OUVIR LER.

>> segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Um problema de visão, ou antes de falta de visão,, obriga-me a escrever posts mais curtos que não exijam grandes correcções e grandes leituras. Não é mau porque os posts estavam a ser compridos demais.
Este problema teve uma consequência positiva. Descobri os livros lidos por outrem, Não sei como se chamam em português esses benditos CDs que nos dão o prazer de ouvir a leitura de um livro. Sabia que a coisa existia, mas nunca me interessara. Fiz mal. Agora que a necessidade a isso me obrigou, tenho pena de não me ter oferecido esse prazer há mais tempo. É extraordinariamente agradável ouvir um bom texto lido por uma boa voz. Comecei, tenativamente por um romance inglês que tenho em livro, e, em alemão, escolhi uma obra de história. O tema, a acção dos primeiros imperadores alemães no século IX não era fácil, mas a boa dicção do leitor e a clareza da sua voz, facilitaram a compreensão, talvez melhor do que o faria a leitura visual.
O romance inglês que li, ouvindo, foi “I, Claudius” de Robert Graves. Era uma releitura, de livro que a merece. Escrito na primeira pessoa é livro particularmente adequado a ser lido alto, e a voz do leitor, o actor xxxx, que interpretou Claudius na série da BBC fez desta audição uma óptima experiência.
Comecei a formar uma nova biblioteca: de discos lidos. Em alemão e em inglês a escorra é enorme. Os grandes clássicos nas respectivas línguas, os clássicos gregos e romanos, história, filosofia, livros de viagem. Do melhor que há em literatura, lido por vozes escolhidas. Não é preciso estar obrigado a ler com lupa para se apreciar este renascimento de um hábito ancestral, a leitura a voz alta. Leitura que se pode partilhar com um ou mais ouvintes leitores.
Ainda não apurei o que há em português nesta matéria. Espero que as editoras portuguesas não percam este comboio.

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Quando se arrumaram?

>> segunda-feira, 23 de novembro de 2009





Quando desapareceram?
Entre as questões que se têm colocado a respeito dos Painéis uma é se eles sempre estiveram em São Vicente de Fora, se era ao mosteiro que desde o princípio pertenciam ou se lá tinham sido arrumados mas vindos de outra casa religiosa.
Foi questão que não me pus, se estavam nas arrecadações do mosteiro era porque a ele pertenciam e sempre tinham pertencido.
Quando descobri que no mosteiro de São Vicente se veneravam SS Crispim e Crispiniano, e que conclui que os santos que se viam nos Painéis eram eles, qualquer duvida que ainda tivesse, acabou. De momento que todos os anos se realizava uma procissão em honra desses santos e que a procissão ia da Sé a São Vicente, era lógico concluir que haveria aí uma imagem dos Santos que se iam festejar. Os painéis eram pois inquestionavelmente do mosteiro.
A questão que se põem em seguida é quando e porque razão os retiraram do seu local e os arrumaram longe das vistas. Sem prova documental é pergunta para a qual nunca haverá resposta, mas podemos conjecturar. Os gostos mudam, era possível que o políptico chocasse por questões de ordem estética. Mas custa a acreditar que os cónegos de Santo Agostinho fossem tão sensíveis em matéria de arte. Pessoalmente, estou convencida que aquele desaparecimento se deveu a uma questão política, e quando há pouco, fiquei a saber que em 1481, no ano da sua ascensão ao trono, D. João II nomeara prior de São Vicente de Fora a um homem chamado Diogo Ortiz de Vilhegas, mais convencida fiquei.
Diego Ortiz de Vilhegas é uma das mais curiosas, se bem que uma das menos faladas e menos estudadass personagens dos reinados de D. João II e D. Manuel !.
Natural de Calzadilha em Castela, Diego Ortiz veio para Portugal no séquito de D. Joana de Castela, a jovem princesa que D.Afonso V escolhera para sua segunda mulher. Casamento de que não se sabe se foi ou não consumado, e que daria vastos problemas ao reino. D. Joana, era filha de Henrique de Castela e Leon e de D. Joana de Portugal, e seria a herdeira da coroa de Castela se não fosse a fama de não ser filha de D. Henrique, mas de um fidalgo castelhano de nome Beltran de la Cueva. Daí o seu injurioso sobrenome de ‘La Beltraneja. Em Portugal seria conhecida por ‘Excelente Senhora’.
D. Afonso V, tendo reconhecido em Diego Ortiz, acompanhante da sua noiva, um homem de grande saber, nomeou-o professor de latim e confessor de seu filho. Com os anos ele viria a ser muito mais do que isso, tornou-se o principal conselheiro do rei.
Além de latinista e teólogo, veio a ser bispo de Ceuta e bispo de Viseu, e foi autor do primeiro catecismo, Diego Ortiz era cosmógrafo. Nessa capacidade a sua influência foi enorme tanto no reinado de D. João II como no de D. Manuel. Foi em razão dos seus conselhos que D. João II rejeitou as propostas apresentadas por Cristóvão Colombo..
Homem de grande prudência, Diego Ortiz soube ser discreto. Manteve-se sempre na sombra dos dois monarcas a quem serviu, os quais, segundo reza a história, não eram senhores que gostassem de partilhar os louros.
Foi pois a esse homem que D. João II em 1481 nomeia prior de São Vicente de Fora. Cargo que exerceu só durante dois anos. A que se deveu aquela nomeação? As Ordens não gostavam que os reis lhes impusessem as suas escolhas. Estaria o mosteiro em mau estado e necessitado de reforma, e fora essa a razão daquela nomeação? É possível.
Não pretendo afirmar que a nomeação tivesse a ver com a existência dos Painéis. Mas qualquer um que os contemple percebe, que eles deviam incomodar o rei, que este não apreciaria ver-se retratado e à vista de todos, em companhia de Braganças, rodeado deles por todos os lados e isto na ocasião em que estava bem decidido a dar cabo deles. Não seria para fazer sumir os Painéis, que o rei nomeou Diego Ortiz para prior de São Vicente, mas o facto é que o seu nome me fez lembrar o que naqueles anos se estava passando. Pareceu-me impossível que uma coisa não tivesse influenciado a outra.
Recorde-se que aquilo que para nós é um quadro com sessenta caras desconhecidas, era para os contemporâneos um grande retrato onde figuravam pessoas a quem eles podiam por o nome.
Imaginemos que os Painéis continuavam à vista depois da morte do duque de Bragança, que poucos anos depois, um pai leva o seu filho em visita a São Crispim e seu irmão. Saberia explicar ao filho que aquele jovem senhor que ali estava era el-rei . João em novo, que o senhor de joelho em terra que se via na outra tábua, era o senhor duque de Bragança que el-rei mandara degolar. Impossível deixar aquilo à vista.
Não se pode afirmar que assim foi, mas tem toda a lógica que aquilo que conhecemos por “Os Painéis” tenha sido retirado à vista dos fiéis na ocasião - um pouco antes ou um pouco depois – da condenação do duque de Bragança.
Diego Ortiz de Vilhegas ainda não estava em Portugal quando o políptico foi pintado, é possível que o visse pela primeira cez quando entrou para São Vicente, mas se deve ter bastado um olhar para ele ele perceber que aquilo não se podia conservar ali à vista de todos, como naturalmente estava, e que tinha de ser afastado. Quer ele fosse indistriado e nomeado para agir nesse sentido, quer não o fosse e a sua nomeação não tivese nada ver com aquela obra, não é crível que alguém como Diego Ortiz não usasse da sua influência. como prior, e mesmo quando já não o era, para que os cónegos arrumassem o poliptico longe dos olhares do público. O elementer bom senso permite conclui-lo.
Foi o facto, aparentememente tão insignificante, que a tão poucos interessará, que foi a nomeação de Diego Ortiz de Vilhegas para prior de São Vicete de Fora em 1481, que me fez voltar ao caso dos Painéis. Termino finalmente este nova digressão.Aliás perfeitamente desnecessária., dado que o caso foi cuidadosemenre sstudado e que se chegou à concjusão inabalável que o senhor de chappéu é o infante D. Henrique, que os santos são S. Vicente e que o resto são figuras simbólicas.

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Os signos e os símbolos

>> segunda-feira, 16 de novembro de 2009




Quase todos os objectos que se vêem nos Painéis, têm sido considerados como tendo um sentido simbólico, a dúvida sendo qual fosse esse sentido. Belard da Fonseca era da opinião que toda a obra era marcada de “forte carga de simbolismo”. Eu penso que a carga simbólica era tão forte porque se atribuía sentido simbólico a tudo que não se sabia explicar, que se achava um pouco estranho. Via-se símbolismo até no colar de um cavaleiro, na fivela pendente do cinto de outro, e até nas cores de um saio. Em minha opinião nada daquilo era simbólico, assim como não o era o caixão no painel da câmara e o madeiro no painel dos monges.
O livro na mão de um homem, a caixa de madeira junto de outro, eram sinais ou da ocupação, ou do cargo daquele homem. Eram ilustrações, não eram símbolos. Não era um símbolo misterioso a cruz encarnada, quase invisível, no barrete do homem de barba negra. Era um sinal da sua ‘profissão’ de frade trinitário.
Os contemporâneos que contemplassem a pintura. não viam com certeza símbolos naquelas coisas. Sabiam muito bem que o caixão ao lado do homem vestido de burel no painel da câmara era a marca do seu triste cargo como coveiro dos defuntos pobres. Toda a gente sabia que os frades trinitários - que o em de barba negra era - usavam obrigatoriamente uma cruz nas suas vestes, mesmo quando eles, nas suas missões de resgate em terras inimigas, vestiam como os habitantes dos países que visitavam E ninguém ignorava que o madeiro ao lace de frei Pedro Nuno, que todos conheciam como pregador mor dos cativos, e grande valido de el-rei D. Afonso V, era a caixa de madeira em forma de tronco, era uma caixa de esmolas, onde os fiéis deitavam as moedas com as quais contribuíam para o resgate dos cativos pobres..
Dos cinco livros que se vêem nos Painéis, e nos quais também se tem querido ver sentido simbólico, dois são os livros dos santos, e os outros caracterizam os homens que os têm na mão como pessoa ligada a livros. Um deles, no topo do painel dos cavaleiros, é muito provavelmente o cronista Ruy de Pina. O livro na mão de um dos religiosos no painel dos monges também significava decerto que se tratava de alguém ligado a livros, talvez como cronista religioso. No caso do livro apresentado pelo homem de preto no painel da Câmara, aí o que obviamente conta não é o homem, é o livro. No meu primeiro livro sugeri que este livro pudesse ser uma obra impressa, a grande novidade em matéria de livros. Sabe-se que D. Afonso V adquiriu “livros de forma”, e não seria improvável que o quisesse mostrar ali. Uma sugestão, nada mais.
Os observadores contemporâneos da pintura também não achariam nada de estranho e de simbólico nos invólucros de pano preto dos livros dos santos. Era sabido que livros de prece, como aqueles sem duvida eram, se protegiam com capas de pano.*
O que talvez espantasse os observadores, era o santo com o livro debaixo do braço. Sempre me divertiu aquele sem-cerimónia em figura de devoção. Parece-me que estou a ouvir o jovem figurante, perguntando ao pintor, onde punha o livro se tinha que segurar a vara doirada e ainda apontar para o rei, e o pintor respondendo, --põe o livro debaixo do braço.
Verdadeira e indiscutivelmente simbólico naquele conjunto é o molho de cordas aos pés do santo no painel do Arcebispo. Esse molho de cordas. sim, é elemento simbólico. E da maior importância para definir o sentido daquela composição.
Todos os investigadores viram o molho de cordas como elemento fundamental e todos puxaram a brasa à sua sardinha, servindo-se daquelas cordas em apoio das suas respectivas teses. E praticamente todos viam nas cordas um símbolo de prisão do seu herói. Ignorando que era outro o símbolo de prisão. Para xxxx Saraiva aquelas cordas eram as cordas da prisão do infante D. Fernando, para Belard da Fonseca eram as cordas da prisão do infante D. Jaime, e para os vicentistas eram as cordas da prisão de São Vicente.
A todas as sugestões que se fizeram acerca do molho de cordas examinei com atenção, assim como o fizera com as outras atribuições de simbolismo. Agora, que julgo ter encontrado a solução, espanta-me o tempo que dediquei a examinar propostas que sabia serem impossíveis. Tratei a todas com a mesma atenção e respeito como se acreditasse nelas. Não fui correspondida da mesma maneira.
De todas as sugestões feitas acerca daquele molho de cordas, só uma me pareceu ter consistência. Foi a de Afonso de Dornelas, que via no molho de cordas um símbolo de desejo de união. Era uma ideia que tinha lógica, mas não me parecia explicação suficiente.
Não me lembro quando pela primeira vez pensei que aquilo podia ser um rebos. O que sei, é que logo que a ideia me veio, tive a certeza que era disso que se tratava. De um rebos ou talvez de uma empresa. Optei pelo rebos.
Um rebos é, como se sabe, uma adivinha, um jogo que consiste em exprimir uma ideia, um provérbio, por meio de letras, números, objectos desenhados, que, quando pronunciados, produzam o som das palavras ou do provérbio que está por adivinhar. Sendo assim, o que vemos é um molho de cordas ~ que significa união, força - com nós. Solução: A CORDA NOS UNIÃO
Pouco tempo depois da publicação do livro em que eu dava essa solução recebi uma carta do Porto de Helena Correia de Barros. Dizia-me que no Brasil se venerava muito a SS Crispim e Cruspiniano como protectores da união e que eram numerosas as orações que lhes eram dedicadas, pedindo a sua intercessão para esse efeito. Uma das orações era a seguinte:
“Confiante em vosso mérito suplico-vos São Crispim e São Crispiniano união, concórdia e confiança. Possamos nós viver unidos como vós sois unidos, concordes um com outro, confiantes como vós confiais”
E mais adiante “Tudo que for amarrado seja desamarrado, o que estiver cosido fique descosido, o que estiver ligado a meu favor, fique ligado, o que estiver ligado contra mim, fique desligado, pelo vosso poder, São Crispim e São Crispiniano, pelos vossos méritos, pela graça que Nosso Senhor vos deu..”
Penso que a oração confirma a solução que propuz para o problema do molho de cordas. E a oração também contibui para ezplicar os nós ou atilhos que se vêem no painel do arcebispo nos ombros do rei e no do homem de joelhos. No rei, o atilho é em fio de ouro, no cavaleiro em fino cordão preto. São emblemas que exprimem o mesmo espírito que o molho de cordas, e que se podem ler como a este.
Sempre considerei esses atilhos como sinais de participação em determinada função, que, neste caso. com a presença do arcebispo só pode ser religiosa, e que – tudo considerado – só podia ser a procissão de SS Crispim e Crispiniano. Os antos aos quais se pedia união e força.
O homem de joelhos, à esquerda nesse peinel, seria então muito provavelmente o mordomo** da procissão, que naquela ocasião cedia a sua posição ao rei. A vara que o santo apresenta ao rei, sempre considerada como vara de comando, significaria a vara de ‘comando da procissão. A vara era a vara de mordomo daquela procissão.

*A protecção de livros de missa com capas de pano foi hábito que se conservou e ainda persistia em meados do século XX
** Não sei se é exactamente essa a designação, nas aldeias é aquele que ainda hoje se usa. Eu pusera inicialmente a hipótese de o homem ser o condede Odemira. Com algumas duvidas, aliás. Gonçalo da Cunha disse no seu comentário que duvidava dessa minha identificação. Gostava de saber a sua opinião acerca desta.

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Painéis. Figuras Centrais

>> segunda-feira, 9 de novembro de 2009




Quando um acaso me empurrou para dentro da questão dos Painéis, o que verdadeiramente me interessava era a possibilidade da identificação das figuras.
Impossível ficar indiferente perante aquele espantoso retrato de sessenta pessoas, obviamente contemporâneas umas das outras, e obviamente retratados em vida. Que não me viessem com fantasias do infantes D,Pedro, morto em 1449, ali retratado no meio de pessoas vestidas à moda de 1470. E que não me falassem também dessa outra fantasia de piedosa saudade, querendo encaixar ali por força o infante D. Fernando, por ter sido muito bom e ter morrido em cativeiro. As mulheres são realistas, olhei para o retrato com realismo, deixando os saudosismos históricos aos meus predecessores. Também lhes deixava com gosto as suas teorias pré-concebidas, que se achavam na obrigação de defender. Não tinha teoria que pretendesse defender.
O que eu queria era poder dizer: o homem ou a mulher que está ali foi em vida este ou aquela. O que evidentemente só poderia dizer se tivesse chegado a essa conclusão pelo raciocínio lógico, tendo em conta as realidades históricas. Uma conclusão que me satisfizesse, que me permitisse dizer que aquele homem ou aquela mulher eram este ou esta, porque não podiam deixar de ser, porque tudo provava que o eram. Queria-o para mim, para minha própria satisfação. Na altura não pensava em livro sobre a matéria.
A presença de um homem da câmara de Lisboa e a veneração aos santos protectores de Lisboa, marcavam a obra como portuguesa e, em particular, lisboeta, O homem da câmara era importante, mas não era a figura mais importante daquele conjunto. A primeira pessoa era sem duvida o homem de joelho em terra olhando o santo, no painel do Bispo. Bispo, que só podia ser o arcebispo de Lisboa, Naquela posição, estando presente o arcebispo de Lisboa e um vereador da câmara da cidade, aquele homem só podia ser o rei. Ainda admiti contudo a possibilidade de se tratara de outra pessoa de grande posição. Talvez que se tratasse de um dos Grande do reino, que fosse um deles o mandatário daquela obra, e que ali se tivesse retratado com a família. Desisti de imediato da ideia. O homem de joelho em terra, olhando para o santo, era D. Afonso V, o rapaz a seu lado era seu filho e herdeiro, o príncipe D. João. o futuro D. João II. Pelas modas estava-se nos anos de 1469/70
Dei muitas voltas à questão. Não tinha duvida de que quem estava ali no primeiro lugar era o rei, era D. Afonso V, mas queria uma prova concreta. É que, de aquele homem ser ou não ser o rei, dependia a continuação das deduções. Acordei um dia a meio da noite em sobressalto. E se o homem tinha espada como os outros cavaleiros? Nesse caso não era o rei, porque a espada do rei era o condestável quem a levava. Levantei-me, fui verificar. Que alivio! O homem não tinha espada. Em sua frente estava o condestável, segurando com as duas mãos a espada do rei.
Belard da Fonseca escrevera que enquanto não se encontrasse a figura central não se podiam identificar correctamente as outras. Assim é. Só tendo a certeza de quem era a figura central, se podia proceder com outras identificações. Essa figura central estava encontrada, já se podiam fazer identificações.
D. Afonso teria forçosamente a seu lado a sua família mais chegada. Fiz uma lista dos membros da família real, tal como se compunha por volta de 1469, 70. O rei, seus filhos D. Joana e D. João, seu irmão D. Fernando, duque de Viseu, e o Filho mais velho deste, o pequeno D. João, a prima e cunhada do rei, D. Filipa, irmã de sua mulher. E, naturalmente, os primos do rei. O duque de Bragança e seus quatro filhos, D. Fernando, então conde e futuro duque de Guimarães, D. João, marquês de Montemor, D.Afonso, conde de Faro, e o mais novo, D. Álvaro.
Assim como a maioria dos painelistas, quer voluntariamente, por isso ser conveniente à sua teoria, quer por autêntica ignorância, não tomaram em conta os preceitos do culto religioso, assim desprezaram soberanamente os preceitos pelos quais se regia a sociedade medieval. Mas as regras hierárquicas e de precedência que então vigoravam têm de ser consideradas quando se aprecia uma obra medieval. Os Painéis são bem um produto dessa época mesmo que do seu fim, e quando eles se estudam há que ter em conta a mentalidade das pessoas que neles figuram. Aquelas pessoas, e não só as mais importantes, não foram colocadas nas posições que ocupam arbitrariamente ou obedecendo a opções de ordem estética. O seu estado e a sua posição dentro do seu estado determinavam a sua colocação. Determinavam como se sentavam em Cortes, determinavam quem seguia ou precedia quem em reunião familiar publico, como um baptizado, um casamento, E determinavam, naturalmente, a sua posição quando figuravam numa pintura de natureza ‘oficial’ como é o caso do politico.
Em matéria de ordem de precedência, os painelistas, ou ignoravam esse aspecto da questão, ou afirmavam tê-lo em conta, mas arquitectavam teorias fantasiosas sobre aquilo que julgavam saber.
A obrigatória presença do infante D. Henrique não facilitava as coisas. O Infante tinha de estar ali, e mesmo quando já toda a gente se convencera, que ele de facto não ali estava, mesmo então se continuou a deduzir como se ele lá estivesse. Assim, a maioria dos painelistas admitia que D. Afonso V tinha de ser uma das primeiras, se não a primeira figura do políptico, mas não agiam nesse sentido. Cegos com a figura do Infante, faziam deste a figura fulcral, sendo a partir dele que faziam as suas deduções. É evidente que estas só podiam ser erradas. Pasma-se perante afirmações de ordem histórica que visivelmente não foram aprofundadas. Assim, por exemplo, fazia-se passar o infante D. Henrique à frente do duque de Viseu, irmão de D. Afonso V. O que era errado. Como irmão do rei, o duque de Viseu passava à frente do infante D. Henrique.*
Outro erro, e um dos mais crassos, era o de querer ver a D.Isabel, duquesa de Borgonha, na senhora de traje semi religioso no painel dito do Infante. D. Isabel era uma fanática do correcto cumprimento de tudo que dizia respeito a cerimonial e ordem de precedência, e nunca aceitaria figurar numa pintura em posição secundária. A não ser que esta posição, por questões de precedência, fosse de facto a que lhe cabia. Um pequeno livro sobre os costumes da corte de Borgonha, escrito pela filha de uma dama portuguesa da duquesa, é elucidativo e peremptório a esse respeito.
Eu não lera ainda esse livro quando encarei a questão do posicionamento das figuras principais do politico, e ainda não encontrara o documento no qual D. Afonso V estipula a ordenação dos grandes do reino***, mas sabia que a colocação das figuras dos Painéis obedecera forçosamente a regras de hierarquia.
Não sei se o facto de haver dois santos facilitou, se complicou a vida a quem se encarregou de indicar ao pintor a ordem das colocações. Creio que a facilitaria. Poderem-se dar as posições adequadas a todos os figurantes sem ferir as susceptilidades daqueles senhores. O rei e seu filho no painel do Bispo, e frente a eles o irmão do rei, o duque de Viseu. Nas costas do Príncipe, o conde de Faro, terceiro filho do duque de Bragança. Frente ao rei, à esquerda do santo, o segundo filho do duque, D. João, marquês de Montemor, que exercia o cargo de condestável em caso de impedimento de seu irmão mais velho. O que ali sucedia, tendo o filho primogénito do duque de Bragança de ocupa com o pai a primeira posição no outro painel. De joelho em terra, olha o livro que outro santo lhe mostra, e onde se lê muito claramente “O Pai é maior do que eu...eu faço o que o pai me ordena”. O pai, o duque de Bragança, preferiu decerto não estar de joelho em terra, cedendo a honra ao filho. Não sem que isso fosse devidamente notado.
Nesse painel estão as duas senhoras da família, a princesa D. Joana, filha de D. Afonso V e sua prima e cunhada, a senhora D. Filipa, filha do infante D, Pedro.
Foram conclusões a que cheguei, tendo feito a análise individual de cada um dos casos. Justifiquei-os demoradamente no livro que depois publiquei, e ainda ninguém me provou que tivesse errado. Foi a partir da identificação daquelas figuras centrais que tentei identificar algumas das outras. Umas creio que são certas e até indiscutíveis, outras mais duvidosas.
Dentro do grupo da Camila real parece-me certa a identificação do homem de capacete como conde de Monsanto. E o Bispo é sem duvida o arcebispo D. Jorge de Costa. Ainda me parecem certas e correctamente justificadas as identificação de alguns dos homens do governo. O Dr. Ruy Gomes de Alvarenga, chanceler mor, os irmãos Afonso e Gonçalo Vaz de Catello Branco e outros
Considero indiscutível a identficação do homem de barba negra no painel dos frades como frade trinitário. A esse até o nome se consegue dar: frei Pedro Nuno, de sobrenome ‘de Córdova’, conhecido por Pregador mor dos cativos. Correcta também a identificação dos dois frades em baixo no mesmo painel como o abade mor de Alcobaça e o esmoler mor do reino. Justifiquei sempre as identificações que fiz, comparando-as naturalmente com as de outros autores.
Seria ir longe demais insistir nesse aspecto. Não estou a escrever terceiro livro sobre os Painéis. Quis só preparar o terreno para poder ser entendido quando escrevesse sobre um dado que recentemente encontrei e me parece curioso e significativo. Primeiro ainda tenho vontade de contar como interpretei o enigma da corda que se vê aos pés do santo no painel do rei. Foi mais adivinha que pesquisa, mas divertida e que me trouxe uma grande alegria: uma carta com uma informação, que provava que a solução que eu propusera estava certa. Uma muito agradável sensação.

* O infante D, Henrique jurava em Cortes depois de D. Fernando, e, em 1455 jura fidelidade ao recém nascido príncipe D. João, herdeiro do trono, nas mãos do irmão do rei. Em toda e qualquer cerimónia a ordem de precedência era essa: rei, príncipe herdeiro, irmão do rei, tio do rei.
**datado de 1473, quando das Cortes de Coimbra, no qual D. Afonso V delibera “acerca dos estados, assentamentos e precedimentos dos Duques e senhores Condes e pessoas dos seus Regnos” em História Genealógica da Casa Real de António Caetano de Sousa. Tomo V, livro VI de Provas.

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2º coloquio. A miniatura

>> segunda-feira, 2 de novembro de 2009





Pouco tempo depois do primeiro, o Museu de Arte Antiga organizou um segundo colóquio sobre o tema dos Painéis. Desta vez tratava-se de apresentar a descoberta feita pelo doutor Jorge Almeida da assinatura de Nuno Gonçalves.
O doutor Jorge Almeida surgira para o problema dos Painéis com a publicação do meu primeiro livro. Tendo conseguido obter o meu número de telefone, falou-me, convidando-me a almoçar com ele - em restaurante à minha escolha – para ele me expor o que era a opinião dele sobre os diferentes problemas. Agradeci o convite, mas não o conhecia, e quanto aos Painéis, escrevera o que tinha a dizer, e dava o assunto por terminado. Com notável persistência, o doutor Jorge insistiu com sucessivos telefonemas, desafios para debates públicos etc e um dia tentou entrar em minha casa, e tive de lhe fechar a porta na cara.
O que não conseguiu comigo, conseguiu com os média. Apareceram artigos ditados por ele, fomos informados de que o Dr. Jorge resolvera os problemas dos Painéis e até de que havia uma declaração subscrita por nomes importantes do nosso meio intelectual, como Augustina Bessa Luís, António Lobo Antunes, João Lobo Antunes, Marcelo Rebelo de Sousa, e outros, em que se lia que o Dr. Jorge tinha toda a razão e dizia muito bem. O Museu de Arte Antiga encantou-se com o Dr. Jorge, tinha um novo paladino da tese vicentina e gonçalvista. E um dia soube-se, que o museu organizava novo colóquio. Desta vez para que o Dr. Jorge Almeida pudesse fazer uma importante revelação: a descoberta da letra N de Nuno Gonçalves no sapato do rapazinho, no painel dito ‘do Infante’.
Obtinha-se essa visão virando a respectiva tábua de eerta maneira, creio que de pernas para o ar. Confesso que me deliciava a visão de director e conservadores do Museu de Arte Antiga, de cócoras, ou empoleirados em escadote, constatando sob a batuta do Dr. Jorge, a presença do N de Nuno Gonçalves no pé do rapazinho.
É sabido, que houve artistas medievais, que caprichavam na colocação de inscrições alusivas nos seus quadros. Mas não há memória de que a inscrição, uma vez encontrada, não seja legível olhando a pintura de frente. Ter de a virar de lado ou de pernas para o ar para descobrir o N de um pintor pareceu-me surrealista.
Sendo pouco provável que o museu permitisse, que me virassem a tábua em questão da forma adequada, contentei-me com o fazer em casa com a fotografia do sapato, e constatei aquilo que no Museu se devia ter visto antes de se adiantarem em colóquios.
Desta vez, talvez por se tratar de tão triunfal colóquio, eu fora convidada a assistir, e o director do Museu perguntou-me se eu queria dizer alguma coisa. Respondi que sim, o que ele, jovialmente comentou com estas palavras: “Desta vez, como vê, deixo-a falar” Agradeci e quando me chamaram, disse rapidamente o que tinha sido a minha investigação dos problemas dos Painéis e que, quanto ao tema do dia, estudara-o com muita atenção e tinha dizer o seguinte: a letra N compunha-se, como era sabido, de dois traços paralelos, ligadas por um traço diagonal vindo do topo da coluna da esquerda para o sopé da coluna da direita. O signo, que, segundo o Dr. Jorge Almeida, se conseguia ver no sapato do rapazinho, e que segundo ele, seria o N de Nuno Gonçalves, não era o N que nós conhecíamos, já que se compunja de dois traços, ligados por uma diagonal que ia do sopé da coluna da esquerda para o topo da coluna de direita. Era letra ou signo que não existia no alfabeto.
Não me lembro de ter recebido resposta, a sessão continuou com o programa agendado, uma comunicação que incluía a transmissão de fotografias agrandecidas dos Painéis. E como tudo aquilo era extraordinário, deu-se então o seguinte episódio. Na escuridão, agachando-se para não encobrir o ecrã, aproximou-se de mim uma figura da qual não consegui distinguir as feições. Vinha dos bancos do museu, e entregou-me um bilhete. Quando se fez luz, li o bilhete. Era acusada de ter plagiado uma determinada autora. Li alto o bilhete, acrescentando o que tinha a dizer sobre a acusação, e ainda que o bilhete, não assinada, viera dos bancos do Museu. Nessa altura levantou-se um rapaz, pediu a palavra, e declarou querer participar um curioso facto sucedido com ele. Ele tinha uma pequena revista de arte destinada a um publico juvenil. A revista sempre se vendera na loja do Museu. Mas o ultimo número fora rejeitado, com a explicação que na revista, ao falar dos Painéis, se usara as identificações de Teresa Castello Branco, o que era proibido. O livro dela também não se podia ali vender.
E assim terminou um segundo colóquio organizado pelo Museu de Arte Antiga em prol do estudo histórico-cientifico da sua peça mais valiosa, os painéis de São Vicente de Fora.
Passemos a tema mais interessante e mais limpo: o caso da ‘miniatura do Infante’.
O erro ‘do retrato do Infante’ é coisa muito diferente do “erro” da tese vicentina. No caso da miniatura houve de facto um erro, mas um erro muito compreensível. Interpretou-se erradamente um dado que, à primeira vista, parecia indiscutível.
Em 1837 descobrira-se em Paris um retrato do infante D. Henrique. A Europa vivia então a febre de querer saber. Também queria saber como era aquilo “lá fora”. Ia-se lá fora em simples viagem de turismo, ou em viagem de exploração. Um jovem francês chamado Ferdinand Denis, fora às terras do Brasil, ganhara interesse pelos descobrimentos e as explorações dos portugueses e, nesse contexto, consultara. no fundo de manuscritos da Biblioteca Nacional de Paris, aquilo que se relacionasse com Portugal. Deu com um manuscrito intitulado “Crónica do Descobrimento e Conquista da Guiné” de Gomes Eanes de Zurara. Falou do seu achado ao visconde da Carreira, então o ministro de Portugal em França, homem culto, que tratou de divulgar o achado. Interessava provar a primazia dos descobrimentos portugueses, e a crónica foi usada sobretudo nesse sentido. Daquilo que Zurara contava, pouco se falou. Do que se falou foi de uma miniatura que a obra continha. Uma miniatura representando um homem de grande chapéu preto e tendo em baixo a divisa do infante D. Henrique. Um retrato do Infante, portanto.
Quando em 1883 se descobriram em S.Vicente de Fora as tábuas onde se via um homem idêntico ao que se via na miniatura, ninguém duvidou que se tratava da mesma pessoa, que aquele homem era o Infante. O homem da miniatura era um pouco mais novo que o dos Painéis mas era sem duvida o mesmo homem. Só muito mais tarde se perceberia que esse homem não era o Infante.
Quando a duvida nasceu, já era tarde para fazer meia volta, nem interessava fazê-la. O Infante D. Henrique adquirira as feições do homem da miniatura e dos Painéis.
Em 1937, cem anos depois da sua descoberta, publicou-se finalmente a crónica de Zurara, e a descrição que Zurara nela dava da pessoa do Infante era a de um homem muito diferente do homem da miniatura. Descrevia-o assim: ”Este nobre príncipe havia a estatura do corpo em boa grandeza e foi homem de carnadura grossa e de longos e fortes membros, a cabeladura havia um tanto levantada, a cor de natureza branca, mas pela continuação do trabalho por tempos tornou-se de outra forma. Sua presença de primeiro sguardo aos ousados era temerosa”-
Mais tarde Dagoberto Markl notaria ainda a diferença que havia entre o homem de chapéu grande e a figura jacente do Infante D. Henrique no seu tumulo.
Os testemunhos dos túmulos são muitas vezes esquecidos como fonte documental. Talvez por se imaginar que os artistas que esculpiam os túmulos usavam da sua própria imaginação e fantasia para tudo, inclusive as figuras jacentes dos mortos. Ora com a morte não se brincava. O morto devia ser recordado o mais fidedignamente possível. O escultor seguia as instruções que lhe davam e procurava transmiti-las da melhor forma. Quando não podia reproduzir a figura exacta do homem ou da mulher que jaziam no tumulo, dava-lhes atributos que os caracterizassem, ou mesmo alguma indicação sobre a sua vida e morte. Os túmulos de D. Pedro e D. Inês, frente a frente, são tão expressivos do seu amor, como é expressiva da causa da sua morte a representação de uma criança sendo violada, que se vê em Odivelas em um dos pés do tumulo de uma pequena filha de D. Diniz. E ningém pode duvidar que D. Isabel de Portugal, mãe de Isabel a Católica, era uma ávida leitora, vendo-a de livro na mão imersa na leitura no seu tumulo na Cartuxa de Miraflores.
O Infante D. Henrique estava representado no seu tumulo tal como fora. E exactamente como Zurara o descrevera.
Estes dois testemunhos – texto de Zurara e tumulo - deviam ter sido suficientes, mas só a peritagem que se fez à miniatura é que convenceu e transformou duvida em certeza. O homem de chapéu grande não era o Infante.
O exame da miniatura revelara, que esta tinha um vinco, ou seja, que, em tempos, fora dobrada e que não fizera sempre parte do manuscrito com o texto de Zurara. Provou-se também que a divisa fora pintada em cima do vinco, era portanto posterior ao original, e mais, que a sua ortografia não correspondia à da divisa do Infante. Uma pequena, mas significativa diferença. O Infante escrevia “Talant de bien fere”, e na divisa da miniatura lia-se “talant de bien faire”- Além disso, era sabido que a verdura que o Infante tinha na sua empresa era de carrasqueira, enquanto aquela que se via na miniatura era de folhas e bolotas de azinheiro e sobreiro.
Destas e ainda ousaras anomalias e o que elas significam sabe-se há mais de cinquenta anos, mas mesmo depois de os factos se saberem, os investigadores continuaram a fazer identificações a partir da figura do homem de chapéu preto como se do Infante se tratasse.
Ora que o Infante tenha tido a pele clara e cabelo loiro e fosse forte e de ombros largos, ou de ombros estreitos e cabelo liso e preto, não tem grande importância, nem hoje se pode e pretende mudar. Mas deve ser permitido àqueles que querem saber “como as coisas na verdade eram” (Ranke), que a essas seja permitido fazer as suas investigações a partir do facto de no homem de preto se tratar de outro homem do que o Infante.
O Dr. Fernando Baptista Pereira declarou no primeiro colóquio que a investigação iconográfica não tinha grande importância, que aquilo de qualquer modo era tudo simbólico. Opinião sua. Em minha opinião rata-se de um grande retrato de pessoas históricas e contemporâneas umas das outras.. Pessoas às quais naturalmente gostaríamos de dar os seus nomes. Nomes autênticos, racionalmente encontrados, não fantasias. Foi isso que tentei fazer e que, até certo ponto, penso ter conseguido. De como procedi, e de que raciocínios usei, procurarei dar conta no próximo post.

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