A grande precipitaçao

>> segunda-feira, 19 de outubro de 2009





Na introdução a um livro sobre erros cometidos em diversos ramos da ciência*, o autor escreve que grande parte desses erros tinham sido originados pela ânsia de “esclarecimento e reconhecimento” dos respectivos investigadores ou cientistas. Ânsia que os levara a afastar demasiado depressa as duvidas e a pôr de parte qualquer ideia de um possível engano.
Alguns desses enganos tinham sido desastrosos, escreve o autor, outros, menos nefastos, prejudicariam contudo a investigação, levando-a por caminhos errados, que acabariam fatalmente em becos sem saída. Com muito esforço desperdiçado e muito tempo perdido.
Parece-me que se pode dizer o mesmo mesmo no caso dos Painéis encontradas um dia nas arrecadações do mosteiro de São Vicente de Fora. Na ânsia de “esclarecimento e reconhecimento”, de serem eles os primeiros a desvendar o enigma daqueles homens reunidos em torno de dois santos, os investigadores precipitaram-se a proclamar conclusões e teses.
Não se pode levar a mal que o tenham feito, nem nos espantar que se tenham enganado, o que talvez se possa criticar é o facto de, mesmo depois de algumas das teses terem provado erradas, e reconhecido como tais, de, mesmo assim, se tivessem mantido e defendido.
As três teses em questão são - como já se disse - que o homem de chapéu preto é o Infante D. Henrique; que os santos são São Vicente em duplicado, e que o pintor é Nuno Gonçalves.
A tese do retrato ser o Infante, foi a primeira em linha, mas creio ser mais esclarecedor quanto aos métodos de investigação que se praticaram, começar com as duas ultimas teses. Elas estão aliás intimamente ligadas, uma condicionando a outra. Foi a tese de os santos serem São Vicente – a tese dita “vicentina” - que levou à tese “Nuno Gonçalves”. Uma depende da outra.
Uma das coisas que desde o inicio intrigou os investigadores foram as figuras, nimbadas que são o centro devoto daquelas tábuas. Não se conhecia santo que se figurasse daquela forma. Consultou-se então alguma das grandes enciclopédias católicas? Pesquisou-se talvez o arquivo da câmara, já que se via nos Painéis um homem a segurar uma relíquia que se podia ligar ã câmara e, eventualmente, aos dois santos? Nada disso. Adivinhou-se.
Surgiram as mais surpreendentes propostas. De se tratar de Santo Eduardo, rei de Inglaterra, sugeriu Joaquim de Vasconcelos, de São Vicente, afirmava José de Figueiredo, de Santa Catarina, propunha Alfredo Leal, de D. Isabel, mulher de D. Afonso V, como rainha fada, lembrou Armando Lassancy, do cardeal D. Jaime, filho do infante D. Pedro, propôs Belard da Fonseca, enquanto José Saraiva apostava no infante D. Fernando, o “Infante Santo”, e de Conceição Silva ver nas duas figuras limbadas um “Arauto do Espírito Santo”.
Até que as opiniões se concentraram em São Vicente. O pronunciamento originou em José de Figueiredo, então director do Museu Nacional de Arte Antiga, e levou à tese, dita “vicentina”, ou seja que os santos eram São Vicente. Não havia, dizia José de Figueiredo, outros santos na história de Portugal que pudessem reunir em torno de si figuras de primeiro plano e de populares. O que se explicava, dizia ele, por São Vicente ter sido obreiro da conquista da cidade de Lisboa aos mouros. Este santo era tão venerado que tinha altar próprio na Sé de Lisboa.
Para que houvesse na Sé um altar de São Vicente, era porque este santo gosava da especial devoção da cidade. Os santos que se viam no políptico eram claramente santos que reuniam em torno deles toda a cidade. O políptico era pois com certeza aquele que estivera na Sé, no altar de São Vicente.
O pintor que pintara os quadros que ornavam esse altar fora um homem chamado Nuno Gonçalves. Homem de grande qualidade, de quem Francisco de Holanda no seu “Da Pintura Antiga” (publicado em Lisboa em 1548) escrevera que pintara à maneira dos grandes pintores italianos.
O poliptico encontrado em São Vicente de Fora era forçosamente aquele que estivera na Sé, e era portanto da autoria de Nuno Gonçalves.
Nada disto foi linear. Houve opiniões pró e contra. Havia sempre aquelas vozes discordantes, lembrando que São Vicente não se figurava daquela maneira, houve quem fizesse notar, que Francisco da Holanda escrevera expressamente que Nuno Gonçalves pintara os quadros do altar de São Vicente à moda italiana, e que as tábuas de São Vicente de Fora não eram decerto à maneira da nova escola italiana. . Nada a fazer. A tese “vicentina”, e a consequente tese “Nuno Gonçalves” impuseram-se, mantiveram-se e, por experiência própria, constatei que são acerrimamente defendidas.
Ao revelar o documento da câmara, que provava a existência de santos gémeos da devoção da cidade, eu tocara - de forma perfeitamente inocente, diga-se - na tese vicentina e gonçalvista. A revelação fora acolhida em silêncio, e não fizera grandes estragos. Quem é que ligava ao artigo de uma quase desconhecida? A coisa só incomodou quando publiquei um livro sobre o caso dos Painéis.
Nesse livro eu analisava, um por um, todos os problemas dos Painéis, abordando também, como era natural, e não podia deixar de ser, o problema do eventual pintor. Não apresentava tese, escrevi simplesmente as conclusões às quais chegara, analisando o caso com lógica, e não deixando de ter em conta as opiniões que haviam sido formuladas por outros.
Mas não escondera a existência de São Crispim e São Crispiniano, e com essa revelação, ruíam, para quem quisesse refletir, as teses vicentina e gonçalvista.
Não era a primeira vez que uma investigação posterior, demonstrava que houvera erro na tese precedente. Mas não foi assim que a coisa foi entendida. O museu de Arte Antiga decidiu ir em defesa de Nuno Gonçalves. Organizou uma conferencia, ou colóquio, e deu ao evento o título de “Nuno Gonçalves. Novos Documentos”.
Nunca cheguei a perceber, se a ideia nasceu da própria direcção do museu, e foi ela que tratou da organização do colóquio, ou se a coisa foi sugerida à direcção por um grupo de partidários das teses vicentina e gonçalvista e aceite pela direcção. Fosse como fosse, o colóquio realizou-se e raras vezes se terá assistido a mais triste demonstração de amadorismo em investigação.
Descreverei proximamente esse colóquio, porque julgo importante que se reflicta sobre que bases ainda hoje assenta a investigação oficial do caso dos Painéis.
Por hoje uma ultima reflexão. Ums reflexão sobre se importa verdadeiramente
o facto do pintor dos Painéis ser ou não ser Nuno Gonçalves. Se vem algum mal ao mundo de se manter uma identificação possivelmente errada? O homem é internacionalmente reconhecido, é o maior pintor português, para quê tocar nele? Que interessa isso para o caso dos Painéis? Deixem lá ficar o homem.
Descansem. Não se tocará em Nuno Gonçalves, ele continuará - em companhia dos dois São Vicentes – a ser ensinado em escolas e faculdades.
Àqueles, que têm a incómoda paixão da verdade em matéria de história, a quem a investigação lógica e os seus resultados interessam mais de que uma batota artificialmente mantida, a esses, o engano defendido incomoda evidentemente.
Até porque este engano, como todos os enganos desta sorte, têm as suas consequências. Uma delas afecta a apreciação visual dos Painéis.
Havia na época vários tipos de pintores, (não contando os miniaturistas, que não interessam para o nosso caso). Eram considerados oficiais mecânicos e trabalhavam ou para os reis, os nobres, o alto clero, ou para as cidades. Os primeiros pintavam os retratos dos seus patrões e aquilo que a estes interessava: imagens para as suas capelas, as suas igrejas, os mosteiros de que eram patronos ou devotos. Os pintores das câmaras, esses, ocupavam-se sobretudo em obra decorativa. Pintavam bandeiras, estandartes, flâmulas, e eram encarregados de “enfeitar” a cidade quando a cidade fstejava, ou comemorava, algum grande acontecimento: a entrada de um embaixador, um casamento real. Os pintores deviam ‘ilustrar’ visivelmente o acontecimento. Quando do casamento da infanta D. Leonor com o imperador da Alemanha, o embaixador que já citámos, escreve que se viam pela cidade várias composições artísticas, aluscasamento real. Ele vira entre outras, em determinado largo, a representação da eleição dos imperadores alemães pelos sete “príncipes eleitores”. Tratava-se evidentemente de obra executada pelo pintor da cidade.
Em 1470, quando se presume terem sido pintados os Painéis, havia dois pintores a trabalhar em Lisboa, um era o pintor do rei, chamava-se Nuno Gonçalves, outro, era o pintor da câmara, chamava-se João Enne. O pintor do rei pintara recentemente os quadros do altar de São Vicente na Sé e estava pintando outros para a capela do Paço de Sintra. Pinturas à moda italiana, como se sabe. Decerto muito diferentes do género de pintura que produziria o pintor da cidade, habituado a quadros decorativos de grandes dimensões. É um dos aspectos da questão dos Painéis que nunca foi tido em consideração, devido à fixação em Nuno Gonçalves.
Outra consequência dessa fixação é o que se dá com as tapeçarias de Arzila, ou de Pastrana, como também são conhecidas, segundo a pequena cidade espanhola onde hoje se encontram.
Se aceitamos que foi Nuno Gonçalves quem pintou os Painéis de São Vicente de Fora, isso obriga-nos a esquecer as tapeçarias de Arzila.
Por uma muito simples razão. Aquelas extraordinárias tapeçarias foram sem duvida alguma tecidas segundo desenho e pintura do homem que pintou os Painéis nossos conhecidos. Ora, ainda é minimamente aceitável, que um pintor, gabado por pintar segundo a escola italiana, tenha pintado os Painéis. Mas o que ninguém em seu pleno e perfeito juízo poderá aceitar é que as tapeçarias de Arzila sejam obra de pintor da escola italiana. Se Nuno Gonçalves pintava à moda italiana, não desenhou, pintou e ideou as telas para as tapeçarias de Arzila. E não pode ter pintado os Painéis, porque esses são indubitavelmente do autor das tapeçarias.
E assim. uma obra d’arte originada em Portugal, tratando de tema português, obra tão grande, ou maior, que os Painéis, é praticamente ignorada. Não vá alguém questionar o que não se deve questionar.

*Heinrich Zinkl Der grosae Irrtum

2 comentários:

casa da poesia 23 de outubro de 2009 às 22:50  

YES!...

"vendo tudo quanto tenho"...???

Theresa Castello Branco 24 de outubro de 2009 às 19:36  

Assim é. casa da poesia. Theresa

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