LEITOR E AUTOR. Temos de simpatizar com o autor?

>> segunda-feira, 14 de setembro de 2009




Num mundo ideal o leitor abre o livro, lê-o, gosta dele - muito pouco ou nada - e a sua apreciação não é influenciada pelo facto de gostar muito, pouco ou nada do autor da obra. Mas o mundo não é ideal, e pergunto-me por vezes, se o facto de o leitor gostar, ou não gostar, da pessoa do autor do livro que está lendo, pode afectar a apreciação deste.
A pergunta surgiu de novo agora que me preparava para escrever sobre livros de viagens nas nossas terras, e um dos autores que pretendia citar é personagem com quem não simpatizo.
Em alemão leio com gosto as “Wanderungen” de Theodor Fontane no Brandenburgo. ‘Wandern’, é uma palavra para a qual não há tradução em português, em inglês fala-se de ‘rambling’, significa percorrer o pais, ou uma região dele, em geral a pé, por prazer, para gozar da natureza, para contemplar, pensando.
Do mesmo género tenho em inglês o livro de Steinbeck ‘Travels with Charley in Search of America’ , que não é outra coisa o que uma ‘Wanderung’, um ‘rambling’, um ameno passeio, no seu caso num ‘station’, com o seu cão Charley.
Procurando obra equivalente em português afastei as ‘Viagens na minha terra’ de Almeida Garrett, por nunca ter conseguido passar das primeiras páginas. Seguiam-se logicamente as ‘Viagens a Portugal’ de José Saramago, livro que prometia ser do género procurado.
Normalmente, não conhecemos os autores dos livros que lemos. São personagens remotas que ou já não são deste mundo, ou vivem em outros países. Quanto aos que vivem no mesmo pais e que conhecemos por jornais ou televisão, é raro que as suas pessoas nos apaixonem ao ponto de influenciarem a nossa opinião sobre as suas escritas.
Por Theodor Fontane tenho admiração, se vivesse no seu tempo partilharia decerto as suas convicções politicas, li os seus livros de correspondente de guerra de 1870 e concordo com aqueles - entre os quais Thomas Mann . que xonsideram o seu ‘Effi Briest’ melhor que Madame Bovary. Steinbeck também me é um autor simpático. Jã não leio os seus romances, mas fiquei amiga do amigo de Charley e releio esse seu livro com prazer.
No caso de José Saramago a coisa à partida era diferente. O homem não me é simpático. Pelo seu actual ar de arrogância e vaidade e por não ter esquecido do passado os seus artigos no Diário de Notícias. Não li os seus romances, não por antipatia, mas porque gosto de pontos, vírgulas e parágrafos e José Saramago não os aprecia.
Agora, com o seu ‘Viagens em Portugal’, surgia a ocasião de ler um livro seu, que não é um romance, que tem razoável número de parágrafos e no qual não faltam os pontos e as vírgulas.. Era também ocasião de verificar se a minha antipatia pelo autor afectaria a apreciação do seu livro.
Saramago fala sempre na terceira pessoa. Não é ele, é “o viajante” que vem a Portugal e o percorre de Norte a Sul. Muitos dos percursos que ‘o viajante’ faz, também eu uma vez fiz, parei em muitos dos locais onde para este viajante, e como colaboradora mental que sou dos livros que leio, acompanhei também a este com íntimos comentários. O ‘viajante’ está constantemente de mau humor, queixa-se da chuva, queixa-se do hotel mal aquecido, e, em mente, eu lembrava ao viajante que se não queria apanhar chuva e frio, que não tivesse vindo ver a terra em pleno inverno. O ‘viajante’ vai a Coimbra: “é um viajante, um sujeito que passa, um homem que, passando, olhou, que é superfície apenas. Tem de encontrar depois lembranças das correntes profundas. São também volteios, mas da banda da sensibilidade. Enfim, este é a Universidade de Coimbra donde muito bem terá vindo a Portugal, mas algum mal se preparou. O viajante não vai entrar....”
“Se até o pátio da Universidade o incomoda, o melhor é não ir a Lisboa, porque o homem também por lá andou”, comentei eu. O ‘viajante’ não passa perto ou longe de igreja, que não a visite, que não procure o sacristão, ou a mulher da aldeia que tem a chave para lá poder entrar. Eu espanto-me em mente por tanto interesse religioso. O ‘viajante’ é pouco comunicativo, não o vejo trocando conversa com o povo que tem ocasião de abordar e que tanto ama. “Conversas destas deixam o viajante mal humorado. Por isso quase não tem olhos para Vila Flor. Tem de abrir o guarda chuva..” Coitado do viajante!
Em livros de passeios nas nossas, suas, terras, o autor não vai à procura de aventuras, não pretende descobrir paragens desconhecidas, vai passeando, deambulando pela sua terra. vai contando o que vê, fala de quem encontrou pelos caminhos e que impressões trocou, descreve uma paisagem, fala de um monumento, relembra a sua história. São livros contemplativos, com calor humano, por vezes - e porque não - um pouco lamechas.
Ora ‘Viagens a Portugal’ é scco, sem vida, sem calor humano, e o viajante irrita-me com o seu constante mau humor. E volto à pergunta inicial. A saber se o livro, objecto que não tem culpa de eu não simpatizar com o seu autor, sofreu da minha antipatia? Se me irritaria eu tanto se, em vez de antipatizar com a pessoa do autor, eu gostasse dessa pessoa?
Curiosamente, parece-me que, na apreciação que fiz do livro, não fui influenciada contra o autor por não gostar da sua pessoa. É verdade, confesso-o, que nunca me consegui esquecer que ‘o viajante’ é José Saramago, e talvez que se o autor fosse outro, eu teria tido mais indulgência para com os seus maus humores e a sua secura.
Mas creio que não, creio que teria sentido exactamente o mesmo se o autor me fosse simpático. Creio que o facto de gostar do autor não me levaria a compadecer com o seu mau humor, não deixaria de me irritar com a secura dos seus comentários.
Resumindo, cheguei à conclusão – que aliás me espantou – que não gostei do livro, porque o livro, em minha opinião, não é ‘gostável’, e não por se dar o caso de o autor me ser pouco simpático.
Ponhamos agora o caso de um autor, pela amizade que existe entre nós, esperar de nós uma opinião sobre um seu livro.
Se, por suposto, a autora do hipotético livro fosse a minha filha, eu não hesitaria em lhe dar a minha sincera opinião. Mas, caso se tratasse de um amigo, eu teria mais cuidado com a franqueza.
F. Scott Fitzgerald não hesita em apontar os seus defeitos literários à filha: “Li a história com a maior atenção, e lamento ter de te dizer, que o preço que temos de pagar pela produção de uma obra profissional, é muito mais alto do que aquele que tu estás preparada a pagar”. Não seria provavelmente tão franco com um amigo, mesmo -- ou sobretudo – muito chegado.
Encontrei no spot “Todos ao Chiado” do blogue Tapornumporco, um trecho que me parece vir a propósito e que transcrevo-o aqui. Espero que o autor não se importe. Escreve ele:
“............., há um novo escritor português que me cativa. É o Daniel Abrunheiro e também é por sermos amigos. Distantes, mas de longa data. A amizade, neste caso, conta apenas por ter sido a porta de entrada para a sua obra e para a sua escrita. Confesso que se não fosse um amigo provavelmente não me teria dado ao trabalho de conhecer mais e melhor. Teria perdido uma pérola. ......... A circunstância de ser um amigo, como tal, não me torna mais parcial o julgamento em relação à criação. E o que eu acho é que é uma leitura cativante, enriquecedora e, principalmente, um universo literário, uma poética, original, que é das coisas mais raras e preciosas de se encontrar num escritor.”
Mas como escreveria o autor do spot sobre o livro do amigo, caso não o tivesse apreciado?
E quando se dá o caso do leitor ser também autor?
Leitor e autor habitam o mesmo planeta, um pequeno planeta chamando ‘Leitura’. Os dois precisam um do outro, mas a relação entre eles é muito delicada. E tudo porque entre eles está uma coisa de aparência insignificante, que se chama livro.

0 comentários:

Sobre este blogue

Libri.librorum pretende ser um blogue de leitura e de escrita, de leitores e escritores. Um blogue de temas literários, não de crítica literaria. De uma leitora e escritora

Lorem Ipsum

  © Blogger template Digi-digi by Ourblogtemplates.com 2008

Back to TOP