De livros de cozinha. Mais ou menos onhecidos.

>> segunda-feira, 7 de setembro de 2009



Não posso dizer que coleccione livros de cozinha, mas entre portugueses, alemães e, evidentemente, franceses, tenho um razoável número deles. Muito mais porque me divertem do que por ser uma grande cozinheira. Dos portugueses mais antigos tenho o “Livro de cozinha da Infanta D. Maria”, e o “Arte da Cosinha” de Domingos Rodrigues. Não o de 1680, mas uma modesta edição de 1844. Tenho um livro intitulado “Arte do Cozinheiro e do Copeiro” , “compilado dos melhores autores” entre outros do “Livro de Campo de madama Aglae Aubuysson” e oferecido ao publico português (em 1845) por “Um Amigo dos progressos da Civilização”, sendo as receitas na sua maioria acompanhadas de observações do tradutor. Tem um “Aditamento” deste com receitas suas para “conservação da saúde”, outro sobre “comida de pobres” com receitas adequadas a quem se encontrasse nessa condição – e pudesse comprar o livro – e, por fim, três páginas de estampas, uma com os necessários utensílios de cozinha, e duas ilustrando a forma de por a mesa e nela colocar as inúmeras iguarias entre as quais os comensais podiam escolher. Não se servia prato por prato, estava tudo em cima da mesa.
Já dos fins do século XIX, princípios de XX tenho a segunda edição de “O Cozinheiro dos Cozinheiros” de Paul Plantier, e, de Carlos Bento da Maia, os seus “Manual da Cozinha e da Copa” e “Tratado completo da Cozinha e da Copa”. Depois, afirmando-se nos anos vinte entre os homens, o querido “Isalita”, seguido do Oliboma de António Oliveira Bello e o seu “Cozinha Portuguesa”.
Perdido entre os mestres, está um livro, o qual, como se lê nos alto das páginas, se intitula “Cozinha Portuguesa”, mas do qual não conheço nem o autor nem a data da publicação. Livro de cozinha que se presa, tem fatalmente sinais de uso, tem nódoas de gordura, tem folhas marcadas, tem observações nas margens, mas não precisa de estar em tal estado que não se consiga perceber quem é o seu autor. Que é o que sucede com este. A dada altura caiu-lhe a folha da capa, e foi encadernado – mal – sem ela.
Uma abastada senhora do Porto, a quem a minha mãe um dia gabava uma bonita jóia, respondeu, que tinha “muitas e variadas, mas aquela era das que mais apreciava”. Pois, parafraseando a dita senhora, eu posso dizer daquele livro sem capa, que tendo eu, de livros de cozinha “bastantes e variados”, este é dos que mais aprecio.
O autor -- naturalmente apreciador daquilo que descreve nas suas receitas -- acompanha estas de observações e recomendações e muitas vezes termina ainda com um pequeno comentário:
Sopa de ervilhas à Corte…. “É coisa fina”
Sopa de lampreia …. “Esta só para dias de festa”
Sopa jantar…”Um prato desta sopa é um excelente jantar para uma excursão ao campo”
Sopa do Alentejo ….”Com pouco mais, estamos jantados”.
Sopa de regalar ...... “ o título é o próprio”
Sopa de abóbora…..” Segue para o estômago direitinha, e às vezes repete-se”
Sopa verde ....”boa sopa , não há duvida!
Batatas douradas….É a verdadeira batata para jantar lauto”
Nabos à moda ……” É prato fino”
Ervilhas salteadas ....”Quem prova, come e pede mais”
Grãos com azelgas…..”É para repetir, creiam”
Bacalhau cozido.... “E vamos ao bom bacalhau cozido, que é muito sustentável. De mais: o peixe é pouco, nem todos lhe podem chegar”
Bacalhau à Alentejo... “Estando bem feito, é expendido”
Bacalhau namoradinho.... “ vamos a comê-lo, que é bom petisco”
Lapas de arroz.....”Raras vezes se apanha este petisco”.
Salsichas de carne de porco…..”É bom bocado para estômago forte”
Coelho no espeto …..”Não é nada mau”
Lebre guisada à montanhês…..”É petisco para poucos, por falta de matéria prima”
Croquetes de coelho….. “Servem-se com uma guarnição de ramos de salsa frita”
Almôndegas à portuguesas….”Recomenda-se por patriotismo”
Almôndegas de família …”Todos repetem, diz a autora, muito ufana e com razão”
Trouxas de carne ....“São boas estas trouxas, não há duvida”
e por aí fora.
Os bolos e doces têm também observações, mas poucas, a doçaria devia ser menos apreciada pelo autor, encontrei só:
Fatias de ovos.... É sobremesa deliciosa”
Cenouras raladas...... “Há muitos que apreciam este doce”
Biscoitos acamados....”Além de serem de um belo aspecto, são muito saborosos”
Broinhas de ovo...”são deliciosas ficando bem feitas”
Biscoitos de Coimbra ... “têm sido muito apreciados”.

Tenho a mania de desvendar – ou de querer desvendar - enigmas bibliográficos (e outros) , e gostaria de solucionar mais este. Quanto a data, diria que é da segunda metade do século XIX, e quanto a autoria pareceu-me ser boa pista o facto de o autor, que nunca gasta mais de 10 a 20 linhas numa receita, dedicar duas páginas e meia aos “bolos de Verride” e seu fabrico. Acho que quer dizer qualquer coisa quando um homem, que gasta seis linhas com broinhas do Algarve, seis ou sete com biscoitos do Minho e de Coimbra, quatro linhas com torradas do Porto, precisa de duas páginas e meia para nos revelar o segredo do fabrico de bolos de Verride -- misturava-se tudo muito bem e amassava-se “com violência” durante uma hora pouco mais ou menos, e mais tarde dedicava-se-lhes outras duas horas de amassadura, com a mesma violência – acho, repito, que isso quer dizer qualquer coisa. Bem sei que os ditos bolos duravam muito tempo em boas condições, que mesmo duros, quando aquecidos no forno, ficavam como novos, que cortados em fatias torradas com manteiga eram magníficos e “deliciosos quando comidos com amêndoas à sobremesa”. Pois mesmo assim....
Em resumo, convenço-me que só um habitante dessa vila, ou vivendo nas suas vizinhanças, dedicaria tantas linhas a bolos de Verride.
Fui consultar o meu Pinho Leal, “Portugal Antigo e Moderno. Dicionário geográfico, corográfico, horográfico.......etc de todas as cidades, vilas e freguesias de Portugal e de grande número de aldeias.....” para ver se entre o manancial de informações que o senhor Pinho Leal consegue apurar e fielmente transmite, ele teria alguma coisa a dizer sobre algum natural de Verride dedicado à gastronomia. Nada. Fala é verdade de ter habitado em Verride o senhor Jerónimo Pereira Vasconcelos, que fora marechal de campo, e como há várias receitas para serem feitas “em campanha” e uma “á militar” talvez seja uma indicação. Mas é pouco, só os meus instintos detectivescos sentem que há ligação do desconhecido autor a Verride.
Não é no entanto unicamente por curiosidade bibliográfica que eu gostaria de conhecer o nome do autor. A principal razão é o facto do seu livro se distinguir totalmente de outros livros de cozinha daquela época. Em todos se nota uma qualquer influência francesa. italiana ou outra, e no caso do meu incógnito isso não se dá. As suas receitas são puramente portuguesas. E, o que também é excepcional, é evidente que não se destinavam a gastrónomos abastados. Há vários pratos ‘à estudantina’, coisas simples de preparar e várias receitas que, segundo o autor, até os pobres se podiam oferecer.
O livro tem outra originalidade: uma segunda parte em que o autor dá conselhos de ordem moral e prática aos seus leitores. São pequenos capítulos intitulados respectivamente: “Modo de bem viver – preceitos” com poemas de Simões Dias e João de Deus; “A nossa habitação – preceitos”; “A água –preceitos”: “A nossa alimentação – preceitos; “O nosso vestuário – preceitos” e, por fim, “Preceitos diversos” em que ensina aos leitores desde a forma de combater a insónia até à maneira de “fazer tinta de escrever que não deixe resíduos e não altera as penas metálicas”.
Se alguém entre os leitores deste blogue conhecer o nome deste autor, e me informar, fico-lhe muito grata.

Observações à margem
A 17 de Julho de 1894 D. Isabel Saldanha da Gama (dama da rainha D. Amélia e que foi dona do referido livro anónimo), escrevendo do Paço da Pena a umas sobrinhas que estavam na Madeira, contava-lhes o seguinte almoço:
"Ontem tivemos almoço ao ar livre feito por nós, e óptimo.
El-Rei encarregou-se da sopa de peixe, óptima. Marquês de Fronteira fez uns excelentes ovos mexidos e bifes de cebolada; eu fiz um risotto que foi considerada a obra prima do almoço e aproveitei um picado para embrulhar em ovo com feijão carrapato e ficaram umas óptimas frituras. Maria de Meneses fez ovos moles muito bem.”

2 comentários:

Anónimo 22 de dezembro de 2009 às 16:56  

Nova loja/blog de :
http://tralhasvelhariasantiguidades.blogspot.com/2009/12/livrosbooks-novissima-arte-de-cozinha.html

Ana Silva 6 de setembro de 2010 às 14:30  

Sou uma trineta de Jerónimo Pereira de Vasconcelos e tenho um vago projecto de, um dia, escrever uma história baseada numa neta deste, a minha tia avó Josefina.
Projecto e muitissimo vago, mas que me levou a pesquisar o meu trisavô no "google", pesquisa essa que, por sua vez, me conduziu ao seu blogue.
Achei muito curiosa a sua intuição, porque
em casa dos meus avós na Abrunheira(perto de Verride) havia um livro "As prisões de Castilho Barreto", no qual o autor (que era irmão do Feliciano de Castilho) conta como ele e o meu trisavô, enquanto presos no forte de Elvas, fizeram "fatias de parida" para se alimentarem!
Não sei se o livro refere as "fatias de parida", mas se o faz, os seus instintos detectivesco são melhores que os do Hercule Poirot e da Miss Marple, em conjunto!

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