VIDA QUOTIDIANA DAS MONJAS NO MOSTEIRO MEDIEVAL - CAPº XVII O CASO DE D. FILIPA D'EÇA - PARTE 3 - REVOLTAS

>> quarta-feira, 18 de maio de 2016

Aquela empresa podia ser dada por concluída, mas no mosteiro reinava um clima de revolta. A abadessa imposta pelo rei não conseguira conquistar a obediência das monjas, acabando por se retirar de novo para Arouca. -lhe uma sua sobrinha, dona Ana Coutinho, também monja de Arouca.
Era de novo uma escolha de D. João III ou do Cardeal-Infante, que, ambos eram regularmente informados do que se passava em Lorvão Em Dezembro de 1542 há de novo revolta contra a abadessa. Uma das mais insubordinadas era uma monja chamada Leonor Telles. A abadessa queria despachá-la para outro mosteiro, D. Leonor resistia, declarava que não saía de Lorvão.

Mosteiro de Arouca

Avisado, o rei tomou o caso a sério. Escreveu para Coimbra ao Juiz de fora Bartolomeu Fernandes. Que este, caso a dita dona Leonor se negasse a sair do dito mosteiro a bem, e a abadessa o requeresse, fosse a Lorvão e tratasse pessoalmente da ‘modança da dita dona Leanor’. O juiz devia agir com muita diligência e com toda temperança, de maneira que a coisa se fizesse ‘com menos escândalo e alvoroço’ possível.
O juiz obedeceu, foi a Lorvão, é recebido por dona Ana Coutinho, e combina com esta a forma e o dia da transferência da insubmissa dona Leonor. A coisa resolveu-se aparentemente a bem, quando juiz, no dia combinado, se apresentou no mosteiro para tratar da transferência, foi-lhe dito que dona Leonor, perante a ameaça de ser levada dali à força, se não saísse às boas, se decidira a partir, e já se fora. Juiz e Abadessa congratulavam-se com o feliz desfecho do incidente, quando, estando o juiz ainda falando com dona Ana no parlatório, apareceu uma religiosa, dizendo ao Juiz, que as freiras ‘das partes de dona Filipa d’Eça’ lhe queriam falar. E logo ali viera ‘uma soma de mulheres freiras’, escreve o tabelião que acompanhara o Juiz. Eram umas vinte ou trinta, segundo ele, as quais, todas juntas, ‘se vieram onde a dita dona Ana Coutinho abadessa estava, e todas juntamente alevantaram grande grita (sic), e fizeram grande alvoroço, todas contra a dita abadessa. Gritavam, batiam as palmas, e diziam que lhe levantavam a obediência, e não haviam de ir ao coro, nem obedecer a seus mandados. O juiz dizia-lhes que se calassem, falando muito alto, porque estavam na casa da grade, e separados por duas grades. Uma de ferro, outra de pau’, especifica o notário. O Juiz dizia às religiosas, da parte de el-rei, que se calassem, e que não fizessem mal á abadessa, sua prelada. Dona Leonor Telles já saíra dali por mandado de Sua Alteza.’  ‘Elas não se calavam. Continuavam a falar ‘muitas indignidades, e rijo, contra a abadessa’. A ele, tabelião, e aos outros oficiais que ali presentes, queria parecer, que as monjas se teriam ‘enviado’ a abadessa e a teriam maltratado, se não fosse o juiz as ameaçar com ‘grandes vozes’ que procederia contra elas, caso não se calassem e se recolhessem. O que finalmente tinham feito. Recolhendo-se ‘indignadas e com muita fúria’.3
Fora do mosteiro, as coisas não tinham estado paradas. Tanto dona Filipa d’Eça - a ‘Eleita’ - como dona Ana Coutinho - a ‘Intrusa’ - tinham apresentado os seus casos em Roma. E quem diz Dona Ana Coutinho, diz D. João III. Não é fácil entender, quem dos dois contendores, D. João III ou D. Filipa, agiu primeiro. Se o rei levara a causa a Roma para justificar a sua acção, expulsando do mosteiro uma abadessa canonicamente eleita, ou se agira em Roma por saber que D. Filipa levara lá o seu caso, e estava a ser muito bem até As forças não eram iguais. O rei tinha em Roma o seu embaixador, e aquilo que então se chamava um ‘enviado’, o homem conhecedor das minúcias da corte papal, e activo nos negócios diplomáticos. Dois conceituados cardeais, Farnese e Santa Frol, trabalhavam por Portugal, ou melhor, eram gratificados para trabalhar por Portugal. De parte de dona Filipa, refugiada no mosteiro de Celas em Coimbra, pouco era se esperar. Não se apresentavam, e menos, se defendiam causas em Roma sem meios financeiros, e sem apoios superiores. Ora, mesmo eu dispusesse deles, D. Filipa não podia agir sem ser aconselhada por quem estivesse dentro dos tramites daquelas questões. Consta que D. Filipa teve esse conselheiro na pessoa do abade do pequeno mosteiro de frades cistercienses em São Paulo de Salavisa, pero de Coimbra.
Fosse como fosse, o facto é que, em Dezembro de 1543, cinco anos após ser eleita abadessa de Lorvão e de lá ter sido expulsa a eleição de D. Filipa d’Eça era superiormente reconhecida, e confirmada por sentença papal.
D. João é notificado, e escreve de imediato a D. Filipa. A missiva do Rei é datada de Almeirim, ‘primeiro dia do mês de Dezembro de 1543, e diz:4.

‘Eu são informado que vós tendes havido da Rota executarias com vossas três sentenças sobre a posse e finitos da abadia de Lorvão, pelo que vos encomendamos muito que, vindo-vos as ditas executórias, não useis delas sem me primeiro as enviardes mostrar para eu as ver e prover nisso como for justiça.’ E não queria que ela continuasse a viver em Celas, comunicando com Lorvão ‘dando vexação’ às monjas do mosteiro. Esperava que ela tivesse esse seu desejo em conta, e se afastasse dali para mais de 15 léguas. Ele receberia disso prazer e serviço e o agradeceria muito. Dona Filipa respondeu, que recebera entretanto as sentenças dadas na Rota papal a seu favor. Era de crer, escrevia ela, que em Roma não julgariam a seu favor, sendo ela tão desfavorecido no reino como era, se a razão não estivesse de seu lado, ‘se me não sobejava na justiça pano para mangas’. Agora, que recebera as sentenças, podia falar sem receio, declarava, que não tencionava ceder no que era seu direito reconhecido pelas sentenças papais. Assinava: “De Vossa Alteza, abadessa de Lorvão dona filipa D’Eça ”A notícia da sentença favorável a dona Filipa soubera-se naturalmente em Lorvão, e as suas adeptas rejubilaram. Esperavam ver a sentença cumprida, e a abadessa por elas eleita, de novo no seu cargo. Como nada sucedesse, escreveram ao rei. A carta é de 3 de Fevereiro de 1544. Estranhavam, dizem aquelas religiosas, que, tendo elas escrito tantas vezes e com tanta verdade, a Sua Alteza, nunca tivessem tido resposta, e que Sua Alteza as deixasse à mercê das maldades de dona Ana. As anciãs, e a maior parte do convento e religiosas do convento, que tinham elegido a Filipa d’Eça por abadessa do seu mosteiro, informavam Sua Alteza, que viera um breve do Santo Padre, ordenando o secreto das rendas do dito mosteiro, para que dona Ana Coutinho não lhes pudesse tocar. E que o Juiz encarregado do dito sequestro, lhes dissera dele o necessário. Isso não sucedera. Não era a primeira vez que escreviam a Sua Alteza, contando como eram vexadas e desonradas. Agora pediam que el-rei, por pessoa insuspeita, mandasse tirar inquirição daquilo que dona Ana Coutinho lhes fazia. ‘Não era mulher para pessoa sofrer’. Se elas se queixavam, era porque as coisas eram mais do que se podia dizer. Elas eram mulheres fracas e enfermas, e não sabiam por quanto tempo poderiam resistir aos males e injustiças de que eram alvo. Havia doze ou treze monjas no cárcere ‘Deus haja misericórdia de nossas almas’.

Cárcere Monástico

Pediam de novo a Sua Alteza, que interviesse, para que não houvesse naquela casa ‘tantas exorbitâncias (sic), pois é Rei Cristianíssimo de que esperamos Justiça’. Esperavam que Sua Alteza não fizesse com aquela carta o que fizera com as outras, que elas lhe tinham escrito. Que lhes desse ouvidos, e não acreditasse falsas informações delas. "Oiça-nos, pois lhe pedimos justiça e mercê e por verdade nos assinamos aqui todas”. Seguem-se as assinaturas de quarenta e quatro religiosas. D. João continuou a ignorar pedidos, ou não recebeu as cartas que lhe eram dirigidas. As cartas escritas do mosteiro eram decerto na sua maioria apreendidas. Pois apesar da vigilância que decerto existia, uma carta dirigida pela mesma ocasião a dona Filipa lhe chegou às suas mãos, e foi por ela enviada a D. João. A carta, dirigida ‘À muito ilustre e magnífica Senhora, a senhora Dona Filipa d’Eça, abadessa de Lorvão minha senhora’ , é assinada por dona Violante de Castro. Dona Violante agradece a carta de dona Filipa, que lhe chegara às mãos. Fora consolação ver letra de Sua Senhoria em tempo em que tinham tanta necessidade dela, quando andavam todas ‘tão atribuladas e cheias de paixão’ com as coisas que dona Ana Coutinho lhes fazia. Não se poderia sofrer aquilo por muito tempo, ‘porque de duas há-de ser uma: ou morrermos todas juntas, ou fazermos mil desatinos como este que agora fez dona Ursula de Sotto Maior, filha de dom Nuno e dona Isabel sua mulher, que se vira tão desesperada com má vida e muita perseguição suas, e vitupérios e desprezos que lhe fez.’ Muitas vezes lhe ouviram dizer, que, ou se havia de matar, ou fugir. Na última Quinta-feira de Fevereiro, deram por falta dela. Não lhes parecia que pudesse ter fugido, por ela ser muito nova, e não conhecer ali ninguém. Além de que era muito virtuosa. Viriam a saber, que a desesperação dela fora tão grande, que lhe fez parecer que poderia fugir, e ir ter a casa de sua mãe. Procurara fugir por um telhado, mas, estando nele, enfraquecera de tal maneira, que descera de novo, e se fora esconder no sótão da casa de lavor. E ali ficara quatro dias e quatro noites, sem comer e sem beber, ‘com desejo e determinação de se deixar morrer assim desesperada antes que se tornar ao poder desta mulher’. Ao quinto dia do seu desaparecimento foi sentida de uma religiosa, que a fez sair do buraco onde estava. Parecendo já mais coisa do outro mundo do que daquele, escreve dona Violante. “Nós, quando a vimos, não se podemos dizer o prazer que tivemos e as muitas lágrimas que com ela chorámos’ A Intrusa - dona Ana Coutinho - não a quisera ver, e no dia seguinte ‘se foi a Cabido e a mandou levar lá, e, depois de a vituperar e desonrar, e assim a todo o convento,’ mandara-lhe tirar o hábito e véu preto, e fizera- lhe vestir uma mantilha de burel, que a cobria até aos pés, e pô-la no grau mais abaixo de todos. E ordenara que às Sextas- feiras jejuasse pão e água, e que sempre comesse em terra, e ‘fosse em cruz toda (sic). E, de cada vez que acabassem as horas, se deitasse à porta da igreja estirada’. Todas se tinham indignado, e todo o convento se levantara, e se pusera de joelhos, pedindo-lhe ‘que se houvesse com ela piedosamente, e não lhe quisesse dar azo outra vez a tentar. Pediram-lho todas, e com tantas lágrimas, ‘que não houvera coração, por duro que fora, que se não demovera’ Pois a Intrusa, não cedera, ficara antes mais furiosa. Até Violante d’Azevedo, que era tão partidária dela como todas sabiam, ela empurrara com tanta força, que quase a ditara ao chão. Quando ela fazia isto a uma mulher tão velha, e que sempre fora coxa, ‘julgue Vossa Senhoria o que fará a outras’.  Por fim, a abadessa castigara a todas tirando-lhes um dos pães até à Páscoa. Mas o que elas mais sentiam, escrevia a autora da carta, era que ninguém acreditaria no mal delas, porque elas mesmas, que o padeciam, não o conseguiam dizer, porque as coisas eram tantas e tão grandes, ‘que por umas (se) esquecem as outras, e fica em nossa memória o que elas causam. Que são muitas enfermidades desvairadas e tanta magreza, que todas parecemos tísicas’. Se Deus não se lembrasse delas, e lhes trouxesse dona Filipa de volta, e as livrasse de dona Ana, ela tinha a certeza que muitas delas morreriam. ‘Se nos Vossa Senhoria de alguma maneira poder acorrer, faça-o, por amor de Nosso Senhor ao menos. Pois, já (que) os corpos estão destruídos, não percamos as almas, que é impossível poderem-se salvar em tal poder. As queixas soam a verdade, e nem todas as cartas que foram dirigidas ao Rei foram confiscadas. Ele não podia ignorar por completo o que se passava. Seria difícil perceber com, sabendo-o, não lhes deu remédio, se não houvesse claros indícios - já apontados -, de que D. João tinha uma concepção inquisitorial da religião, e estava perfeitamente de acordo com os rigores impostos às monjas pela abadessa por ele nomeada.






3 T.T. Corpo Cronológico Mº 73 Nº27
4 T.T. Corpo Cronológico Maço 74 nr. 28
5 T.T: Gavetas. Maço XV-1-31

2 comentários:

Felipa M. Sousa 16 de julho de 2016 às 12:03  

Cara Sra. Doutora Theresa Castello Branco tendo descoberto recentemente o seu blogg venho dar-lhe os parabéns pela qualidade e interesse das matérias publicadas. Curiosamente sou a única neta do Pedro Theotónio Pereira e, neste momento, o meu livro de cabeceira é justamente a biografia do Marquês de Sande...
Por estar dedicada a uma tese de Doutoramento sobre a presença da porcelana da China e do Japão em portugal, no final do séc. XVII e primeira metade do século XVIII, só lhe posso estar muito grata não só pela publicação dos vários artigos sobre gastronomia e respectivo contexto histórico-social, mas também pelo extremo rigor e diversidade na selecção das fontes que publica.
Gostaria muito de a pode conhecer pessoalmente para trocar impressões sobre "vidas passadas", incluindo a partilha de alguma memória que possa ter acerca do meu avô.
Muitissimo obrigada, mais uma vez,
Felipa Theotónio Pereira Marques de Sousa

Felipa M. Sousa 16 de julho de 2016 às 12:07  

Cara Sra. Doutora Theresa Castello Branco tendo descoberto recentemente o seu blogg venho dar-lhe os parabéns pela qualidade e interesse das matérias publicadas. Curiosamente sou a única neta do Pedro Theotónio Pereira e, neste momento, o meu livro de cabeceira é justamente a biografia do Marquês de Sande...
Por estar dedicada a uma tese de Doutoramento sobre a presença da porcelana da China e do Japão em portugal, no final do séc. XVII e primeira metade do século XVIII, só lhe posso estar muito grata não só pela publicação dos vários artigos sobre gastronomia e respectivo contexto histórico-social, mas também pelo extremo rigor e diversidade na selecção das fontes que publica.
Gostaria muito de a pode conhecer pessoalmente para trocar impressões sobre "vidas passadas", incluindo a partilha de alguma memória que possa ter acerca do meu avô.
Muitissimo obrigada, mais uma vez,
Felipa Theotónio Pereira Marques de Sousa

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