VIDA QUOTIDIANA DAS MONJAS NO MOSTEIRO MEDIEVAL - CAPº XI DIREITOS E PRIVILÉGIOS

>> quinta-feira, 3 de março de 2016

Pelos séculos foram surgindo leis novas, que afectavam o proprietário monástico. O Papa estava longe, o Rei muito perto, era agora junto dos monarcas que as abadessas faziam valer a sua influência, apresentando-lhes as suas queixas, os seus pedidos. Requisitavam privilégios, pediam que não se mexesse nos que lhes tinham sido acordados, que se respeitassem os seus direitos adquiridos, que não se bulisse com os seus rendeiros e caseiros. Apresentavam as suas cartas, faziam valer a sua qualidade, e a da sua família. Eram ouvidas, e, em geral, atendidas. Em 1335, a abadessa dona Teresa Mendes escreve ao rei sobre o problema de géneros que não lhes eram devidamente fornecidos. Ela, e o seu convento, tinham terras e aldeias em muitas comarcas, e destas terras e aldeias deviam vir ‘capões, galinhas, frangões, cabritos e ovos’, que lhes eram muito necessários para mantimento da sua casa, das suas doentes, dos seus hóspedes, e ainda para fazer ‘bem e prestança’ a pessoas necessitadas. Muitos desses géneros eram tirados aos seus rendeiros antes de estes lhos poderem entregar. A abadessa pedia que Sua Alteza cotasse um lugar pertencente ao mosteiro, para dessa forma lhe garantir alguns dos géneros de que necessitavam. O rei mandou que fosse coutado o lugar de Terra Galega, com os homens que lá viviam. A esses homens não se podia, dessa forma, retirar os ovos das suas galinhas, ou matar seus capões, ou seus frangões, ou seus cabritos.4 Pelo que eles estariam em condições de pagar as rendas ao mosteiro. A abadessa dona Guiomar Fernandes de Panha queixava-se ao mesmo rei de abusos que os almoxarifes reais cometiam contra os direitos do mosteiro em Foz d'Arouce.

A Jugada
Alegava a abadessa, que essa aldeia fora de D. Afonso de Rouca, que por sua morte a aldeia ficara a sua filha, dona Sancha Afonso, monja de Lorvão, e que dela a aldeia passara para a posse do mosteiro. Além dos foros e direitos que lá tinha, o mosteiro levava em Foz de Arouce a oitava de tudo que os lavradores lavrassem e rompessem por detrás dos marcos com que a terra fora circundada. Pois agora, dizia a abadessa, os almoxarifes constrangiam os ditos lavradores a que, de algumas arroteias que faziam atrás dos ditos marcos, pagassem jugada ao rei. Eram jugadas que o rei não tinha o direito de exigir. D. Afonso mandou investigar o caso pelo inquiridor de Coimbra, a inquirição, feita em presença do inquiridor da abadessa, deu razão a esta, pelo que o rei ordenou aos seus almoxarifes que dali em diante não levassem jugada aos lavradores da Foz d'Arouce.5 Cinco anos mais tarde, sempre no longo reinado de D. Afonso IV, temos o caso dos lavradores que abandonavam as terras do mosteiro para trabalharem em outras. Era o resultado da calamidade que iria dizimar parte da população da Europa. Em Outubro de 1347, doze galeras italians, vindas da Crimea ancoraram no porto de Messina na Sicília, trazendo a bordo tripulações dizimadas por uma doença oriunda do Oriente. De Messina a peste espalhou-se a outros portos do Mediterrâneo, a portos franceses, espanhóis e portos do Magrebe. Em 1348 a peste grassava em Portugal. Ignora-se o número de vítimas, que causou, mas consta que Coimbra foi particularmente afectada, que a colegiada de São Pedro dessa cidade perdera em poucos dias, o prior e todos os seus religiosos. No ‘Livro das Preladas’, lê-se que no ano da peste grande morrera em Lorvão a abadessa dona Guiomar Fernandes de Panha, e não foi decerto a única vítima no mosteiro. Lorvão iria sentir grandemente as consequências da peste. Com a população dizimada, a mão-de- obra escassava, e os rendeiros descobriram que podiam trabalhar para outrem, e por bom salário, e largavam o trabalho nas terras do mosteiro. Havia agora um dado novo na sociedade: rural: muito e diverso trabalho, abrindo novas perspetivas à gente do campo.
Peste Negra
Peste Negra A abadessa de Lorvão expôs o caso ao rei. Muitos dos homens a quem o mosteiro tinha arrendado terras, as estavam a deixar, iam trabalhar por conta de outros: ‘deixam as ditas suas herdades, e vão lavrar outras muitas (sic) que acham, e, outrossim vão andar com outrem por seus jornais’. A abadessa pedia que o rei fizesse justiça, que seus juizes obrigassem os lavradores indicados pelos procuradores da abadessa a irem trabalhar nas terras do mosteiro. O rei acede. Ordena que os juízes ouvissem os procuradores de dona abadessa de Lorvão, e que, caso vissem que estes tinham razão, que ‘constrangessem’ os ditos lavradores, a ‘que lhes lavrem e perfeitem as ditas suas herdades, e lhes não desemparem, e lhes paguem suas rendas e foros e direitos’.6 Em 1369, é já a D. Fernando a quem a abadessa de Lorvão se dirige. Tratava-se de obter do rei, que os homens que trabalhavam para o mosteiro, e eram pagos por este, não fossem obrigados a fazer serviços para o conselho de Coimbra. Esses ‘mancebos e azeméis e outros servidores e homens paniguados’ que continuadamente serviam o mosteiro e deste tinham mantimento, não podiam ser dispensados para fazer serviços para outros, dizia a Abadessa. D. Fernando concordou, ordenou que não obrigassem os ditos mancebos.7 Os almoxarifes ignoraram a carta do rei, queixava-se a abadessa de Lorvão, continuavam a exigir as jugadas, querendo obrigar os lavradores, que viviam em terras do mosteiro de Lorvão, e as lavravam e semeavam, a que pagassem ao rei por ‘cada junta de bois, um moio de pão’ de jugada. Era coisa que nunca se fizera em memória de homem, afirmava a abadessa, e o pior era que por essa razão se estavam a despovoando terras e casais do mosteiro. D. Fernando, como o fizera seu avô, atendeu a reclamação. Ordenou que os lavradores e caseiros da abadessa de Lorvão não fossem obrigados a pagar jugada até que se determinasse, se eles não eram por lei obrigados a fazê-lo. E que, entretanto, lhes fossem entregues os bens que porventura tivessem sido penhorados para pagar ao rei as ditas jugadas.7 No mesmo dia, a 18 de Janeiro de 1378, em carta datada de Coimbra, e em atenção a outro pedido da abadessa de Lorvão, o rei permitia que os seus juizes ajudassem os procuradores da abadessa a cobrar as dívidas e direitos nas terras do mosteiro, já que os moradores procuravam fugir às suas obrigações, sendo nisso apoiados por muitos juízes das terras onde o mosteiro tinha propriedades.8 Passam os anos. Morre D. Fernando. O mestre de Aviz é declarado rei pelas cortes de Coimbra a 6 de Abril de 1385. E já a 14 desse mês, a abadessa de Lorvão apresentava ao novo rei o pedido de confirmação dos seus privilégios: ‘privilégios e liberdades e bons usos e costumes de que usavam desde o tempo dos outros reis.’ D. João I atendeu prontamente o pedido, exigindo unicamente que o mosteiro participasse no peditório, na ‘pedida’ que naquela ocasião se estava fazendo nos conselhos. A partir daqui estabelece-se por parte de Lorvão - como, decerto, por parte de outros mosteiros e outros privilegiados - o costume de apresentar ao rei, logo que este era aclamado, o pedido de confirmação dos privilégios de que usufruía. Mal o novo soberano ocupava o trono, lá apareciam os procuradores de Lorvão com as cartas de privilégio do mosteiro para serem vistas e confirmadas. É ainda D. João I quem dá ordem aos juízes de Coimbra, para que não permitissem que ‘gente poderosa’ contratasse, por soldada, outra qualquer forma, os filhos e filhas, ou os servidores dos caseiros do mosteiro de Lorvão. A abadessa queixara-se-lhe, que de outra forma os seus caseiros não teriam braços para trabalhar as suas terras, deixando sem cultivo os casais que arrendavam ao mosteiro: ‘com a qual cousa, ela, dita abadessa, e o dito seu mosteiro recebem grande agravo’.9 Já que os caseiros não amanhando, não tinha com que pagar as rendas ao mosteiro. Os senhorios religiosos eram em toda a Europa notoriamente mais brandos para com os seus rendeiros do que os leigos, mas não ao ponto de permitirem que lhes abandonassem as terras, e fossem trabalhar contra ‘soldo’ para outros senhores. Em 1430, a abadessa de Lorvão viu-se obrigada a defendeu o mosteiro da tomada do lugar do Paço pelos juízes do rei. Estes diziam ter ordem de tomar para o rei todos os lugares ‘de arcebispos e bispos e clérigos e mosteiros e ordens’ que estivessem em reguengos. O que era o caso do dito lugar do Paço, afirmavam os juízes. Dona Abadessa apresentou imediatamente documento que provava, que o Paço era do mosteiro havia mais de 250 anos. O rei ordenou aos juízes, que largassem mão do dito lugar e de todos os frutos e rendas dele.10 Em 1461, a pedido do conde de Marialva, D. Afonso V dispensa o mosteiro e as monjas de Lorvão do pagamento do antiquíssimo tributo de ‘colheita e jantar’, que se pagava ao rei quando este ia em visita às comarcas. O mesmo rei decide ainda a favor de Lorvão no curioso caso de certa palha que era tirada aos caseiros do mosteiro. A abadessa dona Brites da Cunha expusera que ela e o seu convento tinham casais, quintas e outras terras no termo da cidade de Coimbra e que, todos os anos, os seus caseiros e lavradores, depois de terem debulhado o seu pão, cediam ‘graciosamente segundo costume da terra’, aos fidalgos, cavaleiros e cidadãos escudeiros, palha para fazerem os seus palheiros. E a cada um segundo o que merecia. Da palha que restava, os caseiros faziam depois os seus próprios palheiros para ‘governança’ dos seus bois e outro gado. Ora aqueles mesmos senhores a quem se dava palha, mandavam agora homens seus às casas dos ditos lavradores, e tiravam-lhes mais palha. Prejudicando grandemente a estes, e ao mosteiro. Dona Abadessa tinha razão, achou o rei, e ordenou que, de ali por diante, ninguém tirasse palha aos lavradores e caseiros do mosteiro.11 Três anos depois do incidente da palha, a pedido da mesma dona Brites da Cunha, o rei permite que a abadessa mande coutar o ribeiro do Lorvão, que passava diante das portas do seu mosteiro. E isso, desde a azenha chamada de ‘Gil Alvares’ até ao Mondego. Ninguém poderia, de ali em diante, ‘matar ou mandar matar’ trutas no dito ribeiro, sem a autorização da abadessa. Se o fizesse, pagaria pena de dinheiro.12 Com D. João II pareceu que terminariam benesses em matéria de direitos adquiridos e privilégios. Em 1460, nas cortes de Évora, o rei ordenara ‘que as confirmações que havia de confirmar, não fossem quais como os reis seus antecessores costumavam’, escreve Garcia de Resende a esse respeito, ‘mas que todas as pessoas de quaisquer estado ou condição que fossem, assim eclesiásticos, como seculares e todos os mosteiros e igrejas de seus reinos,’ e cidades e vilas teriam de apresentar as doações, graças e privilégios que tivessem, para serem examinados pelos oficiais designados para o efeito. Aqueles a quem estes não reconhecessem justiça perderiam os ditos privilégios. No mosteiro de Lorvão não se sentiram por muito tempo os rigores da nova medida, e, em 1514, no reinado de D. Manuel I, a abadessa dona Catarina d'Eça obtém de D. Manuel, que frei Diniz, um frade de Alcobaça e notário apostólico que fazia em Lorvão as escrituras dos contratos, também lá pudesse fazer as escrituras públicas. Nas ordenações manuelinas, no título das Jugadas, era dito que os caseiros que pertencessem a privilegiados - o que era o caso dos de Lorvão - tinham de fazer escritura pública para serem dispensados da jugada. Era pois conveniente, que o notário que servia o mosteiro, pudesse tratar de assuntos de natureza pública. D. Manuel compreendeu a razão do mosteiro, e acedeu a que as escrituras feitas pelo dito frei Diniz fossem válidas como se fossem feitas por qualquer tabelião público. D. Manuel sugeriu mesmo que a abadessa lhe apresentasse um leigo da sua escolha, que ele confirmaria como notário público para aforamentos e emprazamentos.

NOTA : A publicação VIDA QUOTIDIANA DAS MONJAS NO MOSTEIRO MEDIEVAL será retomada no inicio de Abril

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