Painéis. Figuras Centrais

>> segunda-feira, 9 de novembro de 2009




Quando um acaso me empurrou para dentro da questão dos Painéis, o que verdadeiramente me interessava era a possibilidade da identificação das figuras.
Impossível ficar indiferente perante aquele espantoso retrato de sessenta pessoas, obviamente contemporâneas umas das outras, e obviamente retratados em vida. Que não me viessem com fantasias do infantes D,Pedro, morto em 1449, ali retratado no meio de pessoas vestidas à moda de 1470. E que não me falassem também dessa outra fantasia de piedosa saudade, querendo encaixar ali por força o infante D. Fernando, por ter sido muito bom e ter morrido em cativeiro. As mulheres são realistas, olhei para o retrato com realismo, deixando os saudosismos históricos aos meus predecessores. Também lhes deixava com gosto as suas teorias pré-concebidas, que se achavam na obrigação de defender. Não tinha teoria que pretendesse defender.
O que eu queria era poder dizer: o homem ou a mulher que está ali foi em vida este ou aquela. O que evidentemente só poderia dizer se tivesse chegado a essa conclusão pelo raciocínio lógico, tendo em conta as realidades históricas. Uma conclusão que me satisfizesse, que me permitisse dizer que aquele homem ou aquela mulher eram este ou esta, porque não podiam deixar de ser, porque tudo provava que o eram. Queria-o para mim, para minha própria satisfação. Na altura não pensava em livro sobre a matéria.
A presença de um homem da câmara de Lisboa e a veneração aos santos protectores de Lisboa, marcavam a obra como portuguesa e, em particular, lisboeta, O homem da câmara era importante, mas não era a figura mais importante daquele conjunto. A primeira pessoa era sem duvida o homem de joelho em terra olhando o santo, no painel do Bispo. Bispo, que só podia ser o arcebispo de Lisboa, Naquela posição, estando presente o arcebispo de Lisboa e um vereador da câmara da cidade, aquele homem só podia ser o rei. Ainda admiti contudo a possibilidade de se tratara de outra pessoa de grande posição. Talvez que se tratasse de um dos Grande do reino, que fosse um deles o mandatário daquela obra, e que ali se tivesse retratado com a família. Desisti de imediato da ideia. O homem de joelho em terra, olhando para o santo, era D. Afonso V, o rapaz a seu lado era seu filho e herdeiro, o príncipe D. João. o futuro D. João II. Pelas modas estava-se nos anos de 1469/70
Dei muitas voltas à questão. Não tinha duvida de que quem estava ali no primeiro lugar era o rei, era D. Afonso V, mas queria uma prova concreta. É que, de aquele homem ser ou não ser o rei, dependia a continuação das deduções. Acordei um dia a meio da noite em sobressalto. E se o homem tinha espada como os outros cavaleiros? Nesse caso não era o rei, porque a espada do rei era o condestável quem a levava. Levantei-me, fui verificar. Que alivio! O homem não tinha espada. Em sua frente estava o condestável, segurando com as duas mãos a espada do rei.
Belard da Fonseca escrevera que enquanto não se encontrasse a figura central não se podiam identificar correctamente as outras. Assim é. Só tendo a certeza de quem era a figura central, se podia proceder com outras identificações. Essa figura central estava encontrada, já se podiam fazer identificações.
D. Afonso teria forçosamente a seu lado a sua família mais chegada. Fiz uma lista dos membros da família real, tal como se compunha por volta de 1469, 70. O rei, seus filhos D. Joana e D. João, seu irmão D. Fernando, duque de Viseu, e o Filho mais velho deste, o pequeno D. João, a prima e cunhada do rei, D. Filipa, irmã de sua mulher. E, naturalmente, os primos do rei. O duque de Bragança e seus quatro filhos, D. Fernando, então conde e futuro duque de Guimarães, D. João, marquês de Montemor, D.Afonso, conde de Faro, e o mais novo, D. Álvaro.
Assim como a maioria dos painelistas, quer voluntariamente, por isso ser conveniente à sua teoria, quer por autêntica ignorância, não tomaram em conta os preceitos do culto religioso, assim desprezaram soberanamente os preceitos pelos quais se regia a sociedade medieval. Mas as regras hierárquicas e de precedência que então vigoravam têm de ser consideradas quando se aprecia uma obra medieval. Os Painéis são bem um produto dessa época mesmo que do seu fim, e quando eles se estudam há que ter em conta a mentalidade das pessoas que neles figuram. Aquelas pessoas, e não só as mais importantes, não foram colocadas nas posições que ocupam arbitrariamente ou obedecendo a opções de ordem estética. O seu estado e a sua posição dentro do seu estado determinavam a sua colocação. Determinavam como se sentavam em Cortes, determinavam quem seguia ou precedia quem em reunião familiar publico, como um baptizado, um casamento, E determinavam, naturalmente, a sua posição quando figuravam numa pintura de natureza ‘oficial’ como é o caso do politico.
Em matéria de ordem de precedência, os painelistas, ou ignoravam esse aspecto da questão, ou afirmavam tê-lo em conta, mas arquitectavam teorias fantasiosas sobre aquilo que julgavam saber.
A obrigatória presença do infante D. Henrique não facilitava as coisas. O Infante tinha de estar ali, e mesmo quando já toda a gente se convencera, que ele de facto não ali estava, mesmo então se continuou a deduzir como se ele lá estivesse. Assim, a maioria dos painelistas admitia que D. Afonso V tinha de ser uma das primeiras, se não a primeira figura do políptico, mas não agiam nesse sentido. Cegos com a figura do Infante, faziam deste a figura fulcral, sendo a partir dele que faziam as suas deduções. É evidente que estas só podiam ser erradas. Pasma-se perante afirmações de ordem histórica que visivelmente não foram aprofundadas. Assim, por exemplo, fazia-se passar o infante D. Henrique à frente do duque de Viseu, irmão de D. Afonso V. O que era errado. Como irmão do rei, o duque de Viseu passava à frente do infante D. Henrique.*
Outro erro, e um dos mais crassos, era o de querer ver a D.Isabel, duquesa de Borgonha, na senhora de traje semi religioso no painel dito do Infante. D. Isabel era uma fanática do correcto cumprimento de tudo que dizia respeito a cerimonial e ordem de precedência, e nunca aceitaria figurar numa pintura em posição secundária. A não ser que esta posição, por questões de precedência, fosse de facto a que lhe cabia. Um pequeno livro sobre os costumes da corte de Borgonha, escrito pela filha de uma dama portuguesa da duquesa, é elucidativo e peremptório a esse respeito.
Eu não lera ainda esse livro quando encarei a questão do posicionamento das figuras principais do politico, e ainda não encontrara o documento no qual D. Afonso V estipula a ordenação dos grandes do reino***, mas sabia que a colocação das figuras dos Painéis obedecera forçosamente a regras de hierarquia.
Não sei se o facto de haver dois santos facilitou, se complicou a vida a quem se encarregou de indicar ao pintor a ordem das colocações. Creio que a facilitaria. Poderem-se dar as posições adequadas a todos os figurantes sem ferir as susceptilidades daqueles senhores. O rei e seu filho no painel do Bispo, e frente a eles o irmão do rei, o duque de Viseu. Nas costas do Príncipe, o conde de Faro, terceiro filho do duque de Bragança. Frente ao rei, à esquerda do santo, o segundo filho do duque, D. João, marquês de Montemor, que exercia o cargo de condestável em caso de impedimento de seu irmão mais velho. O que ali sucedia, tendo o filho primogénito do duque de Bragança de ocupa com o pai a primeira posição no outro painel. De joelho em terra, olha o livro que outro santo lhe mostra, e onde se lê muito claramente “O Pai é maior do que eu...eu faço o que o pai me ordena”. O pai, o duque de Bragança, preferiu decerto não estar de joelho em terra, cedendo a honra ao filho. Não sem que isso fosse devidamente notado.
Nesse painel estão as duas senhoras da família, a princesa D. Joana, filha de D. Afonso V e sua prima e cunhada, a senhora D. Filipa, filha do infante D, Pedro.
Foram conclusões a que cheguei, tendo feito a análise individual de cada um dos casos. Justifiquei-os demoradamente no livro que depois publiquei, e ainda ninguém me provou que tivesse errado. Foi a partir da identificação daquelas figuras centrais que tentei identificar algumas das outras. Umas creio que são certas e até indiscutíveis, outras mais duvidosas.
Dentro do grupo da Camila real parece-me certa a identificação do homem de capacete como conde de Monsanto. E o Bispo é sem duvida o arcebispo D. Jorge de Costa. Ainda me parecem certas e correctamente justificadas as identificação de alguns dos homens do governo. O Dr. Ruy Gomes de Alvarenga, chanceler mor, os irmãos Afonso e Gonçalo Vaz de Catello Branco e outros
Considero indiscutível a identficação do homem de barba negra no painel dos frades como frade trinitário. A esse até o nome se consegue dar: frei Pedro Nuno, de sobrenome ‘de Córdova’, conhecido por Pregador mor dos cativos. Correcta também a identificação dos dois frades em baixo no mesmo painel como o abade mor de Alcobaça e o esmoler mor do reino. Justifiquei sempre as identificações que fiz, comparando-as naturalmente com as de outros autores.
Seria ir longe demais insistir nesse aspecto. Não estou a escrever terceiro livro sobre os Painéis. Quis só preparar o terreno para poder ser entendido quando escrevesse sobre um dado que recentemente encontrei e me parece curioso e significativo. Primeiro ainda tenho vontade de contar como interpretei o enigma da corda que se vê aos pés do santo no painel do rei. Foi mais adivinha que pesquisa, mas divertida e que me trouxe uma grande alegria: uma carta com uma informação, que provava que a solução que eu propusera estava certa. Uma muito agradável sensação.

* O infante D, Henrique jurava em Cortes depois de D. Fernando, e, em 1455 jura fidelidade ao recém nascido príncipe D. João, herdeiro do trono, nas mãos do irmão do rei. Em toda e qualquer cerimónia a ordem de precedência era essa: rei, príncipe herdeiro, irmão do rei, tio do rei.
**datado de 1473, quando das Cortes de Coimbra, no qual D. Afonso V delibera “acerca dos estados, assentamentos e precedimentos dos Duques e senhores Condes e pessoas dos seus Regnos” em História Genealógica da Casa Real de António Caetano de Sousa. Tomo V, livro VI de Provas.

2 comentários:

Clemente Baeta 6 de janeiro de 2013 às 17:06  

Cara Dra. Teresa S. de Castello Branco

Permita-me que lhe diga que o meu interesse pelo tema dos Painéis sofreu um novo alento após a aquisição (Março 1994) do seu primeiro livro "Os Painéis de S. Vicente de Fora, As chaves do Mistério". Constatei que a tese, tida como oficial, tinha muitas incongruências e falhas.

A partir daqui foi acompanhando o que de novo ia saindo e o que de velho tinha sido publicado sobre este tema, até que comecei a formular a minha hipótese que culminou com a publicação do nosso livro "Os Painéis em Memória do Infante D. Pedro" que se encontra disponível em www.bubok.pt (pesquisar por “painéis”).

Defendemos nesta obra que os Painéis de S. Vicente de Fora foram executados em memória do infante D. Pedro, cuja imagem tinha sido denegrida pelos seus opositores logo a seguir à subida ao poder de D. Afonso V. Reflecte também o perdão mais tarde concedido por este rei aos partidários e familiares do antigo regente de Portugal falecido na batalha de Alfarrobeira

O facto de termos identificado uma série de indícios e pistas relacionados o Infante D. Pedro levou-nos a esta conclusão. Vejamos alguns:

•O “judeu” onde visualizamos um doutor em leis, beneditino, oriundo da Borgonha que só pode ser Jean Juffroy embaixador enviado pela duquesa D. Isabel com a missão, entre outras, de protestar contra o enterro vergonhoso dado ao corpo de D. Pedro, após o seu falecimento na batalha de Alfarrobeira. Chama-se a ainda atenção para o pormenor do indicador direito daquela personagem estar a apontar precisamente para o seu nome (em latim) no livro “ilegível”. A presença desta figura prova que os Painéis são uma evocação de D. Pedro, não havendo outra justificação para esta personagem estar ali.

•O caixão e o peregrino formam um conjunto cuja leitura nos conduziu também ao Infante: um caixão aberto a significar que apesar dos sucessivos enterros dos seus restos mortais, todos estes foram em vão; um peregrino idoso a simbolizar os anos e as viagens feitos pelos ossos de D. Pedro.

•A decifração no livro aberto do painel do Infante de uma pergunta “quem é o pai?” e a respectiva resposta “o pai…está à direita”, isto é, está a dar indicações ao observador da pintura onde se encontra o pai da rainha D. Isabel (a jovem), que localizamos na personagem com um joelho no chão do painel do Arcebispo.

•Uma proposta, praticamente inédita, para a figura santificada baseada nas cenas e interações que vemos nos painéis centrais

•E outros mais onde se incluem identificações para os seus familiares e apoiantes mais próximos.

A publicação deste trabalho visa contribuir e abrir novas pistas de investigação, de modo a se poder descortinar um pouco mais o mistério que envolve os Painéis de S. Vicente de Fora.

Cumprimentos

Clemente
(www.clemente-baeta.blogspot.com)

Cuper 4 de março de 2016 às 12:46  

Bom dia, Srª Teresa.
Sou brasileiro, professor aposentado e luso-descendente. Gostaria por favor a gentileza de me dizer de que forma poderia lhe mandar uma imagem eletronicamente - a respeito dos painéis de S.Vicente - uma dúvida que tenho desse fascinante tema.
Agradecido, cordialmente.
Cupertino Arrochela Lobo dos Santos.

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