Ter ou não ter o Isalita

>> segunda-feira, 4 de julho de 2011

Escrevi neste blogue sobre livros de viagem, sobre livros de criança, sobre livros de memórias, sobre livros antigos e modernos. Mas tenho de constatar que não foram esses textos de certo nível intelectual que mais impressionaram o público que faz o favor de me ler. O que a este comprovadamente mais interessou foi o que escrevi sobre um livro de cozinha, o 'Isalita'. Sendo assim, porque não dizer mais alguma coisa sobre esse precioso companheiro das donas de casa? Não de todas, é verdade. O Isalita foi descaradamente snob Foi primordialmente comprado e usado por aquilo que no tempo do aparecimento do livro se designava por ’gente conhecida’. Nos nossos dias é suposto não haver classes sociais, mas oiço falar de burguesia alta, média, baixa e não sei se de três quartos. O Isalita não pertencia a nenhuma dessas classes, o Isalita era da gente que se tratava entre si por gente ‘conhecida’, ou seja que se conhecia entre si, e sabia de outros através dos seus conhecimentos. Foram as mulheres conhecidas das duas autoras, Isabel e Angelita, que compraram o livro quando este apareceu, foram elas que passaram palavra, e elas e suas filhas e netas que dele se serviram. O livro tinha muito uso e por vezes era lido enquanto se executava uma receita, tinha rapidamente nódoas de gordura. Não era caro, era substituído. O que talvez explique que o Isalita tivesse tantas edições, apesar de ser pouco conhecido do grande público. O exemplar que tenho é da 25ª edição e é de 1977. Deve ter sido a última edição e não sei como é que a Sá da Costa ousou publicar livro tão conotado com uma certa classe.
Feliz proprietária de um exemplar uso-o constantemente, e é das suas receitas que a minha empregada ucraniana tem aprendido a cozinhar à portuguesa. Como é uma mulher instruída sabe dar valor ao arcaísmo de certas receitas. As autoras não deixavam nada ao acaso. Não digo que recomendassem que se caçasse primeiro o coelho, mas pouco faltava. Para o seu Bacalhau com espinafres - muito da minha estimação - lê-se: “Deita-se numa porção de água fria um molho de espinafres depois de muito bem lavados e escolhidos e levam-se ao lume a ferver. Quando levanta fervura tiram-se e escorrem-se” etc, etc.
O Isalita era tradicional no melhor sentido, adaptando as velhas receitas aos tempos modernos. Era moderno com receitas próprias e fornecendo receitas da cozinha francesa e de outras, e, coisa nunca vista, era prático, dedicando um capítulo ao aproveitamento de restos. Os meninos ‘conhecidos’ sabiam que ao assado de um dia se seguiria uns dias depois o pudim de batata, ou de arroz. Os amigos de Liceu é que tinham sorte, as mães deles não faziam pudim de batata. As mães dos colegas não tinham o Isalita.

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