Livros de Viagem. Através dos Estados Unidos no ‘Great Pacific Railroad’. Contªº

>> quarta-feira, 3 de junho de 2009




“Ontem, 27, chegámos a Chicago às 8 e meia da manhã. Antes de entrar na cidade costeia-se durante meia hora talvez o lago Michigan, que parece o Oceano pelo tamanho. Fomos deixar as bagagens à estação onde devíamos embarcar à noite, e depois de almoçarmos pusemo-nos a percorrer a cidade sem parar um instante. Parece incrível que em meia dúzia de anos se possa fazer uma tão bela cidade como Chicago é hoje. O pavimento das ruas é um horror como o de New York, mas há edifícios soberbos, entre outros o da Câmara é esplêndido. Metemo-nos no americano, fomos a Lincoln Park, que é o melhor da cidade e dizem mesmo da América; está situado sobre o Michigan, é muito grande e bem traçado, as árvores já têm bastantes folhas e o gazon dos canteiros está agora verdíssimo. Em suma, achámos este parque superior ao Central-Park de New York. Vimos por fora o edifício onde estão as máquinas e o túnel que traz água do fundo do lago (para ser mais pura) para Chicago. Não entrámos dentro por ignorarmos o que se pagava, mas também, não se vendo o túnel, não valia a pena ir ver as máquinas, o que vimos por fora menos mal. Foi só para dizermos que tínhamos visto os ‘water works’ de Chicago. Depois fomos à catedral, que é bonita, mas não tem nada de especial. Queríamos ir ver uma igreja que dizem muito bonita, mas por causa dum engano de americano achámo-nos bem longe dela, e já era tão noite que não tivemos pernas que nos levassem lá, todo o dia não tínhamos parado. Jantámos na estação e, às 9 e meia, fomos para o ‘sleeping car’ esperar que o comboio partisse às 10 e meia. Depois de estar deitada ainda vi uma cidade bastante grande, que atravessámos pelo meio sem o menor cumprimento. Aqui consideram o vapor como um cavalo qualquer.
Almoçámos hoje, 28, no comboio e temos passado o dia nas famosas ‘prairies’ do centro da América que dizem tão feias; não temos achado isso, não são tão planas como se diz, e o campo é tão verde e a terra parece tão rica que faz gosto ver. O papá tem estado encantado com a fertilidade e riqueza do solo. Além disso ainda há muitas florestas com pequenos rios cortando-os a cada minuto. São mais de cinco horas da tarde e ainda não acabámos de passar estes campos. Só vendo, se faz ideia do tamanho deste país, que os americanos chamam o mundo, pois quando perguntam a alguém de que estado é, perguntam: "de que parte do mundo é você?"
Chegamos a Counsil-bluff sobre o Missouri à noite. Estamos lá uma hora e depois seguimos para diante. Infelizmente os pontos mais bonitos e mais altos das Montanhas Rochosas e Sierra Nevada passamo-os de noite. A maman lembra-se de ver num livro do papá uma vista da Sierra Nevada, em que o caminho de ferro passa quase em cima do monte a 4000 m de altura e dá uma volta curva e que a maman não quis continuar a ver? Pois passamos por aí de noite. Mas como o papá quer ver esses pontos altos, à volta voltamos pela mesma linha para os ver então de dia e depois vamos mais pelo sul para ver as ‘Mamouth Caves’. (Nota: 2 de Junho New York. Afinal vimos tudo de dia à ida)
Os bilhetes de ida para S. Francisco custaram 28 dollars em vez de 160, mas soubemos que tinham subido a 72, de modo que à volta não tomamos bilhetes directamente para New York, mas só até Washington, me parece que é, e depois compramos então ‘excursion tickets’ que são muito mais baratos. Não podemos ir ao Niágara de passagem para S. Francisco como imaginávamos, mas é fácil ir depois mais tarde de New York. Pode-se ir e voltar em dois dias.
Quinta feira, 29, à tarde.
Chegámos ontem a Counsil-bluffs às 6 e meia e vou contar um episódio curioso e engraçadíssimo. Na hora que ali estivemos havia muitas coisas a fazer: cear, compra de bilhetes para o ‘sleeping-car’, e troca dos caminhos de ferro, e despachar as nossas bagagens que o tinham sido só até ali. Nesta terra, em qualquer estação que parece insignificante, há tanto movimento como em Lisboa. Não digo mais para não se “escandalizarem”. Milhares de malas havia ontem no quarto das bagagens, e apesar de estar tudo muito bem organizado sempre leva tempo. Como o papá se demorou na compra dos bilhetes, já tínhamos dito o número das nossas coisas quando o papá chegou, e por mais que dissesse, que estava vendo as malas, e que partia daqui a minutos não havia meio de o atenderem. Mas, por felicidade, ao pé do papá estava uma senhora a quem tinha acontecido o mesmo, e a quem serviram logo assim como todas as outras. O papá, vendo isto, corre chamar-me para ver se conseguia o que se queria. Foi ‘l'affaire d'un instant’. Rimos depois imenso desta aventura; aqui são polidíssimos com as sanhoras. Daqui em diante ponho-me à frente quando houver qualquer dificuldade, mas também teve graça o homem das malas não querer ouvir as respostas que o papá fazia às perguntas dele, mas esperar que eu respondesse.
Atravessámos o Missouri - que nesse ponto é larguíssimo - numa ponte que parece de papelão. Esta manhã almoçámos bastante bem numa estação e jantámos às 7 e meia em Sidney. Continua a prairie, mas menos bonita por ser completamente plana, o que faz parecer um mar. Assim mesmo é bastante povoada, nunca se deixa de ver ao pé ou ao longe casinhotas de imigrantes e o gado é abundantíssimo, mas assaz feio. Decerto sabe que nestas regiões há uma quantidade de cães bravos muito curiosos a que chamam ‘prairie dogs’, temos visto imensos. Fazem uns montinhos como as formigas (são do tamanho dum esquilo) e aí se metem nos buracos que estão feitos no meio dos montes. São cinzentos e parecem focas; quase todos estão em cima das suas ‘tanières’ sobre as patas detrás, é engraçadíssimo. Em cada buraco há uma coruja e dizem também uma serpente que vive com eles; é ratão. O papá, lendo o que eu escrevi até agora, deu-lhe vontade de rir eu dizer, que não é nada ir de New York ao Niágara, e diz que a maman decerto vai dizer que eu estou uma americana; não estou, nem nunca o virei a ser, esteja certa, mas na verdade o modo de viajar é tão cómodo que dois dias de caminho de ferro nada cansam. Já estamos aqui há quase cinco dias e não sentimos o menor incómodo, a comida, ou dentro, ou na estação, é boa geralmente, as camas são óptimas, e de dia está-se o mais confortável possível: uns lêem, outros trabalham e conversam, outros põem almofadas nos canapés, que de noite se transformam em camas, e fazem o seu sono, alguns escrevem - o que eu estou fazendo agora - sobre uma mesa que se arma no intervalo dos canapés. Para distrair vem a cada instante um homensinho vender laranjas, bananas, barretes de viagem para homens, jornais, revistas etc. Não há nada que o infeliz não ofereça ao viajante, mas só jornais tem vendido, de resto só vendeu um livro a uma senhora e um guia e duas bananas a nós. Também não admira muito que não faça bom negócio, faça ideia que três laranjas custam 25 cents, isto é 225 reis, e tudo mais em proporção. Desde Chicago tem vindo connosco uma senhora americana com quem temos conversado; vai para Salt Lake City, o que nos fez imaginar que ela era uma das noivas do Brigham Young*, mas depois, pela conversa e pelo bilhete, vimos que não. Tivemos ontem durante o jantar uma trovoada bem boa, mas fora isso temos tido um tempo lindo e o céu parece de Lisboa. São quase 4 horas, estamos a avistar as Montanhas Rochosas, vou-me pôr a ver. “
1 de Maio 1886
É sem igual o desapontamento que tivémos com a primeira parte das montanhas que, como disse, principiámos a ver antes d'ontem. Como já há dois dias estávamos subindo, os primeiros montes não faziam efeito algum, nem uma árvore ou uma ervinha era visível. Só pelas 8 horas da noite principiámos a ver os montes cobertos de neve e a juntarem-se uns aos outros. Fomos para a plataforma e durante meia hora talvez, foi linda a vista; passámos por uma ponte chamada Dale Creek Bridge**, que não tem a largura senão a necessária para por os rails e rodeada dos dois lados de precipícios enormes cobertos de neve e de pinheiros, assim como alguns montes pequenos ao pé. Depois começaram os montes a desaparecer, e achámo-nos de novo na planície apesar de estarmos a uma elevação imensa acima do nível do mar. Toda a manhã de ontem foi feia, a aridez dos montes não pode ser maior, mas têm uns feitios os mais curiosos possível, tanto os montes como os rochedos. Uns parecem ruínas de castelos, outros colunas, esfinges, leões deitados e mil outros feitios muito estrambólicos.
* Brigham Young era o presidente da igreja de “Latter Day Saint’s” da seita Mórmon. Os mormons praticavam poligamia, e a Brigham Young são atribuídas 55 mulheres, tendo 57 filhos de 16 delas.
**A ponte tinha 200 m de comprimento e 38m de altura no seu ponto mais alto. Originalmente construida em Madeira, foi depois substituida por uma estrutura de ferro. Era a passagem mais perigosa em toda a linha. (Wikipeda)

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