Os signos e os símbolos

>> segunda-feira, 16 de novembro de 2009




Quase todos os objectos que se vêem nos Painéis, têm sido considerados como tendo um sentido simbólico, a dúvida sendo qual fosse esse sentido. Belard da Fonseca era da opinião que toda a obra era marcada de “forte carga de simbolismo”. Eu penso que a carga simbólica era tão forte porque se atribuía sentido simbólico a tudo que não se sabia explicar, que se achava um pouco estranho. Via-se símbolismo até no colar de um cavaleiro, na fivela pendente do cinto de outro, e até nas cores de um saio. Em minha opinião nada daquilo era simbólico, assim como não o era o caixão no painel da câmara e o madeiro no painel dos monges.
O livro na mão de um homem, a caixa de madeira junto de outro, eram sinais ou da ocupação, ou do cargo daquele homem. Eram ilustrações, não eram símbolos. Não era um símbolo misterioso a cruz encarnada, quase invisível, no barrete do homem de barba negra. Era um sinal da sua ‘profissão’ de frade trinitário.
Os contemporâneos que contemplassem a pintura. não viam com certeza símbolos naquelas coisas. Sabiam muito bem que o caixão ao lado do homem vestido de burel no painel da câmara era a marca do seu triste cargo como coveiro dos defuntos pobres. Toda a gente sabia que os frades trinitários - que o em de barba negra era - usavam obrigatoriamente uma cruz nas suas vestes, mesmo quando eles, nas suas missões de resgate em terras inimigas, vestiam como os habitantes dos países que visitavam E ninguém ignorava que o madeiro ao lace de frei Pedro Nuno, que todos conheciam como pregador mor dos cativos, e grande valido de el-rei D. Afonso V, era a caixa de madeira em forma de tronco, era uma caixa de esmolas, onde os fiéis deitavam as moedas com as quais contribuíam para o resgate dos cativos pobres..
Dos cinco livros que se vêem nos Painéis, e nos quais também se tem querido ver sentido simbólico, dois são os livros dos santos, e os outros caracterizam os homens que os têm na mão como pessoa ligada a livros. Um deles, no topo do painel dos cavaleiros, é muito provavelmente o cronista Ruy de Pina. O livro na mão de um dos religiosos no painel dos monges também significava decerto que se tratava de alguém ligado a livros, talvez como cronista religioso. No caso do livro apresentado pelo homem de preto no painel da Câmara, aí o que obviamente conta não é o homem, é o livro. No meu primeiro livro sugeri que este livro pudesse ser uma obra impressa, a grande novidade em matéria de livros. Sabe-se que D. Afonso V adquiriu “livros de forma”, e não seria improvável que o quisesse mostrar ali. Uma sugestão, nada mais.
Os observadores contemporâneos da pintura também não achariam nada de estranho e de simbólico nos invólucros de pano preto dos livros dos santos. Era sabido que livros de prece, como aqueles sem duvida eram, se protegiam com capas de pano.*
O que talvez espantasse os observadores, era o santo com o livro debaixo do braço. Sempre me divertiu aquele sem-cerimónia em figura de devoção. Parece-me que estou a ouvir o jovem figurante, perguntando ao pintor, onde punha o livro se tinha que segurar a vara doirada e ainda apontar para o rei, e o pintor respondendo, --põe o livro debaixo do braço.
Verdadeira e indiscutivelmente simbólico naquele conjunto é o molho de cordas aos pés do santo no painel do Arcebispo. Esse molho de cordas. sim, é elemento simbólico. E da maior importância para definir o sentido daquela composição.
Todos os investigadores viram o molho de cordas como elemento fundamental e todos puxaram a brasa à sua sardinha, servindo-se daquelas cordas em apoio das suas respectivas teses. E praticamente todos viam nas cordas um símbolo de prisão do seu herói. Ignorando que era outro o símbolo de prisão. Para xxxx Saraiva aquelas cordas eram as cordas da prisão do infante D. Fernando, para Belard da Fonseca eram as cordas da prisão do infante D. Jaime, e para os vicentistas eram as cordas da prisão de São Vicente.
A todas as sugestões que se fizeram acerca do molho de cordas examinei com atenção, assim como o fizera com as outras atribuições de simbolismo. Agora, que julgo ter encontrado a solução, espanta-me o tempo que dediquei a examinar propostas que sabia serem impossíveis. Tratei a todas com a mesma atenção e respeito como se acreditasse nelas. Não fui correspondida da mesma maneira.
De todas as sugestões feitas acerca daquele molho de cordas, só uma me pareceu ter consistência. Foi a de Afonso de Dornelas, que via no molho de cordas um símbolo de desejo de união. Era uma ideia que tinha lógica, mas não me parecia explicação suficiente.
Não me lembro quando pela primeira vez pensei que aquilo podia ser um rebos. O que sei, é que logo que a ideia me veio, tive a certeza que era disso que se tratava. De um rebos ou talvez de uma empresa. Optei pelo rebos.
Um rebos é, como se sabe, uma adivinha, um jogo que consiste em exprimir uma ideia, um provérbio, por meio de letras, números, objectos desenhados, que, quando pronunciados, produzam o som das palavras ou do provérbio que está por adivinhar. Sendo assim, o que vemos é um molho de cordas ~ que significa união, força - com nós. Solução: A CORDA NOS UNIÃO
Pouco tempo depois da publicação do livro em que eu dava essa solução recebi uma carta do Porto de Helena Correia de Barros. Dizia-me que no Brasil se venerava muito a SS Crispim e Cruspiniano como protectores da união e que eram numerosas as orações que lhes eram dedicadas, pedindo a sua intercessão para esse efeito. Uma das orações era a seguinte:
“Confiante em vosso mérito suplico-vos São Crispim e São Crispiniano união, concórdia e confiança. Possamos nós viver unidos como vós sois unidos, concordes um com outro, confiantes como vós confiais”
E mais adiante “Tudo que for amarrado seja desamarrado, o que estiver cosido fique descosido, o que estiver ligado a meu favor, fique ligado, o que estiver ligado contra mim, fique desligado, pelo vosso poder, São Crispim e São Crispiniano, pelos vossos méritos, pela graça que Nosso Senhor vos deu..”
Penso que a oração confirma a solução que propuz para o problema do molho de cordas. E a oração também contibui para ezplicar os nós ou atilhos que se vêem no painel do arcebispo nos ombros do rei e no do homem de joelhos. No rei, o atilho é em fio de ouro, no cavaleiro em fino cordão preto. São emblemas que exprimem o mesmo espírito que o molho de cordas, e que se podem ler como a este.
Sempre considerei esses atilhos como sinais de participação em determinada função, que, neste caso. com a presença do arcebispo só pode ser religiosa, e que – tudo considerado – só podia ser a procissão de SS Crispim e Crispiniano. Os antos aos quais se pedia união e força.
O homem de joelhos, à esquerda nesse peinel, seria então muito provavelmente o mordomo** da procissão, que naquela ocasião cedia a sua posição ao rei. A vara que o santo apresenta ao rei, sempre considerada como vara de comando, significaria a vara de ‘comando da procissão. A vara era a vara de mordomo daquela procissão.

*A protecção de livros de missa com capas de pano foi hábito que se conservou e ainda persistia em meados do século XX
** Não sei se é exactamente essa a designação, nas aldeias é aquele que ainda hoje se usa. Eu pusera inicialmente a hipótese de o homem ser o condede Odemira. Com algumas duvidas, aliás. Gonçalo da Cunha disse no seu comentário que duvidava dessa minha identificação. Gostava de saber a sua opinião acerca desta.

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