Livros que foram de Afonso de Torres. Porquê Tácito?

>> segunda-feira, 28 de setembro de 2009





Volto de novo ao inventário dos livros que foram de Afonso de Torres, porque dei um pequeno passo em frente que julgo poder interessar. .
Trata-se, como escrevi num post anterior, de decifrar o inventário dos livros deixados pelo dito Afonso de Torres. e por eles avaliar que tipo de obras literárias eram lidas por um português culto na primeira metade do século XVII. Para o que era preciso conseguir ler o inventário dos livros que o homem deixara. Só que, como então escrevi, se estava praticamente face a uma adivinha, ou antes uma série de adivinhas, já que o avaliador dos livros não se dava ao trabalho de especificar correctamente a obra, e menos em soletrar algum título mais difícil. Dizia um nome, ou um título, que para ele definiam perfeitamente de que obra se tratava, e indicava o valor em que a avaliava. O valor é que interessava. O escrivão, que anotava as palavras do avaliador e nada devia saber de livros, escrevia o que lhe parecia ter ouvido.
Durante anos não tive paciência para me meter a resolver aquelas adivinhas. Ultimamente decidi pegar no inventário, pareceu-me que o trabalho de o decifrar e depois interpretar podia interessar e merecia ser feito.
Alguns livros já foram identificados, uns por mim, outros por Paulo Achmann, amigo bibliófilo, a quem pedi ajuda e outro por Gonçalo da Cunha, que entrou no jogo.
Para dar um exemplo desta colaboração mostro aqui como se identificou o primeiro livro do inventário.
“Viagem Dermundo de sevalhos”. lê-se nele.
Eu procurei por: ‘viagens em torno do mundo (dermundo)’, e cheguei a bom porto. O livro é: “Historia y viage del mundo del clerigo agradecido don Pedro Ordoñes de Zevallos … a las cinco partes de Europa, Asia, Africa, America y Magalanice. Contem 3 libros” Vasconso, José ed. Juan Garcia imp. Madrid 1614
Paulo Achmann foi por: ‘sevalhos’.
--Chegar lá, escreve ele, --não foi tão fácil como parece, porque sem o "Ordóñez" recusava-se a aparecer. Mas acabou por aparecer.
Outra adivinha era esta:
“Primeira parte del par nosso de ouvidio”
Paulo Achmann declarou-se derrotado: --Primeira parte del pai nosso de Ouvidio? Que diabo (releve-me a incontrolável linguagem blasfema) é que o Ovídio tem a ver com o Pai Nosso ?
A solução veio no comentário de Gonçalo da Cunha. “Primeira parte del pai nosso de Ouvidio” era, escreveu ele, “Primera Parte del Parnaso Antartico de Obras Amatorias con las 21 Epistolas de Ovidio, Sevilla 1608.
E que dizer da obra denominada “A contersia de Justiça Luso”?
Dessa identificação glorifico-me eu. Gonçalo da Cunha perguntou-me a dada altura se eu já descobrira o que era esse ‘A contersia de Justiça Luso’.
A minha primeira resposta foi que ainda não o conseguira, mas a pergunta acordou-me, voltei à adivinha e pude responder ao Gonçalo.
“Justiça Lusa” era provavelmente o nome do autor do livro e não o seu título. Os meus conhecimentos de alemão levavam-me a pensar que o “Justiça” podia ser o nome Justus, nome então bastante usado na Alemanha.
Consultei uma lista dos livros que pertenceram a um grande bibliófilo espanhol contemporâneo de Afonso de Torres. Encontrei “Justus Lipsius filólogo e humanista... fue el autor de una serie de obras que pretendían recuperar la antigua corriente filosófica conocida como estoicismo en una forma que fuera compatible con el cristianismo…….La más importante de dichas obras fue De Constantia.” Que deu a “contersia” do escrivão.
E passo ao título deste spot: Porquê Tácito?.
Afonso de Torres tem várias obras de Cornelius Tácito. Os meus dias não costumam estar ocupados com Tácito, mas dá-se o caso de ultimamente ter lido mais de uma vez o seu nome. E a razão é esta:
Há dois mil anos, no dia 9 de Setembro do ano 9 depois de Cristo, deu-se no norte da Germânia, na floresta de Teutoburg, uma batalha em que Roma perdeu três das suas legiões, As forças romanas eram comandadas por Quintilius Varus, as germânicas por Arminius, chefe de Cheruscos.
“Suetonius escreve que o imperador Augusto deixara crescer cabelo e barba em sinal de luto e que, quando recordava o desastre, exclamava ‘Varus, Varus dá-me as minhas legiões’.”*
,Ainda hoje se discute a exacta localização e o decorrer de uma batalha que foi decisiva para a história da Europa, e o tema apaixona arqueólogos e historiadores.
A batalha, que estava praticamente esquecida, veio de novo à memoria europeia em meados do século XV quando se descobriu no mosteiro de Hersfeld na Alemanha um pequeno manuscrito intitulado “De origine et situ germanorum”. O autor latino era Publius Cornelius Tacitus e falava dessa batalha.
Ignora-se como sucedeu, mas em 1455 o manuscrito foi parar a Itália e em 1470 era impresso em Veneza. Em 1473 era impresso na Alemanha.
Eu acabara de ler três obras, duas alemãs e uma de um autor americano sobre essa batalha e em todos eles se cita Tácito. Não é pois de estranhar que, imersa como estava no assunto e em Tácito, eu tivesse, ao pegar de novo no inventário, identificado o “Cornelius Tácito” de Afonso de Torres, com àquele livro de Tácito que eu conhecia, ou seja com o “De origen... Germanorum”.
Estranhei contudo que houvesse outros livros de Tácito. Um deles intitulado “Cornelius Tácitus Aforismos”, outro intitulado “Cornelio Tácito Espanhol 600 rs”.
O que tinham aqueles títulos a ver com o “De origen-----Germanorum”? E porquê tanto interesse espanhol por Tácito? Foi procurando esclarecer esta duvida, que pela primeira vez soube da existência de uma corrente de ideias designada por ºtacitismoº, e que um dos seus principais expoentes fora Baltasar Álamos de Barrientos (1555 – 1640) com o seu “Tácito Español illustrado con aforismos” (Madrid, 1614).
Não era ºpois do ‘De origen .... Germanorumº, e não era da batalha de Teutoburgo que se tratava nas obras que se encontravam na biblioteca de Adonso de Torres. Tácito fora autor de outras obras, e era dessas suas obras que os tratadistas espanhóis se estavam servindo nas suas argumentações, e eram os livros deles que Afonso de Torres tinha.
Na Net, e não, como esperava, na minha ‘Historia de la Literatura Española’, encontrei um artigo que me esclareceu. É da autoria de Elena Cantarino e intitula-se “Tratadistas politico-morales de los siglos XVI e XVII”
“A moralidade ou imoralidade dos meios usados pelos governantes para conseguir os seus fins políticos era assunto que ocupou o pensamento politico na Europa”, escreve Elena Cantarino .
O tema nascera com Maquiavel e, ao discorrer sobre a ética na politica, na “Razão de Estado”, as opiniões devidiam-se. Havia várias escolas de pensamento: a escola eticista, a idealista e a realista.
Os primeiros, anti-maquievelistas, repudiavam “a irreligiosidade e o amoralismo na política, que julgavam ver na doutrina de Maquiavel”.
Outros não atacavam a tese de Maquiavel, mas “criticavam, mais ou menos veladamente, as consequências negativas da sua doutrina…”
É com esta corrente que se introduz a Tácito, e que “se assumem indirectamente propostas que têm sido consideradas por alguns como maquiavelistas e por eles designados por ‘maquiavelismo encoberto’ ou ‘camuflado’. Os autores que defendiam essa corrente eram tratados de realistas ou de ‘tacitistas’.”
E mais adiante:
“Tácito era a figura que a maioria dos ‘realistas’ tomaram como modelo, como fonte de inspiração e de admiração. Descoberto no Renascimento (as suas obras foram impressas em 1458) foi no entanto a edição de Justo Lipsio (1574) que permitiu que o autor clássico se convertesse no grande mestre da razão de Estado. Sem duvida que o seu estilo aforístico e a sua forma de ‘enfocar” a política com imoralidade fizeram com que a sua obra reunisse as condições essenciais para agradar ao gosto do barroco. “
Entre os autores da primeira escola, a idealista, Elena Cantarino cita Juan de Mariano e Francisco de Quevedo, dos quais há livros no inventário de Afonso de Torres. Mas é de autores da terceira escola, a realista, que ká identificámos mais obras. Entre elas as de autores como Justus Lipsius, do citado Baltasar Álamos de Barrientos com o seu “Tácito Español illustrado con aforismos…”, e, “altough last, nor least”, das obras do próprio Tácito.
Afonso de Torres estava natiralmente interessado na magna questão da “Razão de Estado” e da sua ºetica, e, considerando os seus livros já identificados, parece ter sido adepto da escola “realista” ou “tacitista”.

*Peter S. Wells The battke that stopped Rome. Emperor Ausgustus, Arminius and the slaughter of the legions in theTeutogurger Wald.

Observações à margem
Há ainda muitas obras por identificar. Agradeço qualquer sugestão quanto a:
“Tragicomédia dos apóstolos”
“Filosofia de meya”
“Os quatro novíssimos de Rolim”

2 comentários:

Paulo Achmann 28 de setembro de 2009 às 14:48  

Os quatro novíssimos de Rolim são certamente "Os Novíssimos do Homem", poema em 4 cantos de D. Francisco Rolim de Moura, com 1ª ed. de Lisboa, Pedro Craesbeeck, 1623.
A "Filosofia de meya" deve ser a "Filosofia Secreta", de Juan Perez de Moya, publicada pela 1ª vez em 1585, e com várias reedições nos sécs. XVI e XVII.
Quanto à "Tragicomédia dos Apóstolos" ... nenhuma pista !!
Fantasiando, posso imaginar que se trate da "Tragicomedia Pastoril da Serra da Estrela", do Gil Vicente, ou do "Pastor Fido, Tragicomedia Pastoral", que o inventariador tenha ditado como "Tragicomédia dos Pastores" e o escrivão tenha percebido "dos Apóstolos" ...
É uma explicação fraca, bem sei, mas não consegui encontrar nenhuma referência a essa obra.

Theresa Castello Branco 1 de outubro de 2009 às 18:15  

Por avaria no meu Net só hoje agradeço o comentário. Do Rolim tenho vergonha de não ter encontrado, ao Moya/Meya tinha considerado. Quanto aos Apostolos/pastores acho que o escrivão escreveu maiores disparates. Mas ainda ponho de molho. Obrigada e abraço Theresa

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