivas", foi de 2 a 4 de Dezembro de 1993. O tema do segundo dia do colóquio (ao primeiro não pude assistir) era sobre as fotografias obtidas através do exame refletográfico feito aos Painéis, e o título estava correcto, porque se tratava sem dúvida de uma nova e interessantíssima documentação. Achei emocionante poder viver, através desses documentos, a preparação do pintor para a feitura da sua grande obra. Esse aspecto do colóquio satisfez-me plenamente.
A segunda parte do colóquio, e seu ultimo dia, era intitulada de "Nuno Gonçalves. Novas Perspectivas", e constava de sete comunicações-Trés delas não tinham nada a ver com o problema vicentino. Uma delas, de Jpaquim Caetano era sobre o estatuto social do pintor no século XV, as duas outras de Ignace Vandervivere e da Drª Dalila Rodrigues eram comunicações de profissionais sobre os respectivos temas. No caso das restantes comunicações saltava à vista, que se tratava na realidade de um colóquio ‘vicentista’. As conferências seriam sobre: "Painéis da Capela-mor da Sé", "Problemática do Altar de S. Vicente" e "Políptico da Veneração de S. Vicente".
Era óbvio que se tratatva de anular a revelação por mim feita de que os santos protectores da cidade eram SS Crispim e Crispiniano, irmãos e gémeos. O facto não fora por mim inventado, eu revelara somente documentos existentes e mostrara acreditar neles. Os documentos não se podiam declarar errados. No colóquio optou-se por ignorá-los e aos dois santos. Por silenciar documentos autênticos e santos autênticos, procurando de todas as maneiras reforçar a convicção que os santos dos Painéis eram S. Vicente. Analisei este caso num segundo livro*, aqui só posso dar uma ideia do que foi o colóquio.
Eu tinha a certeza que, directa ou indirectamente, seria visada. Era até normal que o fosse, que se citassem afirmações minhas para lhes opor a versão do orador. Não sucedeu, o meu livro e a minha pessoa, tal como os santos gémeos, não existiam. Para o que desse e viesse, eu parti para aquela sessão devidamente preparada. Tomei um calmante, ouvi as recomendações filiais de não falar, ou, como se diria no português oficial de hoje, “no sentido” de não abrir a boca. Para maior segurança ia acompanhada de uma sobrinha, com instruções de me amordaçar, caso necessário. E tudo funcionou na perfeição, até pouco antes do fim da sessão, quando esqueci filha, sobrinha, e um bom par de anos de boa educação e me levantei, declarando no meio do silêncio, que não aguentava continuar a ouvir um colóquio sem nível e indigno daquele museu.
Não o devia ter feito, fiz mal, recebi sem protestos repreensões e criticas. Mas querem saber uma coisa? Não me arrependi então, e ainda hoje não me arrependo. Não terá sido bonito, mas a verdade era essa: aquilo que ali se ouvira não tinha nível e era indigno de um primeiro museu.
O Museu de Arte Antiga é o primeiro museu do pais. Quando o primeiro museu de um pais organiza uma série de conferências sobre uma das suas peças, o publico espera, e tem todo o direito de esperar, que aquilo que irá ouvir será de qualidade, até de grande qualidade, e, sobretudo, de grande seriedade. E isso, muito simplesmente, não foi o caso.
A primeira comunicação foi do Dr. Carlos Alberto Ferreira de Almeida, que nos foi apresentado como especialista em iconografia religiosa, e o tema era “Problemas iconográficos dos Painéis de Nuno Gonçalves”. O Dr Ferreira de Almeida declarou de imediato não ter duvidas que os dois santos eram São Vicente, e lamentou que houvesse gente teimosa, que pretendesse negá-lo. Quanto a ele, não havia duvida nenhuma. Nos Painéis havia muitos atributos, que eram atribuíveis a São Vicente, mas o santo nem precisava deles, porque vinha do céu atendendo a um voto, pelo que “não tinha que carregar com os seus atributos”.
Eu sabia que nenhum perito, por mais eminente que fosse, provaria que aqueles santos de cabeça tapada e cabelo comprido eram São Vicentes, mas não esperava ouvir da parte de um perito um argumento daquela ordem. Nem que esse especialista declarasse, que o objecto que o santo tem debaixo do braço era um “barrete litúrgico”, e que, depois do intervalo, ele subisse ao palco para dizer, que tinha estado a pensar, e que o barrete afinal não era um barrete. Não explicando o que fazia do raciocínio que fizera a partir da coisa preta ser um barrete. O que importava era ligar a São Vicente tudo que se podia ligar, ou se julgava a ele poder ligar. E assim ainda ouvimos, entre outras coisas, que o homem de barbas negras, que está no canto superior do painel dito ‘dos monges’ era o cruzado alemão Henrique de Bona, porque esse cruzado estava enterrado em São Vicente de Fora, que era da ordem a que pertencera São Vicente. Ainda se ouviria falar de várias maneiras dessa figura, que. em minha experiência, provou ser a figura mais fácil de identificar entre as figuras secundárias.
A segunda comunicação deste ciclo devia tratar da capela mor da Sé, onde fora visto o retábulo de São Vicente. Havia que provar que o dito retábulo era aquele que conheciamos como “Os Painéis”. Ingrata missão, de que se encarregaram o Dr. Rafael Moreira e Pedro Cid. Este último não entrou no problema, coube-lhe mostrar como teria sido, e em que local se situava a capela mor da Sé. O Dr. Rafael Moreira é que se encarregou da parte mais complexa do caso, ou seja, como conjugar o testemunho de D. Rodrigo da Cunha e o texto do documento conhecido por “documenro Motta Alves”.
No seu livro “História Exlesiástica da Igeja de Lisboa”, publicado em 1643, D. Rodrigo, futuro Arcebispo de Lisboa, descrevera em detalhe o retábulo de S. Vicente e não descrevera nada que se parecesse com os Paineis. Segundo a sua descrição o retábulo constava de quadros mostrando os milagres de S. Vicente e nem o mais ardente ‘vicentista’ conseguia ver nos Paineis alguma coisa que se parecesse com um milagre, fosse de que santo fosse.
Sudedera no entanto que aparecera um documento no qual se lia que, a dada altura, os dois painéis centrais do políptico de S. Vicente de Fora tnham sido vistos na capela mor. O documento em questão, descoberto no Brasil na biblioteca nacional do Rio de Janeiro por Artur Motta Alves, não mentia. Em dada altura alguém, cujo nome se ignora, descrevera em carta a um amigo as igrejas de Lisboa e, a propósito da Sé, dizia-lhe, que vira lá um dia umas tábuas com uns homens vestidos de modo estranho. Pela descrição, eram sem duvida os cavaleiros das tábuas centrais dos Painéis. O autor da carta lembrava-se de ter visto as tábuas, mas por pouco tempo, ao escrever a carta elas já não estavam onde os vira. Que fora “junto do tumulo de S. Vicente”.
Dagoberto Markl, o primeiro a aproveitar o documento, concluíu que as ditas tábuas tinham feito parte do retábulo de São Vicente, que por alguma razão, provavelmente por uma obra, tinham sido retiradas do retábulo e depois repostos nele. O que não explicava evidentemente que, anos depois, D. Rodrigo da Cunha não as tivesse visto nesse retábulo e descrito.
São problemas desta natureza que apaixonam o investigador, e no que me diz respeito, foi com verdadeiro entusiasmoque o abordei. E com isso iria complicar ainda mais a tarefa do dr. Rafael Moreira. Eu estudara a fundo todos os documentos que tocavam aquele assunto, e não eram poucos, e dera deles uma leitura lógica, e, assim me convenci, muito elucidativa. Acompanhara o texto com um importantºissimo elemento novo. o “Selo grande” da cidade de Lisboa, do século XIV, que mostrava justamente o interior da capela.
O problema não fora afinal tão difícil de resolver como eu pensara. D. Rodrigo da Cunha explicara perfeitamente, não só como era o retábulo, mas onde este se encontrava. O retábulo fazia parte de um conjunto de elementos dedicados a São Vicente. Conjunto esse que se situava na capela mor, no lado da epístola, num espaço onde havia um largo degrau. O retábulo desse santo, não era, como Dagoberto Markl supunha, retábulo do altar mor. Os altares mor de todas as Sés do reino eram, como escrevera D. Rodrigo da Cunha, dedicados à “Virgem,senhora nossa e sua gloruisa ascenção”.
Havia portanto na capela mor, num degrau desta, um altar de São Vicente encimado de um retábulo com os seus milagres. Mas nesse espaço havia outro monumento vicentino, era um ‘túmulo’ de S. Vicente. Nesses túmulos simulava-se a presença dos restos mortais do santo da devoção de uma igreja ou capela.
No Selo Grande da cidade, que eu revelei, vê-se este tumulo, um sarcófago de pedra sobre estreitas colunas. E foi junto a esse túmulo que o anónimo autor da carta viu as duas tábuas dos painéis. Porque razão ai estavam provavelmente nunca se virá a saber.
Tudo isto, e em muito maior detalhe, eu expusera no capítulo dedicado a esse problema. O Dr, Radael Moreira ignorou o meu livro, mas era difícil ignorar as suas conclusões. E não ignorou o selo. Este foi apresentado, se bem que sem se mencionar quem primeiro o trouxera para aquele problema. O que, em comunicações que se pretendiam histórico.ciêntificas, se costuma fazer.
O Dr. Rafael Moreira explicou então o que se passara com os painéis na Sé. Esqueceu o que escrvera aquele que vira a coisa – que as tábuas estavam junto do túmulo - e decidiu a coisa à sua maneira, Em sua opinião, elas estavam era por baixo do retábolo, e assim se explicava que D. Rodrigo da Cunha não os tivesse mencionado. O que também explicava, segundo ele, que nos Painéis não se vissem os milagres de São Vicente. Estes, sim, estavam representados no retábulo, enquanto nos Painéis, que estavam aos pés deste, estava o “agradecimento pelos milagres que se esperavam de S.Vicente”.
A quarta conferencia foi do Dr. Fernando António Baptista Pereira e devia tratar de uma “Nova contribuição para o problema do altar de São Vicente”. Mas antes de entrar no assunto, o conferencista declarou severamente, que era preciso “traçar uma clara linha divisória entre os esforços sérios de critica histórica da pintura e a quantidade de produtos literários que periodicamente surgiam com louváveis esforços, mas não se lhes reconhecendo consistência.
Como nos últimos tempos não houvera outro esforço dessa natureza que não fosse o meu, era claramente eu a visada. E ainda não tinha ouvido nada.
Quanto a D. Rodrigo da Cunha e seu testemunho, era evidente que ele se enganara ao dizer que o retábulo mostrava passos da vida e milagres de São Vicente. O que D. Rodrigo com certeza quisera dizer, era que estavam no retábulo quadros com o agradecimento pelos milagres do santo. D. Rodrigo da Cunha não se esquecera de mencionar o políptico, ele enganara-se na sua descrição.
Parece-me que foi depois de proferir estas considerações, que o Dr. Fernando Baptista Pereira se dirigiu à audiência com uma exortação que julgo inédita. Sugeriu-nos ele, que entrassemos com ele em um ‘gentlemen’s agreement’, de que, de ali em diante, não se aceitariam mais identificações iconográficas, porque nesse campo nada de novo se podia cientificamente concluir. Ele próprio não se coibindo de logo a seguir as fazer.
O conferencista seguinte foi d Dagoberto Markl, que nos foi apresentado pelo Dr. Fernando Baptista como o maior especialista dos problemas dos Painéis, e que entre eles era apelidado de “iconoclasta”
Dagoberto Markl abriu consequentemente a sua comunicação com estas palavras: “Eu sou o iconoclasta”. Tal como o seu antecessor, exprimiu a sua indignação com a “pertinácia” daqueles amadores, ignorantes de história, que persistiam em negar a tese de José de Figueiredo.
A visada era de novo eu, e logo ali me devia ter levantado e saído. Fiquei e assim tive ocasião de ficar a saber que Dagoberto Markl, que até ali arrumara todas as tábuas dos Painéis no retábolo de São Vicente, agora, não sendo possível ignorar de todo o que dissera o documento Motta Amaral e o esquecido D. Rodrigo, que agora, ele opinava, que as tábuas dos Painéis estavam por baixo do retábulo, na sua parte inferior. D. Rodrigo da Cunha esquecera-se de falar nelas. E Dagoberto Markl, por sua vez, esquecera que as duas tábuas centrais dos Painéis, e só elas, tinham sido vistas junto do túmulo d São Vicente. Provavelmente encostadas a este. Mas o túmulo fora documentado por uma ‘ignorante de história’, o melhor era esquecê-lo.
Houve ainda a comunicação do Dr. Alberto Seabra de Carvalho, que pretendeu demonstras que o madeiro que se vê junto do homem de barbas no painel dos monges era a tábua com pregos sobre a qual São Vicente fora forçado a andar. Não havia duvida, achava ele. E mais disse, mas parece-me que já se disse o bastante e de mais sobre este colóquio.
Na altura cada um dos assistentes terá feito o seu juízo sobre o que ali se disse, e como se disse,. Por minha parte, o que me incomodou foi ouvir homens que se consideravam histórica e cientificamente formados, proferindo afirmações que não motivavan, e que não resistiriam a um exame sério. Convictos da autenticidade da sua tese, acham decerto que tudo vale para a defender. O que na verdade lhes é mais fácil do que seria a outros, porque estão munidos de uma poderosa arma: a sua ignorância e ingenuidade em matéria religiosa. A igreja católica tem ‘história’, e nessa história cabem as suas regras e os seus costumes. E estes não se podem ignorar quando se estuda um problema que tenha aspectos que toque, à Igreja. Não é preciso ser católico e crente para tratar de temas ligados à Igreja, mas é preciso conhecer ‘cientificamente’ os seus preceitos.
Eu não esperara “novas perspectivas” sobre Nuno Gonçalves, mas não esperava o que nos foi dado ouvir. Ainda hoje, quando releio o que foi dito naquele colóquio, e que felizmente fixei textualmente, ainda hoje me pergunto como foi possível que ali se dissesse o que se disse.
*Painéis de S. Vicente de Fora. Adivinhação ou Investgação?
Livraria Bizantina

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A grande precipitaçao

>> segunda-feira, 19 de outubro de 2009





Na introdução a um livro sobre erros cometidos em diversos ramos da ciência*, o autor escreve que grande parte desses erros tinham sido originados pela ânsia de “esclarecimento e reconhecimento” dos respectivos investigadores ou cientistas. Ânsia que os levara a afastar demasiado depressa as duvidas e a pôr de parte qualquer ideia de um possível engano.
Alguns desses enganos tinham sido desastrosos, escreve o autor, outros, menos nefastos, prejudicariam contudo a investigação, levando-a por caminhos errados, que acabariam fatalmente em becos sem saída. Com muito esforço desperdiçado e muito tempo perdido.
Parece-me que se pode dizer o mesmo mesmo no caso dos Painéis encontradas um dia nas arrecadações do mosteiro de São Vicente de Fora. Na ânsia de “esclarecimento e reconhecimento”, de serem eles os primeiros a desvendar o enigma daqueles homens reunidos em torno de dois santos, os investigadores precipitaram-se a proclamar conclusões e teses.
Não se pode levar a mal que o tenham feito, nem nos espantar que se tenham enganado, o que talvez se possa criticar é o facto de, mesmo depois de algumas das teses terem provado erradas, e reconhecido como tais, de, mesmo assim, se tivessem mantido e defendido.
As três teses em questão são - como já se disse - que o homem de chapéu preto é o Infante D. Henrique; que os santos são São Vicente em duplicado, e que o pintor é Nuno Gonçalves.
A tese do retrato ser o Infante, foi a primeira em linha, mas creio ser mais esclarecedor quanto aos métodos de investigação que se praticaram, começar com as duas ultimas teses. Elas estão aliás intimamente ligadas, uma condicionando a outra. Foi a tese de os santos serem São Vicente – a tese dita “vicentina” - que levou à tese “Nuno Gonçalves”. Uma depende da outra.
Uma das coisas que desde o inicio intrigou os investigadores foram as figuras, nimbadas que são o centro devoto daquelas tábuas. Não se conhecia santo que se figurasse daquela forma. Consultou-se então alguma das grandes enciclopédias católicas? Pesquisou-se talvez o arquivo da câmara, já que se via nos Painéis um homem a segurar uma relíquia que se podia ligar ã câmara e, eventualmente, aos dois santos? Nada disso. Adivinhou-se.
Surgiram as mais surpreendentes propostas. De se tratar de Santo Eduardo, rei de Inglaterra, sugeriu Joaquim de Vasconcelos, de São Vicente, afirmava José de Figueiredo, de Santa Catarina, propunha Alfredo Leal, de D. Isabel, mulher de D. Afonso V, como rainha fada, lembrou Armando Lassancy, do cardeal D. Jaime, filho do infante D. Pedro, propôs Belard da Fonseca, enquanto José Saraiva apostava no infante D. Fernando, o “Infante Santo”, e de Conceição Silva ver nas duas figuras limbadas um “Arauto do Espírito Santo”.
Até que as opiniões se concentraram em São Vicente. O pronunciamento originou em José de Figueiredo, então director do Museu Nacional de Arte Antiga, e levou à tese, dita “vicentina”, ou seja que os santos eram São Vicente. Não havia, dizia José de Figueiredo, outros santos na história de Portugal que pudessem reunir em torno de si figuras de primeiro plano e de populares. O que se explicava, dizia ele, por São Vicente ter sido obreiro da conquista da cidade de Lisboa aos mouros. Este santo era tão venerado que tinha altar próprio na Sé de Lisboa.
Para que houvesse na Sé um altar de São Vicente, era porque este santo gosava da especial devoção da cidade. Os santos que se viam no políptico eram claramente santos que reuniam em torno deles toda a cidade. O políptico era pois com certeza aquele que estivera na Sé, no altar de São Vicente.
O pintor que pintara os quadros que ornavam esse altar fora um homem chamado Nuno Gonçalves. Homem de grande qualidade, de quem Francisco de Holanda no seu “Da Pintura Antiga” (publicado em Lisboa em 1548) escrevera que pintara à maneira dos grandes pintores italianos.
O poliptico encontrado em São Vicente de Fora era forçosamente aquele que estivera na Sé, e era portanto da autoria de Nuno Gonçalves.
Nada disto foi linear. Houve opiniões pró e contra. Havia sempre aquelas vozes discordantes, lembrando que São Vicente não se figurava daquela maneira, houve quem fizesse notar, que Francisco da Holanda escrevera expressamente que Nuno Gonçalves pintara os quadros do altar de São Vicente à moda italiana, e que as tábuas de São Vicente de Fora não eram decerto à maneira da nova escola italiana. . Nada a fazer. A tese “vicentina”, e a consequente tese “Nuno Gonçalves” impuseram-se, mantiveram-se e, por experiência própria, constatei que são acerrimamente defendidas.
Ao revelar o documento da câmara, que provava a existência de santos gémeos da devoção da cidade, eu tocara - de forma perfeitamente inocente, diga-se - na tese vicentina e gonçalvista. A revelação fora acolhida em silêncio, e não fizera grandes estragos. Quem é que ligava ao artigo de uma quase desconhecida? A coisa só incomodou quando publiquei um livro sobre o caso dos Painéis.
Nesse livro eu analisava, um por um, todos os problemas dos Painéis, abordando também, como era natural, e não podia deixar de ser, o problema do eventual pintor. Não apresentava tese, escrevi simplesmente as conclusões às quais chegara, analisando o caso com lógica, e não deixando de ter em conta as opiniões que haviam sido formuladas por outros.
Mas não escondera a existência de São Crispim e São Crispiniano, e com essa revelação, ruíam, para quem quisesse refletir, as teses vicentina e gonçalvista.
Não era a primeira vez que uma investigação posterior, demonstrava que houvera erro na tese precedente. Mas não foi assim que a coisa foi entendida. O museu de Arte Antiga decidiu ir em defesa de Nuno Gonçalves. Organizou uma conferencia, ou colóquio, e deu ao evento o título de “Nuno Gonçalves. Novos Documentos”.
Nunca cheguei a perceber, se a ideia nasceu da própria direcção do museu, e foi ela que tratou da organização do colóquio, ou se a coisa foi sugerida à direcção por um grupo de partidários das teses vicentina e gonçalvista e aceite pela direcção. Fosse como fosse, o colóquio realizou-se e raras vezes se terá assistido a mais triste demonstração de amadorismo em investigação.
Descreverei proximamente esse colóquio, porque julgo importante que se reflicta sobre que bases ainda hoje assenta a investigação oficial do caso dos Painéis.
Por hoje uma ultima reflexão. Ums reflexão sobre se importa verdadeiramente
o facto do pintor dos Painéis ser ou não ser Nuno Gonçalves. Se vem algum mal ao mundo de se manter uma identificação possivelmente errada? O homem é internacionalmente reconhecido, é o maior pintor português, para quê tocar nele? Que interessa isso para o caso dos Painéis? Deixem lá ficar o homem.
Descansem. Não se tocará em Nuno Gonçalves, ele continuará - em companhia dos dois São Vicentes – a ser ensinado em escolas e faculdades.
Àqueles, que têm a incómoda paixão da verdade em matéria de história, a quem a investigação lógica e os seus resultados interessam mais de que uma batota artificialmente mantida, a esses, o engano defendido incomoda evidentemente.
Até porque este engano, como todos os enganos desta sorte, têm as suas consequências. Uma delas afecta a apreciação visual dos Painéis.
Havia na época vários tipos de pintores, (não contando os miniaturistas, que não interessam para o nosso caso). Eram considerados oficiais mecânicos e trabalhavam ou para os reis, os nobres, o alto clero, ou para as cidades. Os primeiros pintavam os retratos dos seus patrões e aquilo que a estes interessava: imagens para as suas capelas, as suas igrejas, os mosteiros de que eram patronos ou devotos. Os pintores das câmaras, esses, ocupavam-se sobretudo em obra decorativa. Pintavam bandeiras, estandartes, flâmulas, e eram encarregados de “enfeitar” a cidade quando a cidade fstejava, ou comemorava, algum grande acontecimento: a entrada de um embaixador, um casamento real. Os pintores deviam ‘ilustrar’ visivelmente o acontecimento. Quando do casamento da infanta D. Leonor com o imperador da Alemanha, o embaixador que já citámos, escreve que se viam pela cidade várias composições artísticas, aluscasamento real. Ele vira entre outras, em determinado largo, a representação da eleição dos imperadores alemães pelos sete “príncipes eleitores”. Tratava-se evidentemente de obra executada pelo pintor da cidade.
Em 1470, quando se presume terem sido pintados os Painéis, havia dois pintores a trabalhar em Lisboa, um era o pintor do rei, chamava-se Nuno Gonçalves, outro, era o pintor da câmara, chamava-se João Enne. O pintor do rei pintara recentemente os quadros do altar de São Vicente na Sé e estava pintando outros para a capela do Paço de Sintra. Pinturas à moda italiana, como se sabe. Decerto muito diferentes do género de pintura que produziria o pintor da cidade, habituado a quadros decorativos de grandes dimensões. É um dos aspectos da questão dos Painéis que nunca foi tido em consideração, devido à fixação em Nuno Gonçalves.
Outra consequência dessa fixação é o que se dá com as tapeçarias de Arzila, ou de Pastrana, como também são conhecidas, segundo a pequena cidade espanhola onde hoje se encontram.
Se aceitamos que foi Nuno Gonçalves quem pintou os Painéis de São Vicente de Fora, isso obriga-nos a esquecer as tapeçarias de Arzila.
Por uma muito simples razão. Aquelas extraordinárias tapeçarias foram sem duvida alguma tecidas segundo desenho e pintura do homem que pintou os Painéis nossos conhecidos. Ora, ainda é minimamente aceitável, que um pintor, gabado por pintar segundo a escola italiana, tenha pintado os Painéis. Mas o que ninguém em seu pleno e perfeito juízo poderá aceitar é que as tapeçarias de Arzila sejam obra de pintor da escola italiana. Se Nuno Gonçalves pintava à moda italiana, não desenhou, pintou e ideou as telas para as tapeçarias de Arzila. E não pode ter pintado os Painéis, porque esses são indubitavelmente do autor das tapeçarias.
E assim. uma obra d’arte originada em Portugal, tratando de tema português, obra tão grande, ou maior, que os Painéis, é praticamente ignorada. Não vá alguém questionar o que não se deve questionar.

*Heinrich Zinkl Der grosae Irrtum

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O homem de encarnado

>> segunda-feira, 12 de outubro de 2009




“Et omnes erant uno coloro escarlato rubeo ornamentatissimi vestiti” escrevia Nikolas Lankmann von Falkenstein.
Eu ia caindo da cadeira quando li a frase.
Falkenstein, o embaixador de Frederico III de Habsburgo, imperador da Alemanha, que em 1453 veio a Portugal buscar a infanta D. Leonor, irmã de D. Afonso V, noiva e futura mulher do Imperador, descreveu no seu diário as festas que houve então em Lisboa em honra do acontecimento. Uma dessas festas foi organizada pela câmara da cidade. A Câmara apareceu em grande e luzido cortejo, e todos os seus homens - assim escreve o embaixador - vestiam uniformemente de uma cor só, de “escarlato rubeo”. De vermelho, portanto. E só de vermelho.
Naquela altura eu não estava particularmente interessada no problema dos Painéis de São Vicente de Fora, mas sabia o bastante sobre o caso para considerar aquela informação de enorme importância. Ela interessaria decerto os peritos que se ocupavam do assunto, e tinha portanto de ser publicada.
É que, com a descrição do embaixador, se podia finalmente identificar, de forma “documental”, a figura de encarnado que se via nos Painéis com aquilo que se pensava poder ser -- e decerto era – a relíquia de Sto António, que a Câmara de Lisboa tinha à sua guarda.
Escrevi portanto um artigo dando conta desse achado. Que aliás já podia ter sido feito, dado o diário do embaixador estar publicado (em latim) na História Genealógica da Casa Real de António Caetano de Sousa, e ter sido traduzido para português e publicado por Luciano Cordeiro.
O meu artigo apareceu no Diário de Notícias em 1983 na sua boa secção cultural, dirigida então por António Valdemar.
A identificação não foi contestada nem na altura, nem mais tarde, nem o podia ser. Mas foi recebida em silêncio. Note-se, que se tratava da identificação indiscutível de uma figura de primeiro plano dos Painéis. Que era a única identificação documentada que até ali se fizera. Foi tacitamente aceite, porque não podia deixar de o ser, mas em silêncio.
Este blogue foi criado para falar de temas literários, e nunca pensei incluir nesses temas o caso dito “dos Painéis”. Só que encontrei recentemente aquilo que penso ser a resposta a mais um dos problemas do caso, e lembrei-me de escrever aqui sobre essa descoberta.
Para logo pensar que, uma divulgação dessa natureza, isolada do seu contexto, não interessaria os leitores. Como a poderiam eles avaliar, aceitar ou rejeitar, se não conhecessem as minhas relações anteriores com o caso? Se não soubessem das pesquisas que realizara, e da sua forma? Das descobertas que gradualmente fora fazendo, das conclusões que delas tirara e do livro que a partir delas escrevera? Para já não falar da reacção que houvera a esse livro?
Acrescia que o caso dos Painéis, tão cheio de problemas de interpretação, sobretudo de ordem histórica, tem hoje, adicionalmente, um problema de ética, de honestidade intelectual. A saber até que ponto, em matéria da história de uma obra de arte, se pode defender a mentira para preservar a revelação de erros cometidos.
Creio que aqueles que habitualmente lêem os meus posts, são pessoas que saberão apreciar a questão nas suas diferentes vertentes. E é nessa convicção que me decidi a incluir no libri. librorum a questão “dos Painéis”.
Após ter publicado o artigo sobre o homem de encarnado, pensei ficar-me por ali. Mas como sou curiosa, achei que devia valer a pena dar uma vista de olhos no arquivo da Câmara de Lisboa. Se um homem da Câmara figurava em lugar de destaque nos Painéis, era possível que, entre a documentação da Câmara, se viesse a encontrar qualquer coisa relacionada com aquela obra. Era um passo lógico. Numa pesquisa documental histórica é assim que se procede.
Não descobri documentos que aludissem directamente aos Painéis, mas encontrei outros que, indirectamente, interessavam ao caso. Eram documentos que se referiam à obrigação que a Câmara tinha de organizar anualmente, no dia 25 de Outubro, uma procissão para comemorar a conquista de Lisboa aos mouros, e dar graças aos Santos que tinham presidido a essa vitória. A procissão ia da Sé ao mosteiro de São Vicente de Fora, e os santos em questão eram dois irmãos gémeos, que se chamavam São Crispim e São Crispiniano. Quando os senhores presidente e vereadores da Câmara pareciam estar em vias de esquecer aquela sua obrigação, os reis tinham o cuidado de lho lembrar. Que Suas Senhorias fizessem o favor de não esquecerem a obrigação de comemorar “tão grandes santos, e a quem a cidade tanto devia”.
Aqui estava outro facto que merecia ser participado, pensei eu, e escrevi o respectivo artigo. A revelação foi acolhida com a gargalhada que os nomes Crispim e Crispiniano provocaram a pelo menos um dos peritos. Como se santos com aqueles ridículos nomes pudessem ser tomados a sério.
Não previra uma recepção entusiástica daquela nova informação. mas pensava que ela interessaria. Afinal estavam ali documentos que diziam que houvera na história da cidade de Lisboa dois santos, que eram gémeos, que tinham sido mártires e diáconos, o que permitia que fossem representados com barrete na cabeça tal como aquelas duas figuras centrais e idênticas que se viam nos Painéis
A verdade é que eu vivera na ilusão que alguém devia querer provas documentais para aquele caso. Perdi essa ilusão. Percebi que nos cérebros dos senhores dos Painéis reinava a certeza que os dois santos eram São Vicente em duplicado. Mesmo quando vozes competentes apontavam que não havia memória de São Vicente ter sido representado com barrete na cabeça, visto ter sido tonsurado, e que a um santo tonsurado nunca se representava de cabeça tapada, mesmo assim, os ditos senhores mantinham soberanamente a sua convicção.
A falta de reacção não me incomodou, e ignorei a troça. Não tencionava continuar o estudo daquele caso, e menos entrar em discussões a seu respeito.
E mais uma vez decidi que por ali me ficaria. E assim o teria feito, se não fosse a minha filha me contar, ao chegar um dia a casa, que fora abordada na rua por uma senhora que lhe perguntara se ela não era minha filha, e tendo ela respondido afirmativamente, a desconhecida dissera-lhe: --Olha, então diz à tua mãe que continue com o caso dos Painéis, porque ela é que está no bom caminho.
Ri, mas o mal estava feito. Meti-me onde não era chamada. E, já que me metia, fiz a ‘metidela’ a fundo.
Já lera alguma coisa sobre a questão, decidi ler tudo. Desde os cinco volumes de Belard da Fonseca ao mais pequeno folheto. Mais tarde iria voltar a eles para argumentar e contra-argumentar, de momento li as teorias, li os factos históricos e artísticos mais ou menos pertinentes apresentados, admirei as imagens elucidativas que os diferentes autores apresentavam, e fiz obedientemente as comparações que me aconselhavam. Fui uma esponja.
Destaquei de tudo aquilo e dois únicos dados que me pareciam de interesse. Dois factos. Dagoberto Markl, lembrou, que no tumulo do Infante D. Henrique se via uma figura jacente, cujas feições não eram as do homem de chapéu preto dos Painéis, que se presumia representar o Infante. Dagoberto Markl não tirou dali as devidas consequências, mas tinha dado uma utilíssima contribuição para o caso.
O segundo facto pertinente era revelado por João Paulo Abreu Lima, a saber, que na época em questão, tinham trabalhado em Lisboa dois pintores, um, Nuno Gonçalves, português, outro, João Ennes, flamengo ou português de ascendência flamenga.
De resto pude concluir que havia três dados que eram considerados indisputáveis. Eram eles:
a) os dois santos eram São Vicente em duplicado
b) o homem de grande chapéu preto retratado nos Painéis era o infante D. Henrique
c) o autor da pintura fora o pintor português Nuno Gonçalves.

Nestas três verdades absolutas não se podia tocar. Assim sendo, de momento que eu me ia ocupar do caso, aquelas três ‘verdades’ tinham de ser examinadas e a sua consistência, conforme o caso, tida ou não. em consideração. Após a leitura dos livros, era este o passo que se impunha. Que eu me impus.
--Porque é que pensa conseguir desenvencilhar o que os outros não conseguiram? perguntou-me um dos meus irmãos, a quem falei na decisão que tomara.
–Porque eu não vou adivinhar, vou investigar, respondi.
Podia ter acrescentado que eu tinha o que nenhum dos outros tivera. Eu tinha um ponto de partida. Eu tinha o homem de encarnado.

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ou Escritor de história?

>> segunda-feira, 5 de outubro de 2009




Devido a um problema de vista, é provável que tenha muito em breve de fechar este blogue. Com muita pena, aliás. Enquanto não o faço. vou encurtar os artigos, o que de resto já me fora aconselhado. Como até agora não escrevi sobre temas de história lembrei-me de o fazer nos próximos spots, e tocar, ao de leve como o assunto requer, no delicado problema da interpretação dos Painéis de São Vicente de Fora.
Mas antes de mais acho que devo definir o que sou em relação à escrita de história.
Há em Portugal um extraordinário número de “historiadores”. Praticamente todos os jornais apresentam artigos assinados por articulistas que se definem por “(historiador)”. Mas quando se procuram pelas suas obras, elas não se encontram, ou, quando existem, não são em geral aquilo que eu considero obra de “historiador”.
Consultei uma sobrinha que está a tirar o curso de história e fiquei a saber que ela, quando terminar o seu curso, está formada em história, e é portanto “historiadora”.
Ora se a minha sobrinha será historiadora sem ter escrito uma obra de História, o que são então aqueles senhores meus conhecidos pelas grandes obras de historiografia que deixaram? O que eram então na Alemanha Mommson, Ranke, em França Taine, Michelet, Herculano, em Portugal? Lembrei-me que em alemão se designam a estes autores por “Geschichtsschreiber”, ou seja, por “escritor de história”. A coisa assim era mais clara.
Tendo o historiador, o formado em história, escrito uma ou mais obras sobre problemas de história, então, além de ser formado em história e a poder ensinar, era um “escritor de história”.
Historiadores formados em história são uma espécie recente. A ciência e o seu ensino datam de meados do século XIX. Até ali os documentos originais nem eram consultados. Quando se constatou que, sem a sua leitura, não havia compreensão de “história”, percebeu-se que havia que ler os documentos Ainda não havia cadeiras de paleografia, e os primeiros escritores de história tiveram de se ensinar a si próprios a paleografia e a correcta interpretação dos documentos originais. Foram autodidactas em matéria de história.
Voltando ao meu caso. Não sendo formada em história, não sou historiadora. Mas, tendo-me ensinado a mim própria, escrevi obras de história Talvez possa dizer que sou uma escritora de historia à moda do século XIX.
O escritor de história que se auto-ensina corre determinados riscos. Já não falando no despreso a que é otado pelos “historiadores”, o que é natural e de esperar. Os riscos importantes ocorrem na sua forma, por ventura pouco profissional, de encarar a escrita da história.
Não sei se nas faculdades ensinam o futuro historiador a evitar, por exemplo, o “antiquarismo”. O escritor não formado pode facilmente cair nele.
No seu livro “The Practice of History “ o professor G.R.Elton escreve que o antiquarismo se distingue pela devoção ao detalhe, pelo o amor a este. O antiquarista quer saber, mas não quer perceber. Pouco o preocupa o que está aprendendo com aquilo que acabou de saber”.
O antiquarismo tem por vezes a sua utilidade, escreve Elton, mas em geral prejudica a escrita da história. “É uma doença que afecta mesmo os historiadores formados e pode atacar com maior virulência ao não profissional.”
Eu ignorava que a expressão existia quando pela primeira vez escrevi história. Creio que consegui escapar à doença pela avassaladora quantidade de dados curiosos que se me foram revelando quando comecei a organizar o antigo arquivo da minha família materna. Eram curiosidades a mais para serem realçadas. Quando comecei a escrever historia tinha aprendido sem mestre a evitar o antiquarismo.
Daquela leitura de documentos e nos cinco anos que levei a escrever o meu primeiro livro, a biografia de um homem da Restauração, fui aprendendo muto mais. Foram cinco anos de aprendizagem. Aprendi a medir o relativo valor dos documentos para a obra em questão. A não me entusiasmar por um dado descoberto sem ter medido o seu verdadeiro alcance. Aprendi a medir as evidências antes de me precipitar em conclusões. Constatei a dificuldade da isenção na avaliação dos feitos e dos homens, e logo jurei a mim mesma que nunca me empenharia em escrita de história na qual a isenção não me fosse possível.
Daquela primeira obra passei a outra, esta sobre a vida nos mosteiros femininos portugueses na Idade Média (livro que ainda está por publicar) e que me levou à leitura de inúmeros outros documentos. Ia-me tornando um pouco especialista na matéria. E foi assim, fazendo a pedido, uma pesquisa documental, que esbarrei com um dado que me fez penetrar ali onde jurara nunca entrar, na zelosa e superiormente protegida questão de umas tábuas pintadas que um dia haviam sido encontradas nas arrecadações do mosteiro de São Vicente de Fora. O que se seguiu fica para depois. Se a vista o permitir.

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Livros que foram de Afonso de Torres. Porquê Tácito?

>> segunda-feira, 28 de setembro de 2009





Volto de novo ao inventário dos livros que foram de Afonso de Torres, porque dei um pequeno passo em frente que julgo poder interessar. .
Trata-se, como escrevi num post anterior, de decifrar o inventário dos livros deixados pelo dito Afonso de Torres. e por eles avaliar que tipo de obras literárias eram lidas por um português culto na primeira metade do século XVII. Para o que era preciso conseguir ler o inventário dos livros que o homem deixara. Só que, como então escrevi, se estava praticamente face a uma adivinha, ou antes uma série de adivinhas, já que o avaliador dos livros não se dava ao trabalho de especificar correctamente a obra, e menos em soletrar algum título mais difícil. Dizia um nome, ou um título, que para ele definiam perfeitamente de que obra se tratava, e indicava o valor em que a avaliava. O valor é que interessava. O escrivão, que anotava as palavras do avaliador e nada devia saber de livros, escrevia o que lhe parecia ter ouvido.
Durante anos não tive paciência para me meter a resolver aquelas adivinhas. Ultimamente decidi pegar no inventário, pareceu-me que o trabalho de o decifrar e depois interpretar podia interessar e merecia ser feito.
Alguns livros já foram identificados, uns por mim, outros por Paulo Achmann, amigo bibliófilo, a quem pedi ajuda e outro por Gonçalo da Cunha, que entrou no jogo.
Para dar um exemplo desta colaboração mostro aqui como se identificou o primeiro livro do inventário.
“Viagem Dermundo de sevalhos”. lê-se nele.
Eu procurei por: ‘viagens em torno do mundo (dermundo)’, e cheguei a bom porto. O livro é: “Historia y viage del mundo del clerigo agradecido don Pedro Ordoñes de Zevallos … a las cinco partes de Europa, Asia, Africa, America y Magalanice. Contem 3 libros” Vasconso, José ed. Juan Garcia imp. Madrid 1614
Paulo Achmann foi por: ‘sevalhos’.
--Chegar lá, escreve ele, --não foi tão fácil como parece, porque sem o "Ordóñez" recusava-se a aparecer. Mas acabou por aparecer.
Outra adivinha era esta:
“Primeira parte del par nosso de ouvidio”
Paulo Achmann declarou-se derrotado: --Primeira parte del pai nosso de Ouvidio? Que diabo (releve-me a incontrolável linguagem blasfema) é que o Ovídio tem a ver com o Pai Nosso ?
A solução veio no comentário de Gonçalo da Cunha. “Primeira parte del pai nosso de Ouvidio” era, escreveu ele, “Primera Parte del Parnaso Antartico de Obras Amatorias con las 21 Epistolas de Ovidio, Sevilla 1608.
E que dizer da obra denominada “A contersia de Justiça Luso”?
Dessa identificação glorifico-me eu. Gonçalo da Cunha perguntou-me a dada altura se eu já descobrira o que era esse ‘A contersia de Justiça Luso’.
A minha primeira resposta foi que ainda não o conseguira, mas a pergunta acordou-me, voltei à adivinha e pude responder ao Gonçalo.
“Justiça Lusa” era provavelmente o nome do autor do livro e não o seu título. Os meus conhecimentos de alemão levavam-me a pensar que o “Justiça” podia ser o nome Justus, nome então bastante usado na Alemanha.
Consultei uma lista dos livros que pertenceram a um grande bibliófilo espanhol contemporâneo de Afonso de Torres. Encontrei “Justus Lipsius filólogo e humanista... fue el autor de una serie de obras que pretendían recuperar la antigua corriente filosófica conocida como estoicismo en una forma que fuera compatible con el cristianismo…….La más importante de dichas obras fue De Constantia.” Que deu a “contersia” do escrivão.
E passo ao título deste spot: Porquê Tácito?.
Afonso de Torres tem várias obras de Cornelius Tácito. Os meus dias não costumam estar ocupados com Tácito, mas dá-se o caso de ultimamente ter lido mais de uma vez o seu nome. E a razão é esta:
Há dois mil anos, no dia 9 de Setembro do ano 9 depois de Cristo, deu-se no norte da Germânia, na floresta de Teutoburg, uma batalha em que Roma perdeu três das suas legiões, As forças romanas eram comandadas por Quintilius Varus, as germânicas por Arminius, chefe de Cheruscos.
“Suetonius escreve que o imperador Augusto deixara crescer cabelo e barba em sinal de luto e que, quando recordava o desastre, exclamava ‘Varus, Varus dá-me as minhas legiões’.”*
,Ainda hoje se discute a exacta localização e o decorrer de uma batalha que foi decisiva para a história da Europa, e o tema apaixona arqueólogos e historiadores.
A batalha, que estava praticamente esquecida, veio de novo à memoria europeia em meados do século XV quando se descobriu no mosteiro de Hersfeld na Alemanha um pequeno manuscrito intitulado “De origine et situ germanorum”. O autor latino era Publius Cornelius Tacitus e falava dessa batalha.
Ignora-se como sucedeu, mas em 1455 o manuscrito foi parar a Itália e em 1470 era impresso em Veneza. Em 1473 era impresso na Alemanha.
Eu acabara de ler três obras, duas alemãs e uma de um autor americano sobre essa batalha e em todos eles se cita Tácito. Não é pois de estranhar que, imersa como estava no assunto e em Tácito, eu tivesse, ao pegar de novo no inventário, identificado o “Cornelius Tácito” de Afonso de Torres, com àquele livro de Tácito que eu conhecia, ou seja com o “De origen... Germanorum”.
Estranhei contudo que houvesse outros livros de Tácito. Um deles intitulado “Cornelius Tácitus Aforismos”, outro intitulado “Cornelio Tácito Espanhol 600 rs”.
O que tinham aqueles títulos a ver com o “De origen-----Germanorum”? E porquê tanto interesse espanhol por Tácito? Foi procurando esclarecer esta duvida, que pela primeira vez soube da existência de uma corrente de ideias designada por ºtacitismoº, e que um dos seus principais expoentes fora Baltasar Álamos de Barrientos (1555 – 1640) com o seu “Tácito Español illustrado con aforismos” (Madrid, 1614).
Não era ºpois do ‘De origen .... Germanorumº, e não era da batalha de Teutoburgo que se tratava nas obras que se encontravam na biblioteca de Adonso de Torres. Tácito fora autor de outras obras, e era dessas suas obras que os tratadistas espanhóis se estavam servindo nas suas argumentações, e eram os livros deles que Afonso de Torres tinha.
Na Net, e não, como esperava, na minha ‘Historia de la Literatura Española’, encontrei um artigo que me esclareceu. É da autoria de Elena Cantarino e intitula-se “Tratadistas politico-morales de los siglos XVI e XVII”
“A moralidade ou imoralidade dos meios usados pelos governantes para conseguir os seus fins políticos era assunto que ocupou o pensamento politico na Europa”, escreve Elena Cantarino .
O tema nascera com Maquiavel e, ao discorrer sobre a ética na politica, na “Razão de Estado”, as opiniões devidiam-se. Havia várias escolas de pensamento: a escola eticista, a idealista e a realista.
Os primeiros, anti-maquievelistas, repudiavam “a irreligiosidade e o amoralismo na política, que julgavam ver na doutrina de Maquiavel”.
Outros não atacavam a tese de Maquiavel, mas “criticavam, mais ou menos veladamente, as consequências negativas da sua doutrina…”
É com esta corrente que se introduz a Tácito, e que “se assumem indirectamente propostas que têm sido consideradas por alguns como maquiavelistas e por eles designados por ‘maquiavelismo encoberto’ ou ‘camuflado’. Os autores que defendiam essa corrente eram tratados de realistas ou de ‘tacitistas’.”
E mais adiante:
“Tácito era a figura que a maioria dos ‘realistas’ tomaram como modelo, como fonte de inspiração e de admiração. Descoberto no Renascimento (as suas obras foram impressas em 1458) foi no entanto a edição de Justo Lipsio (1574) que permitiu que o autor clássico se convertesse no grande mestre da razão de Estado. Sem duvida que o seu estilo aforístico e a sua forma de ‘enfocar” a política com imoralidade fizeram com que a sua obra reunisse as condições essenciais para agradar ao gosto do barroco. “
Entre os autores da primeira escola, a idealista, Elena Cantarino cita Juan de Mariano e Francisco de Quevedo, dos quais há livros no inventário de Afonso de Torres. Mas é de autores da terceira escola, a realista, que ká identificámos mais obras. Entre elas as de autores como Justus Lipsius, do citado Baltasar Álamos de Barrientos com o seu “Tácito Español illustrado con aforismos…”, e, “altough last, nor least”, das obras do próprio Tácito.
Afonso de Torres estava natiralmente interessado na magna questão da “Razão de Estado” e da sua ºetica, e, considerando os seus livros já identificados, parece ter sido adepto da escola “realista” ou “tacitista”.

*Peter S. Wells The battke that stopped Rome. Emperor Ausgustus, Arminius and the slaughter of the legions in theTeutogurger Wald.

Observações à margem
Há ainda muitas obras por identificar. Agradeço qualquer sugestão quanto a:
“Tragicomédia dos apóstolos”
“Filosofia de meya”
“Os quatro novíssimos de Rolim”

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