Nr. 52. De livros de cozinha. O ‘ISALITA’.

>> segunda-feira, 31 de agosto de 2009



A minha filha ofereceu-me o “Não se come mal em Portugal” de Miguel Esteves Cardoso. Agradeci, disse que tomava aquilo como uma espécie de presente de anos, já que completava um ano de bloguista, e perguntei:
--Ele fala de livros de cozinha?
Que não, que escrevia sobre bons pratos e bons restaurantes.
Sosseguei. Porque falar de livros de cozinha pretendia eu fazer, e se MEC com a sua mestria tivesse escrito sobre eles, o que me restaria para dizer?
Miguel Esteves Cardoso tece um hino à cozinha portuguesa, e àqueles que a melhor fazem. À base da magnífica matéria prima que em Portugal a natureza generosamente lhes oferece. A couve é um explendor, magníficos os nabos e as beterrabas. “E a rama, senhores, a rama”! A fruta é incomparável, o peixe não tem igual, o salmonete, o “português....daqueles que andam pelas rochas”, salta praticamente das águas – portuguesas – do Oceano para o nosso prato, o marisco espera ansioso que o vão pescar no alto mar, ou buscar às rochas e areias das costas - portuguesas – para ser transformado em arroz de Berbigão e camarão ao natural. Em Vila do Rei, o senhor Victor oferece aos seus comensais um divino bacalhau assado, no Calhariz de Benfica o senhor Pedro faz o mesmo, a estrada da Mealhada é uma espécie de rue de la Paix de leitão á Bairrada, ou antes nas palavras de MEC, “o Las Vegas de absoluta eficácia gastronómica” .
Eu leio, saboreio em espírito, concordo que não se deve pôr noz moscada em puré de batata (mas dá graça em recheio de croquetes) e que açúcar no tomate não calha, mas quanto aos restaurantes mencionados e amorosamente descritos não me posso pronunciar. Os que conheço e conheci contam-se pelos dedos das mãos, confesso que nunca entrei no Gambrinus, e se recentemente tive o prazer de almoçar no Ritz, devo-o ao facto de um sobrinho precisar de uma informação, e achar que um almoço no Ritz me faria mais comunicativa.
Resumindo, de restaurantes não sei nada. Sou do pre-25 de Abril, de um tempo em que se comia “em casa”. Se nessa altura me perguntassem como se comia na casa de uma tal, ou em qual casa dos meus conhecimentos se comia melhor ou pior, eu tinha resposta pronta. Comia-se “em casa”, o marido vinha almoçar “a casa”, convidava-se a almoçar, ou - de preferência - a jantar, “para casa”. Ou com antecedência, convite de mais ou menos “cerimónia”, ou, espontaneamente, um desafio de momento. Telefonema da minha prima Maria Teresa:
--Ouve lá! Que tal vires cá almoçar amanhã, sei que há lulas recheadas.
A pergunta vinha de uma casa em Paço d’Arcos, que em breve será, segundo consta, um hotel ‘de charme’. Naquele tempo não era hotel, era casa particular, e não sei se tinha ‘charme’, o que sei é que se comia lá muito bem. Desde lulas recheadas como nenhumas, às pequenas sandes de pão de forma (sem casca) e fiambre, que eram dignas da alta cozinha. Associavam-se determinados pratos e doces a determinadas casas. À quinta das Nogueiras, os melhores bolos de noz, à casa da tia (verdadeira) Helena, o bolo alemão, à casa da Ritinha os bolos de coco da Maximiana, a cozinheira que não sabia ler nem escrever, mas multiplicava e dividia de cabeça números de vários algarismos. Quando se saía de Lisboa, havia em Coimbra, em casa da tia Eugénia, onde os gatos tinham nomes de lentes, o melhor arroz de substância e uns cassetes inesquecíveis da mão da Rosa.
Nas cozinhas reinavam cozinheiras das quais se conhecia o nome e as especialidades, a quem se mandavam os parabéns pela excelência do prato servido e que, tal como o Miguel faz aos seus amigos cozinheiros de restaurante, se iam cumprimentar quando se era ‘da casa’. Na cozinha da minha mãe, e por ela ensinada desde o ovo estrelado ao peru de Natal, obrava a Carolina, bem conhecida e muito cobiçada. Havia cozinheiras natas, que tinham aprendido com as suas mães e avós, e havia as que sabiam o “trevial”, ou seja, praticamente nada. Eram ensinadas pelas ‘donas da casa’, e tanto cozinheiras como donas da casa deviam os seus conhecimentos a um único livro: o ‘ISALITA’.
O Isalita é uma das glórias da Editora Sá da Costa. Que, em 1925, teve a coragem, ou a visão, de publicar um livro de cozinha de duas jovens senhoras da “sociedade”, que não tinham outra recomendação senão a de saberem de cozinha. Uma chamava-se Isabel (Reis?), a outra Ângela, ou Angelita Telles da Sylva, o que deu ‘Isalita’, e à Sá da Costa muito bom proveito. O meu exemplar data de 1977 e é a 25ª edição. A ultima, a 27ª edição, é de 1995.
As duas autoras juntaram no seu livro receitas de pratos clássicos portugueses e franceses, algumas receitas da sua própria criação, e muitas que tinham coleccionado entre os seus conhecimentos. Havia a ‘sopa da avó’, o ‘bacalhau à prima Isabel’, os ‘bifes da prima Henriqueta’, o ‘coelho tia Virgínia’ e o ‘bolo de nozes da tia Virgínia’, as ‘perdizes à Laurita’, os ‘palitos da tia Amélia’, os ‘bolos da Mademoiselle’. A ‘Blaettertorte’, receita de alguma Fraeulein alemã, entrou na doçaria portuguesa pelo Isalita.
As receitas eram simples, claras, não tinham fantasias, haviam sido experimentadas, e a não ser que a cozinheira se enganasse desastrosamente, a coisa saía bem. Em muitas casas havia um ou mais pratos do Isalita, que ali tinham sido apropriados como coisa própria. Em casa da minha mãe eram os bifes da prima Henriqueta, os palitos da tia Amélia para aproveitar claras, a massa tenra para os pasteis desse nome, e, delícia das delícias, o arroz do Japão, do qual não encontrei a receita em nenhum outro livro. E não comi em nenhuma outra casa.
Quando uma menina casava levava evidentemente um Isalita consigo.
--Ó Antonieta, se fizéssemos para primeiro prato uns ovos escalfados em cima de torradas com molho de tomate, dizia a recém casada. --O senhor gosta.
Era muito importante, que o senhor gostasse.
A Antonieta achava muito bem, mas não sabia como fazer ovos escalfados, a patroa também não, consultavam o Isalita.
Os gastos da casa tinham de ser controlados, nada de despesismos, havia que aproveitar os restos. O Isalita tinha um capítulo sobre como aproveitar restos.
O jovem casal dava o seu primeiro jantar. A mãe recomendava à filha que não se metesse em cavalarias altas, que visse no Isalita o prato tal, que era bom e saía sempre bem. E lembrava que quanto a porções o Isalita também dava indicações.
Algumas das leitoras casavam com lavrador, tinham de saber como se matava o porco “Deve-se chamar para matar o porco um homem especializado nesse trabalho”, recomendavam as autoras. E mais recomendações sobre o que o dito especialista devia ou não devia fazer. Só depois seguiam as correspondentes receitas.
O Isalita não era um livro, era um utensílio de cozinha, que vivia na gaveta da mesa de cozinha a meias com colheres de pau, saca-rolhas, ralador etc e que se colocava em cima da mesa quando se preparava a iguaria. Virava-se a página com a mão que acabava de untar a forma, as claras salpicavam as folhas. De quando em quando substituía-se.
--O Isalita está um nojo, temos de comprar outro.
Ia-se à Sá da Costa comprar um novo Isalita.
Tenho vários livros de cozinha, e adoro folhear alguns deles, mas quanto a usar... o Isalita.
Obrigada Sá da Costa, por não ter hesitado a publicar - a par com os seus belos Clássicos - o modesto, grande, Isalita.
Miguel Esteves Cardoso diz que em Portugal não se come mal. Ele fala de restaurantes, eu só me lembro de casas, mas sou da mesma opinião, em Portugal não se come mal.

Observação à margem
Miguel Esteves Cardoso menciona a dada altura a mania que agora grassa, de “reinterpretar” pratos tradicionais. Eu acrescento a propósito, que a minha mãe teve um dia a infeliz ideia de acrescentar uma colherzinha de vinho do Porto à mousse de chocolate. Perante a indignação geral, desculpou-se. “foi para melhorar”. Daí em diante um bom prato, era seguido do coro: ----não melhore, mãe.

O que dizem outros
Blogue ‘O Galo de Barcelos ao Poder’. Comentário sobre o Isalita:
antonio disse...
“Ah e esqueces-te daquela coisa de nome Isalita (acho que são 3 gajas do movimento nacional feminino , ou algo que o valha...) .
Se ninguém tiver deitado fora a coisa, há-de estar lá pelo Estoril, amarelecida, presa por cuspo e cordéis...
Mas as receitas (a preto e branco, linguagem pesada and no photos at all, salazarento até dizer chega...) não são de todo incompreensíveis, bem pelo contrário, as gajinhas são muito exactas nas proporções e etc. Seguindo aquilo até parece que sabemos cozinhar alguma coisa.”...
:)

5 comentários:

Anónimo 1 de setembro de 2009 às 15:36  

A propósito de a Teresa dizer que as receitas eram simples e haviam sido experimentadas, lembro-me de uma partida que pregaram às autoras. Se a Teresa conseguir ver a primeira edição, que não tenho aqui no escritório, vale a pena ler a receita dos "Camarões à Cova da Moura". Não é mesmo nada simples e, por aparecer no livro, não pode ter sido experimentada, tanto que não aparece nas edições seguintes...é a excepção que confirma a regra! Gonçalo da Cunha

Theresa Castello Branco 2 de setembro de 2009 às 09:33  

É para eu aprender a não exagerar. E o pior é que também me enganei quando escrevi que só elas davam a receita do arroz do Japão, Acheia-a agora no Bento da Maia. Mas está um pouco modificada no Isalita, prova de que a essa receita pelo menos experimentaram. A receita dos camarões à cova da Moura foi então oferecida às autoras, e as inocentes publicaram. Tem a sua graça. Como vejo qie também sabe de edições de livros de cozinha, talvez me possa ajudar no próximo post. Vou escrevo de um outro livro de cozinha, este de fins do sec. XIX, de que não consigo encontar o autor. Theresa

Anónimo 9 de setembro de 2009 às 13:08  

Olá Tia Teresa, aqui está um asunto que me interessa, para mim "o livro de cozinha é o Isalita" tenho imensos livros mas consulto sempre e faço montes de coisas do Isalita, tb conheço a história dos camarões recheados com perdizes...vou ver nos livros da minha Avó se encontro o seu... há lá coisa bem antigas...um bj Sofia

Theresa Castello Branco 10 de setembro de 2009 às 23:04  

Olá Sofia, que bom ouvir de si. E sabia mais do que eu da partida que pregaram às autoras do Isalita. Se encontrar o autor do livro de que falo no próximo post, eu fico radiante. Um beijo tia Theresa

Anónimo 31 de maio de 2010 às 23:15  

Olá. Eu gostava, se não se importasse, que me mandasse o link para o artigo em que o sublime Galo de Barcelos teve a brilhantíssima ideia de chamar "gajas" às autoras. Gostava de lhe deixar um pequeno comentário.
Os melhores cumprimentos e fico muito satisfeito por saber que gostou do livro escrito, parcialmente, pela minha avó Angelita.

António Telles da Silva

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