VIDA QUOTIDIANA DAS MONJAS NO MOSTEIRO MEDIEVAL - CAPº XVII O CASO DE D. FILIPA D'EÇA - PARTE 2 - A EXPLUSÃO

>> quinta-feira, 12 de maio de 2016

Colocado perante a eleição de D. Filipa, que dois bacharéis não tinham sabido impedir, o rei nomeia novo magistrado para tratar do caso. Magistrados de Coimbra tinham demasiadas ligações com o grande mosteiro. Era mais que certo, que lhes faltava ânimo e entusiasmo para expulsar uma dona Filipa d’Eça, que fora eleita abadessa. D. João encarregou desta vez a missão ao doutor Gaspar Vaz, um juiz que tinha a grande qualidade de não ser de Coimbra. Saberia correr com dona Filipa e colocar outra abadessa em seu lugar. Estava já escolhida. Tratava-se de dona Melícia de Melo, monja de Arouca. Dona Mélicia encontrava-se há tempos instalada em Botão, na quinta que o mosteiro ali tinha, esperando pelo momento em que houvesse finalmente um juiz capaz de a instalar à cabeça do mosteiro. O rei declarava estar apoiado nessa medida pelo Cardeal Infante, que era este quem indicara dona Melícia de Melo - abadessa de Arouca. - para o abadessado de Lorvão. O Cardeal dera as suas ordens ‘pelas quais deveis vós – o Dr. Gaspar Vaz - tomar posse do dito mosteiro de Lorvão.’ A prioresa e as monjas do mosteiro deviam obedecer às ordens do Cardeal Infante, e receber como sua, a abadessa por ele, Cardeal, indicara. Sua Eminência ordenava mais, que dona Filipa, que estava no dito mosteiro de Lorvão, e dizia ter sido eleita nele, saísse de lá. Devia largar a posse. que dizia ter dele, e entregá-la ‘livre e expeditamente’. O Cardeal, juntamente com Dom Augusto, bispo d’Angra, fizera já processo à dita dona Filipa. O doutor Gaspar Vaz tinha plena autoridade para executar aquela missão: ‘vos designo e certifico como tendo a vara (sic) de magistrado’. Logo que o doutor Gaspar Vaz recebesse aquela carta, iria a Lorvão, levando consigo as forças que lhe parecessem necessárias para se fazer obedecer. Uma vez chegado ao mosteiro, diria à dita dona Filipa, que saísse de lá, e obedecesse em tudo às ordens do senhor Cardeal e dos seus delegados, ‘notificando- lhe a ela, da minha parte, que a isso tenho por serviço de Deus e meu. E que cumpra em tudo a dita ordem que vos confio’. Caso dona Filipa não obedecesse, o juiz podia usar de força. ‘Podeis tirá-la fora do dito mosteiro e sítio de Lorvão pela força e contra sua vontade’, escrevia ainda o rei. Notificaria disso a prioresa e as religiosas, ordenando-lhes, que obedecessem às ordens do Cardeal. E dizendo-lhes da parte dele, Rei, que lhe abrissem as portas do dito mosteiro, visto ele ter mandato para ‘expulsar a dita Dona Filipa e pôr na posse a dita Dona Milícia de Melo’. Prevendo o caso de dona Filipa não obedecer, e das monjas estarem de seu lado, D. João dava claras instruções sobre como proceder. O juiz, com os homens que para isso levava, abriria as portas do mosteiro com os fortes, ‘se bem que honestos, modos, que pudesse, e extrairia dele à dita Dona Filipa’. Se a prioresa e as monjas quisessem vir onde o juiz estivesse para saber o que se passava, o doutor juiz podia permiti-lo. Em seguida diria à porteira para lhe abrir as portas, e, se ela não o fizesse, mandaria abri-las pela força. E entraria no dito mosteiro: ‘com a advertência que, quando entrardes, não fáceis desonestidade, nem nada que não seja devido’. Mandaria pôr portas novas em todo o mosteiro, ficando com as chaves de tudo, advertindo as oficiais, que não tirassem nada do que havia na casa. Uma vez isto feito, o juiz enviaria ao lugar do Botão buscar a dona Melícia, e a instalaria na posse do mosteiro, entregando-lhe as chaves deste. Ordenaria às habitantes dele, aos seus rendeiros, enfiteutes e colonos ‘e todas as outras pessoas a quem interesse’, que obedecessem e reconhecessem a abadessa dona Melícia, e lhe entregassem as rendas do dito mosteiro Obedecendo a estas instruções, o doutor Gaspar Vaz, que, na altura de receber a carta do rei, se encontrava em Coimbra, partiu para Lorvão. Chegou no ‘oitavo dia do mês de Abril, véspera da Páscoa da ressurreição’ do ano de 1538’. O notário que anotou os acontecimentos, enumera um por um os doutores e executores que se deslocaram a Lorvão.

Magistrados e Mensageiro
Além de Gaspar Vaz nomeia a Bartolomeu Fernandes, esse, sim, juiz da cidade de Coimbra, acompanhado de seus Prectoribus, sive barresteris, com escrivãos das chancelarias. Presentes ainda: Pedro Tagarra, executor e bacharel do dito juiz; Jorge Dias, Pedro Dias, Gonçalo de Lamego, Jorge Vaz e Henrique Brandeiro, todos tabeliães e habitantes da cidade de Coimbra; Benedito Fernandes e Sebastião Vaz, mensageiros; Hilário e João Fernandes, e outros homens e soldados dos bacharéis. Cristovão Fernandes e Deus dado Peres, ferreiros. E muita outra gente, a pé, a cavalo, e esta armada de flechas e escopos e pês ‘ou o quer que seja’.
E ainda António de Sá, executor, João Cerveira, notário, João Fernandes, escrivão de notário, e Afonso Fernandes, seu mensageiro: ‘E com esses magistrados vinham os ditos ferreiros, com serras e escopos e outras ferramentas para com eles abrirem e demolirem as portas do dito mosteiro, como com efeito fizeram, semeando pavor e criando terror’, comenta o autor do relato. Aproximando-se das portas, os homens procuraram abri-las com traves de ferro. Então apareceram à porta do mosteiro o doutor Francisco Mendes, e o procurador do mosteiro, os quais, declararam, que vinham da parte de dona Filipa d’Eça e do seu convento saber ao que vinham. O doutor Gaspar Vaz disse das ordens que trazia, e que pretendia entregá-las. Então, anota o notário, ‘perante mim, notário público e testemunhas abaixo indicadas, compareceram em pessoa dona Filipa d’Eça, abadessa eleita do dito mosteiro, e a mim me disse, que era verdade que, como o dito mosteiro vacasse por morte de Margarida d’Eça, última abadessa, as religiosas do mosteiro fizeram a sua eleição, na qual fora ela própria eleita por abadessa pelas anciãs e pela maior parte daquele mosteiro no dia 11 de Fevereiro ano de 1538’. Desde esse tempo estivera sempre em pacífica posse, estando à frente do dito mosteiro com a obediência das supraditas religiosas. Quanto à carta que el-rei lhes enviava, Dona Filipa e as religiosas declararam que não iriam ao locutório recebê-la. Os notários anotaram-no devidamente: ‘e disso fizeram acta o doutor Francisco Mendes e o licenciado João Vaz’. No entanto, passado algum tempo, aquelas senhoras reconsideraram. Dona Filipa e algumas monjas vieram às janelas, e disseram que se tinham aconselhado com seus procuradores, e ouvido o magistrado enviado por el-rei, e que, tendo-as o dito magistrado feito ir ali sob pena de exílio, elas, ‘setenta e cinco mulheres mais ou menos’, aceitavam ouvir a carta de el-rei, e responder-lhe. O doutor Gaspar Vaz veio então com ‘seus oficiais de justiça e a supradita gente’, e dissera, que vinha da parte de el-Rei, o qual mandava que a dita dona Filipa saísse espontaneamente do mosteiro para outro local, E que ele a expulsasse caso ela não obedecesse. Exibira a carta, e as monjas leram-na. O doutor Francisco Mendes, respondeu pelo convento que a dita ‘Dona Filipa, eleita, e a maior parte das suas religiosas e convento’ queriam saber, se o juiz ‘lhes dava licença para que movessem justiça da dita Dona Eleita, se bem que o debate fosse com o Rei Nosso senhor, e tivessem visto as ditas ordens’. O juiz dissera que lhes dava licença. Da parte da dita dona Filipa fora então levantada a questão do braço secular. Que o bacharel Sebastião Lopes já quisera usar dele, diziam, e viam que Sua Alteza pretendia fazê-lo de novo. Elas queriam apresentar por escrito a sua oposição a esse acto. O juiz retorquiu, que ele era simples executor, que ‘não era defensor, salvo de actos para que tenha sido designado pelo Rei. Que, contudo, lhes dava uma hora para que a dita Eleita e o convento consultassem o que queriam fazer’. Ao fim da hora, o procurador do mosteiro dava conta do resultado da consulta. A dita Eleita, e o seu convento, não admitiam apelação a nenhuma justiça eclesiástica ou secular. Elas tinham o apoio ‘do Santíssimo Senhor nosso Papa Paulo 3º’ para que não se partissem as portas do seu mosteiro, nem se intrometessem nele, pondo a mão sobre dona Filipa, visto ela ser abadessa e sagrada, e que também o mosteiro era consagrado’. Caso procedessem da dita forma contra elas, ofenderiam o próprio Santo Padre, sob cuja protecção e defesa elas já tinham posto as suas pessoas, e o seu mosteiro com seus rendimentos. Já tinham também falado a cardeais e ministros do Papa para que se opusessem ao parecer do bispo de Angra e aos enviados do rei. Perante esta resposta, o juiz não esperou mais, deu ordem aos serralheiros para arrombarem as portas. O que eles fizeram ‘com machados, escopos, serras e outras ferramentas’, escreve o notário. Os homens irromperam então por ali dentro.com o juiz Gonçalo Vaz à frente. O notário não perdia pitada. Competia-lhe anotar, anotava. Anotou que a dita Eleita e as religiosas clamavam pelo auxílio de Deus e do Papa, que gritavam que ‘todos eram testemunhos, que as espoliavam, e com oposição delas entravam em seu santo mosteiro, cujas portas partiram, querendo, contra justiça, tirar de lá a que canonicamente fizeram abadessa, elegendo-a em justa forma, segundo seus privilégios’. Aquelas religiosas tinham-se refugiado no coro, onde se encontravam já outras monjas ‘recitando as suas loas, pois que era a vigília de Páscoa da Ressurreição’. Seriam umas setenta e cinco religiosas, as que em seguida ali se fecharam e fortificaram ‘com ferros fortes e outras muitas ferramentas’, e colocando ainda uma trave na porta do coro. Pondo os braços nessa trave, conseguiram durante algum tempo impedir a entrada dos homens do juiz, até ao momento em que um deles, o soldado bacharel Benedito Fernandes, feriu uma das religiosas com um corte no braço. As companheiras acudiram-lhe, permitindo assim que juízes e oficiais penetrassem no coro ‘pela força das armas’, ‘Dona Filipa eleita’ estava sentada numa cadeira, relata o notário, e, em sua roda, ‘como seu sustentáculo’, estavam as outras religiosas com a cruz alçada, cantando em uma só e alta voz: ‘in exit Israel de Egitii et super flumen Babilonis etc’ As religiosas continuavam lutando com o juiz e os seus oficiais para defender a abadessa, ‘chegando-lhes às mãos, até que eles chegaram à cadeira onde estava a dita dona Filipa Eleita’. Juiz, e bacharel, e escrivães, prenderam-lhe então as mãos e corpo, e, ‘horrivelmente rasgaram-lhe as vestes em parte, e trouxeram-na para o coro inferior, e, sem parar até ao coro da Igreja’. Ali colocaram-na ‘numa qualquer cadeira de madeira, digo, arrastaram-na a ela, - emenda o notário conscienciosamente - anunciando que discordavam, de que ela fosse abadessa benedita e sagrada’. Ao que dona Filipa retorquira, que era abadessa sagrada, sim, e que todos que ali estavam eram testemunhas, de como, por força e violência, a espoliavam da sua posse. Ela tinha instrumentos do Santo Padre e seus auditores, de como era abadessa benta e consagrada do mosteiro de que era expelida. E mais, era filha de D. Pedro d’Eça, bisneto de D. João, filho d’el rei D. Pedro, e já por isso, ao desonrarem a qualidade da sua pessoa, incorriam - como já lhe fora dito pela Cúria Romana - em pena de dez mil ducados por violência de direitos, e todas as outras multas, que eram aplicadas pela própria Câmara Secreta. As outras religiosas continuavam a defender-se, ‘e de tal forma, escreve o notário, ‘que algumas pessoas puseram mãos desonestas em dona Filipa, e a arrastaram até ao scriptorium do dito mosteiro, onde a puseram’. E então, como o juiz o tivesse autorizado, todas as religiosas, ‘umas sessenta ou setenta’, entre as quais a Prioresa e outras anciãs, aproximaram-se da cadeira de dona Filipa. E todas, ‘de que qualidade fossem’, aproximaram-se, e lhe beijaram as mãos, e a honraram, dizendo que ela era, e seria sempre a sua prelada e abadessa, que, para isso, elas a tinham elegido e dado obediência. E que as eleições por elas feitas, elas as consideravam válidas e ratificadas, e protestavam, que não obedeceriam a dona Melícia, nem por força, nem por nenhuma outra forma. Apoiavam declaradamente a Dona Eleita, sua prelada, e protestavam que por isso não incorriam em excomunhão nem em desobediência’. E para que Sua Santidade pudesse fazer justiça, restituindo-lhes a abadessa que tinham elegido segundo os seus estatutos, pediam aos notários e tabeliães ali presentes, que lhes dessem instrumentos do que tinham testemunhado. ‘E de todos os lados’, anota o notário, ‘se ouvia que elas eram filhas de Claraval, da Ordem de Cister, e portanto súbditas imediatas de Sua Santidade o Papa. El-rei e o Cardeal podiam dispor dos seus corpos e vidas, mas queriam arrancar-lhe as suas almas, e elas não reconheciam juramento a não ser ao Papa, aos superiores e abade de Claraval e cardiais. E muito mais disseram, escreve o notário, até que dona Filipa fora levada para fora’. Foia ‘lançada através das portas fora’, e transportada a um hospício que ali havia, pertencente a certas mulheres etíopes, que tinham sido servas do mosteiro. O Juiz entregou então as chaves do mosteiro a dona Melícia de Melo, nomeou outras oficiais para as diversas oficinas, e, como se tinham partido as portas, mandou homens ‘com lanças e partasanas’ ficar de guarda em frente delas.

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