Um Livro Novo

>> quarta-feira, 8 de junho de 2022

     Nos Painéis de S. Vicente de Fora há duas figuras que não têm nada a ver com o tema da pintura. Que obviamente ali foram colocados porque têm importância própria. As duas figuras são o cavaleiro de longas barbas e capacete, e o homem de preto com o livro na mão. Não pode haver dúvida que está ali, não por ele, mas pelo livro que ele apresenta. Porque este livro é um livro impresso. É a primeira representação dessa grande novidade, um livro que não era escrito à mão. Em Portugal esse facto foi sempre ignorado. Passaram 100 anos sobre a descoberta daquelas tábuas no mosteiro de S. Vicente de Fora. Milhares de leitores, de amadores de livros raros, de bibliotecários se debruçaram sobre a figura do homem com um livro, e não houve um que se questionasse sobre aquele livro. Não há cego como o que não quer ver. Não viram o livro, o que interessava era explicar a presença ali de um homem com nítidas feições hebraicas. Pessoalmente nunca duvidei, que o que interessa não é o Homem, é o livro. No meu último livro sobre a questão dos Painéis dediquei um artigo ao homem com o livro que transcrevo aqui.



O Homem com o Livro


Todos conhecemos a Mona Lisa, essa figura de mulher sorridente, que Leonardo da Vinci imortalizou. A senhora tem, debaixo das mãos um pequeno livro. Esse livrinho é tido por ser a primeira representação em pintura de um livro impresso. Não é! A Mona Lisa foi pintada entre 1503 e 1506, e, quarenta anos antes, nos anos 60 do séc. XV, na pintura que conhecemos como Painéis de São Vicente de Fora aparece um homem vestido de preto, que apresenta um livro. É essa a primeiríssima vez, que um livro impresso é representado em pintura.                

Há três livros nos Painéis. Aquele que um dos Santos apresenta a D. Afonso V, no qual se lê ‘livro dos Evangelhos’. Há em seguida, no mesmo espaço, mas no painel do duque de Bragança, o livro que o outro Santo apresenta a D. Fernando, filho primogénito do 2.º Duque de Bragança, e presumível mandatário da pintura. O terceiro livro é aquele que é mostrado por um homem vestido de preto, que figura no painel da gente da Câmara. Não se vê razão para ali estar. O livro não tem nada a ver com o tema da pintura. O homem, de nítidas feições hebraicas, dificilmente se explica em obra, que não seria de altar, mas que era devota. O livro está ali, porque era uma coisa tão rara, tão nova, que o seu feliz proprietário não resistiu à tentação de a mostrar na grande pintura, na qual - debaixo da sua orientação e por sua ordem - se estava então trabalhando. O homem de preto foi decerto ali encaixado quando D. Fernando adquiriu a obra. O livro era essa raridade, um livro em papel. No afastar e dobrar das folhas há a preocupação de mostrar que estas têm a particularidade de se dobrarem daquela forma. E livro em papel, e daquela dimensão, só podia ser um livro impresso. Um exemplar do primeiro livro, que não era escrito à mão, mas impresso com letras móveis. A pintura não podia transmitir, que se tratava de um livro impresso com letras móveis, mas o facto de ser em papel era outra grande novidade. Outro livro da pintura, no qual se lê a frase “O Pai é maior que eu” é obviamente um livro escrito à mão em pergaminho. A rigidez das páginas contrastando visivelmente com a flexibilidade das páginas do outro livro. A generosidade do proprietário ao mandar reproduzir o seu livro na sua pintura iria permitir, que outros pudessem ver como era um daqueles novos livros. Que livro era? Quanto a isso, não pode haver dúvida. Gutenberg imprimio como primeira obra, a Bíblia. Imprimio alguns poucos exemplares em pergaminho e os restantes em papel. Uns e outros em duas colunas, e em letra gótica. O livro dos Painéis é um exemplar da Bíblia de Gutenberg em papel. Alguns exemplares foram impressos em ergaminho, mas a maioria foi-o em papel.





Os primeiros exemplares da Bíblia, anunciados como ‘primeira grande obra da nova Arte’, apareceram entre 1454 ou 1455, e já em 1454, Enea Silvio Piccolomini, enviado do Papa, à Reunião dos Estados do Império (Reichstag) em Frankfurt, escrevia para Roma, que vira umas primeiras folhas da Bíblia que se estava imprimindo segundo a nova arte. A arte da impressão propagou-se rapidamente. Em 1500 já havia no espaço europeu, em cerca de cem localidades perto de mil oficinas de impressão, mas Portugal só teria o primeiro impressor depois, ou pouco antes, da morte de D. João II. Como o homem tem nítidas feições hebraicas, quase todos os prévios investigadores, opinavam que se tratava de um judeu, e que, evidentemente, era - só podia ser - o rabi-mor da cidade. Por que razão ali estaria um rabi, e porque folheava um livro ninguém tentou explicar. Não creio, que se requeiram grandes explicações. O mais provável é que o homem de negro fosse o agente judeu que D. Fernando encarregara de lhe conseguir um exemplar da obra. Talvez um membro de uma das casascomerciais que existiam em Portugal, e que tinham contactos em toda a Europa. D. Fernando queria mostrar o livro, não olhouaos traços fisionómicos do homem que o apresentava

 



Cap.15 O cavaleiro com o capacete. Os retratos de Ruy Siqueira



 Uma outra figura que está fora do contexto, é, como se disse, o cavaleiro de longo cabelo comprido e capacete. O homem de longo cabelo e o seu capacete têm intrigado até senhores que não se ocupavam com os Painéis, e o que particularmente os intrigava era o capacete do cavaleiro. Um cobre-cabeça que tem muito pouco de capacete. O capacete destinava-se a proteger a cabeça do guerreiro dos golpes das armas do seu adversário, e nem com a maior boa- vontade se pode dizer, que o elegante capacete do cavaleiro dos Painéis lhe podia proteger a cabeça. A conclusão lógica é, que aquilo não é um capacete. Nem cristão, nem mourisco como se chegou a dizer. No entanto, parecia muito possível, que aquele cobre-cabeça fosse na verdade de inspiração mourisca ou africana. Sabe-se como as cruzadas influenciaram a moda europeia, e não seria de estranhar, que o barrete do cavaleiro fosse na verdade de inspiração mourisca, ou mesmo, dado os Descobrimentos africanos, de origem africana. E, de facto, é aí, na arte do Benim, que parece estar a solução do cobre-cabeça do cavaleiro dos Painéis.

          No Catálogo II, para a Exposição Europeia de Arte, Ciência e Cultura, Maria Helena Mendes Pinto fez uma apreciação das armas e da indumentária dos Portugueses, reproduzidas em artefactos da Serra Leoa e de Benim, mas não tratou particularmente daquilo que nos interessa, dos cobre-cabeças. Ora, numa figura de tocador de buzina de Benim, conservada em Londres, no British Museum, vê-se um exemplar do chapéu do tipo do barrete rígido, com motivos de bandas horizontais, muito parecido com o que é usado pelo nosso cavaleiro.

Um saleiro de marfim, também do mesmo museu, é cercado na sua base por figuras esculpidas de cavaleiros portugueses, usando cobre-cabeças do tipo daqueles usados pelos mercadores indígenas. Estes artefactos de Benim mostram claramente que, em Africa, os portugueses usaram o cobre-cabeça regional, o mais indicado para o clima da terra. Não havia razão para o ser em Portugal.

Duas outras obras de arte da costa do Benim, duas placas de latão fundido, retratam cavaleiros portugueses. Ambos têm bigode e cabelo comprido, demonstrando que os cavaleiros portugueses, talvez não todos, mas a maioria deles, usavam, em África, cabelo comprido e bigode. E em uma dessas placas temos sem dúvida o retrato do homem de longo cabelo que é representado nos Painéis. Aquele cavaleiro não está ali por acaso, nem por vontade própria, está ali por vontade do mandatário da obra, e por uma razão forte.

Os dados nacionais sobre a ida de Ruy Siqueira aquelas paragens são vagas. Em uma publicação lê-se ‘É-lhe atribuído do Cabo de Santa Catarina (mo extremo oriental de costa de Guiné)…….. não existe certeza relativamente ao ano em que o navegador efectuou a viagem, mas é provável que tena sido em 1474 ou 1475..’ Em outro lado lê-se que Ruy Siqueira ‘alcançou a costa da actual Nigéria em 1472, batizando a lagoa na região de Lagos (Nigéria) com o nome Lago de Curamo, e a cidade com o nome pela qual ainda hoje é chamada, Lagos, possivelmente em homenagem à cidade algarvia de Lagos’.

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