2º coloquio. A miniatura

>> segunda-feira, 2 de novembro de 2009





Pouco tempo depois do primeiro, o Museu de Arte Antiga organizou um segundo colóquio sobre o tema dos Painéis. Desta vez tratava-se de apresentar a descoberta feita pelo doutor Jorge Almeida da assinatura de Nuno Gonçalves.
O doutor Jorge Almeida surgira para o problema dos Painéis com a publicação do meu primeiro livro. Tendo conseguido obter o meu número de telefone, falou-me, convidando-me a almoçar com ele - em restaurante à minha escolha – para ele me expor o que era a opinião dele sobre os diferentes problemas. Agradeci o convite, mas não o conhecia, e quanto aos Painéis, escrevera o que tinha a dizer, e dava o assunto por terminado. Com notável persistência, o doutor Jorge insistiu com sucessivos telefonemas, desafios para debates públicos etc e um dia tentou entrar em minha casa, e tive de lhe fechar a porta na cara.
O que não conseguiu comigo, conseguiu com os média. Apareceram artigos ditados por ele, fomos informados de que o Dr. Jorge resolvera os problemas dos Painéis e até de que havia uma declaração subscrita por nomes importantes do nosso meio intelectual, como Augustina Bessa Luís, António Lobo Antunes, João Lobo Antunes, Marcelo Rebelo de Sousa, e outros, em que se lia que o Dr. Jorge tinha toda a razão e dizia muito bem. O Museu de Arte Antiga encantou-se com o Dr. Jorge, tinha um novo paladino da tese vicentina e gonçalvista. E um dia soube-se, que o museu organizava novo colóquio. Desta vez para que o Dr. Jorge Almeida pudesse fazer uma importante revelação: a descoberta da letra N de Nuno Gonçalves no sapato do rapazinho, no painel dito ‘do Infante’.
Obtinha-se essa visão virando a respectiva tábua de eerta maneira, creio que de pernas para o ar. Confesso que me deliciava a visão de director e conservadores do Museu de Arte Antiga, de cócoras, ou empoleirados em escadote, constatando sob a batuta do Dr. Jorge, a presença do N de Nuno Gonçalves no pé do rapazinho.
É sabido, que houve artistas medievais, que caprichavam na colocação de inscrições alusivas nos seus quadros. Mas não há memória de que a inscrição, uma vez encontrada, não seja legível olhando a pintura de frente. Ter de a virar de lado ou de pernas para o ar para descobrir o N de um pintor pareceu-me surrealista.
Sendo pouco provável que o museu permitisse, que me virassem a tábua em questão da forma adequada, contentei-me com o fazer em casa com a fotografia do sapato, e constatei aquilo que no Museu se devia ter visto antes de se adiantarem em colóquios.
Desta vez, talvez por se tratar de tão triunfal colóquio, eu fora convidada a assistir, e o director do Museu perguntou-me se eu queria dizer alguma coisa. Respondi que sim, o que ele, jovialmente comentou com estas palavras: “Desta vez, como vê, deixo-a falar” Agradeci e quando me chamaram, disse rapidamente o que tinha sido a minha investigação dos problemas dos Painéis e que, quanto ao tema do dia, estudara-o com muita atenção e tinha dizer o seguinte: a letra N compunha-se, como era sabido, de dois traços paralelos, ligadas por um traço diagonal vindo do topo da coluna da esquerda para o sopé da coluna da direita. O signo, que, segundo o Dr. Jorge Almeida, se conseguia ver no sapato do rapazinho, e que segundo ele, seria o N de Nuno Gonçalves, não era o N que nós conhecíamos, já que se compunja de dois traços, ligados por uma diagonal que ia do sopé da coluna da esquerda para o topo da coluna de direita. Era letra ou signo que não existia no alfabeto.
Não me lembro de ter recebido resposta, a sessão continuou com o programa agendado, uma comunicação que incluía a transmissão de fotografias agrandecidas dos Painéis. E como tudo aquilo era extraordinário, deu-se então o seguinte episódio. Na escuridão, agachando-se para não encobrir o ecrã, aproximou-se de mim uma figura da qual não consegui distinguir as feições. Vinha dos bancos do museu, e entregou-me um bilhete. Quando se fez luz, li o bilhete. Era acusada de ter plagiado uma determinada autora. Li alto o bilhete, acrescentando o que tinha a dizer sobre a acusação, e ainda que o bilhete, não assinada, viera dos bancos do Museu. Nessa altura levantou-se um rapaz, pediu a palavra, e declarou querer participar um curioso facto sucedido com ele. Ele tinha uma pequena revista de arte destinada a um publico juvenil. A revista sempre se vendera na loja do Museu. Mas o ultimo número fora rejeitado, com a explicação que na revista, ao falar dos Painéis, se usara as identificações de Teresa Castello Branco, o que era proibido. O livro dela também não se podia ali vender.
E assim terminou um segundo colóquio organizado pelo Museu de Arte Antiga em prol do estudo histórico-cientifico da sua peça mais valiosa, os painéis de São Vicente de Fora.
Passemos a tema mais interessante e mais limpo: o caso da ‘miniatura do Infante’.
O erro ‘do retrato do Infante’ é coisa muito diferente do “erro” da tese vicentina. No caso da miniatura houve de facto um erro, mas um erro muito compreensível. Interpretou-se erradamente um dado que, à primeira vista, parecia indiscutível.
Em 1837 descobrira-se em Paris um retrato do infante D. Henrique. A Europa vivia então a febre de querer saber. Também queria saber como era aquilo “lá fora”. Ia-se lá fora em simples viagem de turismo, ou em viagem de exploração. Um jovem francês chamado Ferdinand Denis, fora às terras do Brasil, ganhara interesse pelos descobrimentos e as explorações dos portugueses e, nesse contexto, consultara. no fundo de manuscritos da Biblioteca Nacional de Paris, aquilo que se relacionasse com Portugal. Deu com um manuscrito intitulado “Crónica do Descobrimento e Conquista da Guiné” de Gomes Eanes de Zurara. Falou do seu achado ao visconde da Carreira, então o ministro de Portugal em França, homem culto, que tratou de divulgar o achado. Interessava provar a primazia dos descobrimentos portugueses, e a crónica foi usada sobretudo nesse sentido. Daquilo que Zurara contava, pouco se falou. Do que se falou foi de uma miniatura que a obra continha. Uma miniatura representando um homem de grande chapéu preto e tendo em baixo a divisa do infante D. Henrique. Um retrato do Infante, portanto.
Quando em 1883 se descobriram em S.Vicente de Fora as tábuas onde se via um homem idêntico ao que se via na miniatura, ninguém duvidou que se tratava da mesma pessoa, que aquele homem era o Infante. O homem da miniatura era um pouco mais novo que o dos Painéis mas era sem duvida o mesmo homem. Só muito mais tarde se perceberia que esse homem não era o Infante.
Quando a duvida nasceu, já era tarde para fazer meia volta, nem interessava fazê-la. O Infante D. Henrique adquirira as feições do homem da miniatura e dos Painéis.
Em 1937, cem anos depois da sua descoberta, publicou-se finalmente a crónica de Zurara, e a descrição que Zurara nela dava da pessoa do Infante era a de um homem muito diferente do homem da miniatura. Descrevia-o assim: ”Este nobre príncipe havia a estatura do corpo em boa grandeza e foi homem de carnadura grossa e de longos e fortes membros, a cabeladura havia um tanto levantada, a cor de natureza branca, mas pela continuação do trabalho por tempos tornou-se de outra forma. Sua presença de primeiro sguardo aos ousados era temerosa”-
Mais tarde Dagoberto Markl notaria ainda a diferença que havia entre o homem de chapéu grande e a figura jacente do Infante D. Henrique no seu tumulo.
Os testemunhos dos túmulos são muitas vezes esquecidos como fonte documental. Talvez por se imaginar que os artistas que esculpiam os túmulos usavam da sua própria imaginação e fantasia para tudo, inclusive as figuras jacentes dos mortos. Ora com a morte não se brincava. O morto devia ser recordado o mais fidedignamente possível. O escultor seguia as instruções que lhe davam e procurava transmiti-las da melhor forma. Quando não podia reproduzir a figura exacta do homem ou da mulher que jaziam no tumulo, dava-lhes atributos que os caracterizassem, ou mesmo alguma indicação sobre a sua vida e morte. Os túmulos de D. Pedro e D. Inês, frente a frente, são tão expressivos do seu amor, como é expressiva da causa da sua morte a representação de uma criança sendo violada, que se vê em Odivelas em um dos pés do tumulo de uma pequena filha de D. Diniz. E ningém pode duvidar que D. Isabel de Portugal, mãe de Isabel a Católica, era uma ávida leitora, vendo-a de livro na mão imersa na leitura no seu tumulo na Cartuxa de Miraflores.
O Infante D. Henrique estava representado no seu tumulo tal como fora. E exactamente como Zurara o descrevera.
Estes dois testemunhos – texto de Zurara e tumulo - deviam ter sido suficientes, mas só a peritagem que se fez à miniatura é que convenceu e transformou duvida em certeza. O homem de chapéu grande não era o Infante.
O exame da miniatura revelara, que esta tinha um vinco, ou seja, que, em tempos, fora dobrada e que não fizera sempre parte do manuscrito com o texto de Zurara. Provou-se também que a divisa fora pintada em cima do vinco, era portanto posterior ao original, e mais, que a sua ortografia não correspondia à da divisa do Infante. Uma pequena, mas significativa diferença. O Infante escrevia “Talant de bien fere”, e na divisa da miniatura lia-se “talant de bien faire”- Além disso, era sabido que a verdura que o Infante tinha na sua empresa era de carrasqueira, enquanto aquela que se via na miniatura era de folhas e bolotas de azinheiro e sobreiro.
Destas e ainda ousaras anomalias e o que elas significam sabe-se há mais de cinquenta anos, mas mesmo depois de os factos se saberem, os investigadores continuaram a fazer identificações a partir da figura do homem de chapéu preto como se do Infante se tratasse.
Ora que o Infante tenha tido a pele clara e cabelo loiro e fosse forte e de ombros largos, ou de ombros estreitos e cabelo liso e preto, não tem grande importância, nem hoje se pode e pretende mudar. Mas deve ser permitido àqueles que querem saber “como as coisas na verdade eram” (Ranke), que a essas seja permitido fazer as suas investigações a partir do facto de no homem de preto se tratar de outro homem do que o Infante.
O Dr. Fernando Baptista Pereira declarou no primeiro colóquio que a investigação iconográfica não tinha grande importância, que aquilo de qualquer modo era tudo simbólico. Opinião sua. Em minha opinião rata-se de um grande retrato de pessoas históricas e contemporâneas umas das outras.. Pessoas às quais naturalmente gostaríamos de dar os seus nomes. Nomes autênticos, racionalmente encontrados, não fantasias. Foi isso que tentei fazer e que, até certo ponto, penso ter conseguido. De como procedi, e de que raciocínios usei, procurarei dar conta no próximo post.

1 comentários:

Cuper 20 de outubro de 2011 às 13:24  

É uma pena que Portugal tenha perdido a memória das figuras que aparecem nos Painéis e que se constituam hoje em total mistério.
Pena mesmo...

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