O homem de encarnado

>> segunda-feira, 12 de outubro de 2009




“Et omnes erant uno coloro escarlato rubeo ornamentatissimi vestiti” escrevia Nikolas Lankmann von Falkenstein.
Eu ia caindo da cadeira quando li a frase.
Falkenstein, o embaixador de Frederico III de Habsburgo, imperador da Alemanha, que em 1453 veio a Portugal buscar a infanta D. Leonor, irmã de D. Afonso V, noiva e futura mulher do Imperador, descreveu no seu diário as festas que houve então em Lisboa em honra do acontecimento. Uma dessas festas foi organizada pela câmara da cidade. A Câmara apareceu em grande e luzido cortejo, e todos os seus homens - assim escreve o embaixador - vestiam uniformemente de uma cor só, de “escarlato rubeo”. De vermelho, portanto. E só de vermelho.
Naquela altura eu não estava particularmente interessada no problema dos Painéis de São Vicente de Fora, mas sabia o bastante sobre o caso para considerar aquela informação de enorme importância. Ela interessaria decerto os peritos que se ocupavam do assunto, e tinha portanto de ser publicada.
É que, com a descrição do embaixador, se podia finalmente identificar, de forma “documental”, a figura de encarnado que se via nos Painéis com aquilo que se pensava poder ser -- e decerto era – a relíquia de Sto António, que a Câmara de Lisboa tinha à sua guarda.
Escrevi portanto um artigo dando conta desse achado. Que aliás já podia ter sido feito, dado o diário do embaixador estar publicado (em latim) na História Genealógica da Casa Real de António Caetano de Sousa, e ter sido traduzido para português e publicado por Luciano Cordeiro.
O meu artigo apareceu no Diário de Notícias em 1983 na sua boa secção cultural, dirigida então por António Valdemar.
A identificação não foi contestada nem na altura, nem mais tarde, nem o podia ser. Mas foi recebida em silêncio. Note-se, que se tratava da identificação indiscutível de uma figura de primeiro plano dos Painéis. Que era a única identificação documentada que até ali se fizera. Foi tacitamente aceite, porque não podia deixar de o ser, mas em silêncio.
Este blogue foi criado para falar de temas literários, e nunca pensei incluir nesses temas o caso dito “dos Painéis”. Só que encontrei recentemente aquilo que penso ser a resposta a mais um dos problemas do caso, e lembrei-me de escrever aqui sobre essa descoberta.
Para logo pensar que, uma divulgação dessa natureza, isolada do seu contexto, não interessaria os leitores. Como a poderiam eles avaliar, aceitar ou rejeitar, se não conhecessem as minhas relações anteriores com o caso? Se não soubessem das pesquisas que realizara, e da sua forma? Das descobertas que gradualmente fora fazendo, das conclusões que delas tirara e do livro que a partir delas escrevera? Para já não falar da reacção que houvera a esse livro?
Acrescia que o caso dos Painéis, tão cheio de problemas de interpretação, sobretudo de ordem histórica, tem hoje, adicionalmente, um problema de ética, de honestidade intelectual. A saber até que ponto, em matéria da história de uma obra de arte, se pode defender a mentira para preservar a revelação de erros cometidos.
Creio que aqueles que habitualmente lêem os meus posts, são pessoas que saberão apreciar a questão nas suas diferentes vertentes. E é nessa convicção que me decidi a incluir no libri. librorum a questão “dos Painéis”.
Após ter publicado o artigo sobre o homem de encarnado, pensei ficar-me por ali. Mas como sou curiosa, achei que devia valer a pena dar uma vista de olhos no arquivo da Câmara de Lisboa. Se um homem da Câmara figurava em lugar de destaque nos Painéis, era possível que, entre a documentação da Câmara, se viesse a encontrar qualquer coisa relacionada com aquela obra. Era um passo lógico. Numa pesquisa documental histórica é assim que se procede.
Não descobri documentos que aludissem directamente aos Painéis, mas encontrei outros que, indirectamente, interessavam ao caso. Eram documentos que se referiam à obrigação que a Câmara tinha de organizar anualmente, no dia 25 de Outubro, uma procissão para comemorar a conquista de Lisboa aos mouros, e dar graças aos Santos que tinham presidido a essa vitória. A procissão ia da Sé ao mosteiro de São Vicente de Fora, e os santos em questão eram dois irmãos gémeos, que se chamavam São Crispim e São Crispiniano. Quando os senhores presidente e vereadores da Câmara pareciam estar em vias de esquecer aquela sua obrigação, os reis tinham o cuidado de lho lembrar. Que Suas Senhorias fizessem o favor de não esquecerem a obrigação de comemorar “tão grandes santos, e a quem a cidade tanto devia”.
Aqui estava outro facto que merecia ser participado, pensei eu, e escrevi o respectivo artigo. A revelação foi acolhida com a gargalhada que os nomes Crispim e Crispiniano provocaram a pelo menos um dos peritos. Como se santos com aqueles ridículos nomes pudessem ser tomados a sério.
Não previra uma recepção entusiástica daquela nova informação. mas pensava que ela interessaria. Afinal estavam ali documentos que diziam que houvera na história da cidade de Lisboa dois santos, que eram gémeos, que tinham sido mártires e diáconos, o que permitia que fossem representados com barrete na cabeça tal como aquelas duas figuras centrais e idênticas que se viam nos Painéis
A verdade é que eu vivera na ilusão que alguém devia querer provas documentais para aquele caso. Perdi essa ilusão. Percebi que nos cérebros dos senhores dos Painéis reinava a certeza que os dois santos eram São Vicente em duplicado. Mesmo quando vozes competentes apontavam que não havia memória de São Vicente ter sido representado com barrete na cabeça, visto ter sido tonsurado, e que a um santo tonsurado nunca se representava de cabeça tapada, mesmo assim, os ditos senhores mantinham soberanamente a sua convicção.
A falta de reacção não me incomodou, e ignorei a troça. Não tencionava continuar o estudo daquele caso, e menos entrar em discussões a seu respeito.
E mais uma vez decidi que por ali me ficaria. E assim o teria feito, se não fosse a minha filha me contar, ao chegar um dia a casa, que fora abordada na rua por uma senhora que lhe perguntara se ela não era minha filha, e tendo ela respondido afirmativamente, a desconhecida dissera-lhe: --Olha, então diz à tua mãe que continue com o caso dos Painéis, porque ela é que está no bom caminho.
Ri, mas o mal estava feito. Meti-me onde não era chamada. E, já que me metia, fiz a ‘metidela’ a fundo.
Já lera alguma coisa sobre a questão, decidi ler tudo. Desde os cinco volumes de Belard da Fonseca ao mais pequeno folheto. Mais tarde iria voltar a eles para argumentar e contra-argumentar, de momento li as teorias, li os factos históricos e artísticos mais ou menos pertinentes apresentados, admirei as imagens elucidativas que os diferentes autores apresentavam, e fiz obedientemente as comparações que me aconselhavam. Fui uma esponja.
Destaquei de tudo aquilo e dois únicos dados que me pareciam de interesse. Dois factos. Dagoberto Markl, lembrou, que no tumulo do Infante D. Henrique se via uma figura jacente, cujas feições não eram as do homem de chapéu preto dos Painéis, que se presumia representar o Infante. Dagoberto Markl não tirou dali as devidas consequências, mas tinha dado uma utilíssima contribuição para o caso.
O segundo facto pertinente era revelado por João Paulo Abreu Lima, a saber, que na época em questão, tinham trabalhado em Lisboa dois pintores, um, Nuno Gonçalves, português, outro, João Ennes, flamengo ou português de ascendência flamenga.
De resto pude concluir que havia três dados que eram considerados indisputáveis. Eram eles:
a) os dois santos eram São Vicente em duplicado
b) o homem de grande chapéu preto retratado nos Painéis era o infante D. Henrique
c) o autor da pintura fora o pintor português Nuno Gonçalves.

Nestas três verdades absolutas não se podia tocar. Assim sendo, de momento que eu me ia ocupar do caso, aquelas três ‘verdades’ tinham de ser examinadas e a sua consistência, conforme o caso, tida ou não. em consideração. Após a leitura dos livros, era este o passo que se impunha. Que eu me impus.
--Porque é que pensa conseguir desenvencilhar o que os outros não conseguiram? perguntou-me um dos meus irmãos, a quem falei na decisão que tomara.
–Porque eu não vou adivinhar, vou investigar, respondi.
Podia ter acrescentado que eu tinha o que nenhum dos outros tivera. Eu tinha um ponto de partida. Eu tinha o homem de encarnado.

4 comentários:

Anónimo 12 de outubro de 2009 às 12:14  

Bom dia , Teresa, ainda bem que fala na questão dos paineis. Há muito tempo que me interesso por este asunto e os seus livros sobre o mesmo são dos mais lógicos e claros. Tenho comprado vários livros para ir estudando a questão com algum método, mas não tenho conseguido. Talvez qdo me reformar....Nas identificações que fez, só não fiquei mto convencido com a do homem do joelho em terra. A identificação é engenhosa, mas mais rebuscada que a dos demais personagens e por isso mais dficil de aceitar.Mas também, confesso, não vi melhor alternativa. G. da Cunha

Anónimo 13 de outubro de 2009 às 07:41  

Olá Gonçalo, fico contente por saber que já tenho um interessado colaborante. O homem de joelhos em terra também a mim deixou e deixa grandes duvidas. Quanto ào resto que escrevi, obedeceu a um raciocínio lógico, e agora volto ao caso porque penso poder acrescentar mais alguma coisa para "dar que pensar" e sempre com lógica.. Bastantes esforços fizeram para me calar, para me apetecer voltar de novo ao caso. Theresa

Daniel Abrunheiro 14 de outubro de 2009 às 02:09  

Que interessante, T.

Anónimo 14 de outubro de 2009 às 19:29  

conto com o seu contínuado interessse, avisado e crítico Theresa

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